1. Introdução
Com o avanço e a disseminação do uso da tecnologia, em especial as relacionadas ao acesso e a utilização da rede mundial de computadores, é certo afirmar que as sociedades incorporaram novos padrões de comportamento havendo, portanto, uma quebra de paradigma em diversas áreas das ciências sociais. Podemos tomar como exemplo, no campo da comunicação via a rede mundial de computadores, a interface quase que integral e em tempo real, entre as pessoas, sejam elas conhecidas ou não entre si. Já no campo da educação, passou a ser comum a disponibilização de plataformas de ensino à distância, as quais podem ensejar a flexibilização dos períodos de aula e podem ajudar a fomentar o dinamismo na forma de aprendizado. Na esfera das ciências jurídicas, a tecnologia causou uma enorme mudança no que tange aos fatos sociais submetidos a apreciação do Poder Judiciário e também revolucionou o próprio processamento da ação judicial. Especificamente no campo do Direito Penal, podemos afirmar que está em andamento uma fase de adequação das normas penais e de suas regras de aplicação aos crimes denominados “informáticos”.
Nesse novo contexto social, verifica-se que novas situações vão surgindo e quando da busca da tutela jurídico-penal, há vezes em que fica difícil ou controversa a definição do tipo penal a ser aplicado ao caso concreto. E é nesse contexto que os juristas tem buscado construir novas definições e aplicações teóricas, a fim de contemplar o que se chama de crime informático. A construção dessa dogmática tem passado por diversos estágios, tanto que em 2007 a advogada Patrícia Peck Pinheiro, especialista em direito digital, asseverou que o crime informático “não é crime-fim por natureza, ou seja, o crime cuja modalidade só ocorra em ambiente virtual, à exceção dos crimes cometidos por hackers, que de algum modo podem ser enquadrados na categoria de estelionato, extorsão, falsidade ideológica, fraude, entre outros”. [1]
Contudo, a evolução tecnológica e o consequente crescimento das condutas ilícitas praticadas em meios digitais trouxeram um novo entendimento sobre as características de crimes informáticos, de forma que, atualmente, é pacífica a ideia de que o crime informático tanto pode ser o crime cometido por meio da internet, onde a rede mundial de computadores é apenas um instrumento para o cometimento da atividade-fim ilícita, quanto pode ser objeto da própria atividade ilícita. Nesse sentido Damásio de Jesus e José Antonio Milagre definem crime informático como:
(...) fato típico e antijurídico cometido por meio da ou contra a tecnologia da informação. (...) Assim, é um fato típico e antijurídico, cometido através da informática em geral, ou contra um sistema, dispositivo informático ou rede de computadores. Em verdade pode-se afirmar que, no crime informático, a informática ou é o bem ofendido ou o meio para a ofensa a bens já protegidos pelo Direito Penal.[2]
Como exemplo de tal situação, temos a questão do denominado “estupro virtual”. O tema tem sido notícia nos principais meios de comunicação do país e como exemplo podemos citar o caso ocorrido no Estado do Piauí, noticiado pelo site da Folha de São Paulo, em 10 de agosto de 2017. Na situação em comento um homem teria sido preso por estupro por exigir, via a rede mundial de computadores, que sua ex-companheira lhe enviasse fotos em que ela apareceria se masturbando, sob a ameaça de ter suas fotos íntimas vazadas na internet. A vítima teria incialmente cedido às ameaças do autor, contudo, no anseio de obter novas imagens da vítima o acusado teria reiteradamente realizado a conduta ilícita. [3]
Inicialmente, cabe esclarecer que apesar de ser um tema relativamente novo, alguns países já demonstram ter enormes problemas com relação a esse tipo de conduta, nos Estados Unidos, por exemplo, onde o tema geralmente é definido como “sextortion” há um estudo elaborado por Janis Walok e David Finkelhor, ambos pesquisadores da Universidade de Hampshire, onde foi verificado que tal conduta ilícita é capaz de causar um grande impacto emocional nas vítimas. A pesquisa foi realizada entre um público de homens e mulheres e aponta que cerca de 24% das vítimas entrevistadas tiveram que recorrer a tratamento médico ou psicológico e, ainda, que cerca de 12% das vítimas tiveram que mudar de residência, como resultado da conduta ilícita sofrida.[4] O estudo destaca que apenas 1 em cada 5 vítimas noticiam o fato a terceiros.
