Sumário:1. Introdução. 2. Definição de Software. 3. O software e o Direito Autoral. 4. Software por encomenda e software de prateleira e a tributação. 5. Software via download e frente ao ICMS. 6. Conclusão. 7. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
Com o avanço da tecnologia, alguns produtos e suas formas de comercialização foram consideravelmente alterados, sendo certo que, em alguns casos, o meio físico em que o produto era disponibilizado ao mercado deixou de ser imprescindível ou, até mesmo, deixou de existir. Acrescenta-se que a internet trouxe uma facilidade na comercialização de bens intangíveis, os quais podem ser adquiridos com comodidade, inclusive sem considerar as barreiras de fronteiras nacionais.
Podemos citar como exemplo de ramos de comércio diretamente afetados pelo avanço da tecnologia a venda de livros, filmes, músicas e licença de softwares. Apenas a fim de ilustrar o avanço tecnológico vivido, temos que a distribuição das produções fonográficas, desde os anos 80/90 até o presente momento, passou dos vinis e fitas K7, aos CDs e DVDs, chegando, atualmente, a ser disponibilizado digitalmente via internet, por meio de download ou outras formas de utilização, como o streaming. E é por meio digital que cerca de 77% do mercado fonográfico brasileiro opera atualmente.[1] Outro grande exemplo é a venda de softwares que há anos também deixou a necessidade de um suporte físico e passou a ser disponibilizado aos interessados por meio da internet, via download ou até mesmo como serviço (SaaS).
Assim, uma celeuma tributária foi instaurada entre o fisco, doutrinadores e demais operadores de direito: No caso de venda de licença de software via download, haveria a incidência de ICMS?
DEFINIÇÃO DE SOFTWARE
A Lei dos Softwares, Lei nº 9.609/98, define software como “a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados”.
De uma maneira mais prática, o professor Vanderlei Bonato, da Universidade de São Paulo, define software como sendo “instruções que controlam o hardware de modo a realizar tarefas determinadas por um algoritmo. O conjunto dessas instruções implementado numa linguagem computacional é denominado programa”. [2]
Tem-se, assim, que o software mantém uma intrínseca relação com seu autor, uma vez que esse é fruto da expressão humana de seu autor, ou seja, por ser fruto de um ato que resultou em um objeto, resta amparado pelo direito autoral.
O SOFTWARE O DIREITO AUTORAL
A proteção legal estabelecida pelo direito do autor visa resguardar o fruto da exteriorização do pensamento humano, quando esse resulta em uma obra inédita, tangível ou intangível, expressada por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte.
A Constituição Federal arrolou o direito à propriedade intelectual como direito fundamental ao estabelecer, em seu artigo 5º, XXVII, que “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. Acrescenta-se, ainda, que o inciso XXVIII, do citado artigo, assevera que são assegurados, nos termos da lei, as participações individuais em obras coletivas e o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores.
Nesse diapasão, vale citar que o artigo 7º, XII, da Lei nº 9.610/98, denominada Lei do Direito Autoral, dispõe que os programas de computadores são obras intelectuais protegidas pelas disposições da referida norma legal, estabelecendo, ainda, em seu artigo 11, que autor é toda pessoa física criadora da obra da obra intelectual.
Sobre o ineditismo da obra, temos que a ausência de tal requisito infere na impossibilidade de proteção legal. Portanto, o aspecto de originalidade pode ser considerado como a soma da criatividade intelectual, a qual é expressada pelo aporte de uma expressão de individualidade