2. Da tipicidade da conduta
A Lei nº 12.015/09, a qual representou uma relevante alteração na tipificação dos crimes contra a liberdade sexual, trouxe uma nova redação ao art. 213 do Código Penal, passando, portanto, a definir o crime de estupro como sendo a constrição de alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Dessa forma, temos que o núcleo do tipo penal do estupro é o verbo constranger, que, segundo Rogério Greco, tem o sentido de obrigar, forçar, subjulgar a vítima, a fim de obter uma vantagem sexual, mediante violência ou grave ameaça. [5] Trata-se de crime doloso, onde o elemento subjetivo do tipo é a satisfação da lascívia do agente, ou seja, a satisfação de sua libido.
A violência, vis corporalis, se dá mediante a utilização de força física (lesão corporal ou vias de fato), enquanto a grave ameaça, vis compulsiva, pode ser expressa ou implícita, direta ou indireta. Essas definições ressaltam a ideia de que a violência ou a grave ameaça podem, portanto, recair sobre a pessoa da vítima ou ainda sobre terceiros, geralmente pessoas próximas à vítima, uma vez que a ameaça tem o escopo de subjulgar a vontade da vítima mediante o temor dessa frente ao agente. É certo afirmar também que a definição de ato libidinoso é ampla e contempla qualquer ato sexual diverso da conjunção carnal, o que pode incluir atos que vão desde a contemplação lascívia até o coito anal ou inter femora.
Na análise do crime de estupro designado “virtual”, temos que um agente, o qual pode ser do sexo masculino ou feminino, constrange outra pessoa, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso, tudo via a rede de tecnologia da informação.
A principal celeuma que se instaura nessa modalidade de ação é a ausência de contato físico entre o agente e a vítima, uma vez que todo o contexto das ações ocorre por meio virtual. Sobre o tema, Rogério Grecco leciona que:
Entendemos não ser necessário o contato físico entre o agente e a vítima para efeitos de reconhecimento do delito de estupro, quando a conduta do agente for dirigida no sentido de fazer com que a própria vítima pratique o ato libidinoso, a exemplo do que ocorre quando o agente, mediante grave ameaça, a obriga a se masturbar.[6]
Ainda sobre tal questão, urge destacar a recente decisão proferida pelo STF em 17/08/2017, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo nº 1066864 RS, cuja relatoria é do Ministro Dias Toffoli e no qual ficou assentado o entendimento no sentido de que a caracterização do crime de estupro prescinde a existência de contato físico entre o agente e a vítima. Em sua decisão o ilustre Ministro expôs que:
(...) a maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos arts. 213 e 217-A do Código Penal - CP, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido. (...) Com efeito, a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física. A maior ou menor gravidade do ato libidinoso praticado, em decorrência a adição de lesões físicas ao transtorno psíquico que a conduta supostamente praticada enseja na vítima, constitui matéria afeta à dosimetria da pena, na hipótese de eventual procedência da ação penal.
Diante do acima exposto, ao analisarmos o ato criminoso efetivado no Estado do Piauí, conforme anteriormente citado, podemos afirmar que estamos diante de ato tipificado nos termos do art. 213 do Código Penal, uma vez que se encontram presentes todas as elementares do tipo penal, a saber: o constrangimento mediante grave ameaça, uma vez que o agente pressionou a vítima, ameaçando divulgar suas imagens íntimas na internet e o fim específico consistente na prática de ato libidinoso.
Não obstante os casos de estupro virtual serem, em sua grande maioria, fatos ocorridos por meio da grave ameaça, seja ela efetuada por e-mail, chats, whatsapp, ou qualquer outro meio de comunicação eletrônica, de forma a causar o arrebatamento psicológico da vítima, entendo que o delito possa vir a ser praticado também mediante violência, nesse caso, a violência deveria recair sobre um terceiro que esteja em contato com o agente agressor. Nessa hipótese a vítima teria ciência da violência sofrida pelo terceiro e, por esse motivo, cederia aos desejos do delinquente.
Porém, há entendimentos no sentido de que o fato ocorrido no Estado do Piauí não caracterizaria o crime de estupro, como é o caso do advogado José Renato Martins, o qual entende ser indispensável a contato físico entre o agente e a vítima para a caracterização do crime de estupro. Dessa forma, há uma corrente que não aceita a possibilidade de que o crime de estupro ocorra por meio da rede mundial de computadores. [7]
3. Conclusão
Da análise do acima exposto, considero ser possível a tipificação, como crime de estupro, de conduta atentatória à dignidade e liberdade sexual efetivada por meio de sistemas de tecnologia, em especial a internet, independentemente do contato ou proximidade física entre o autor e a vítima.
Cabe observar, ainda, que, não obstante o posicionamento de importantes juristas, tais como Rogério Grecco, Fernando Capez e Guilherme de Souza Nucci, no sentido de que fatos atentatórios ao pudor considerados de pouca importância não deveriam ganhar a repercussão prevista para o crime de estupro,[8] devemos considerar que, com o avanço da tecnologia, tal fato considerado como “de pouca importância” pode ganhar grande visibilidade por meio da internet. Nessa condição, há a possibilidade de serem maximizadas as consequências do dano sofrido pela vítima, sendo, portanto, temerário se falar em fatos de pouca importância.
BIBLIOGRAFIA
- PINHEIRO, Patrícia Peck. Apud. JESUS, Damásio de; MILAGRE, José Antonio. Manual de Crimes Informáticos.
- WOLAK, Janes. FINKELHOR, David. Sextortion: findings from an online survey about threats to expose sexual images. Disponível em: http://www.unh.edu/ccrc/Sextortion%20Report%20final%206-22-2016.pdf. Acesso em: 17/12/2017.
- GRECCO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, Vol. III. 14ª Ed. Niterói, RJ: Impetus, 2017.
- GRECO, Rogério. Apud. SUZUKI, Cláudio. Afinal de contas, existe ou não “estupro virtual”. Disponível em: https://claudiosuzuki.jusbrasil.com.br/artigos/490709922/afinal-de-contas-existe-ou-nao-estupro-virtual. Acesso em: 17/12/2017.
- MARTINS, José Renato. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-18/opiniao-crime-estupro-real-nunca-virtual. Acesso em: 17/12/2017.
- SILVA, Jéssica Fernanda. O princípio da proporcionalidade, o conceito de ato libidinoso no crime de estupro e a criação de um tipo penal intermediário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4737, 20 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49529. Acesso em: 16 dez. 2017.
Notas
[1] PINHEIRO, Patrícia Peck. Apud. JESUS, Damásio de; MILAGRE, José Antonio. Manual de Crimes Informáticos.
[2] JESUS, Damásio de. Milagre; José Antonio. Manual de Crimes Informáticos. 1ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
[3] Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/08/1908758-policia-prende-homem-suspeito-de-praticar-estupro-virtual-no-piaui.shtml. Acesso em 15/12/2017.
[4] WOLAK, Janes. FINKELHOR, David. Sextortion: findings from an online survey about threats to expose sexual images. Disponível em: http://www.unh.edu/ccrc/Sextortion%20Report%20final%206-22-2016.pdf. Acesso em: 17/12/2017.
[5] GRECCO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, Vol. III. 14ª Ed. Niterói, RJ: Impetus, 2017.
[6] GRECO, Rogério. Apud. SUZUKI, Cláudio. Afinal de contas, existe ou não “estupro virtual”. Disponível em: https://claudiosuzuki.jusbrasil.com.br/artigos/490709922/afinal-de-contas-existe-ou-nao-estupro-virtual. Acesso em: 17/12/2017.
[7] MARTINS, José Renato. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-18/opiniao-crime-estupro-real-nunca-virtual. Acesso em: 17/12/2017.
[8] SILVA, Jéssica Fernanda. O princípio da proporcionalidade, o conceito de ato libidinoso no crime de estupro e a criação de um tipo penal intermediário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4737, 20 jun. 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/49529>. Acesso em: 16 dez. 2017.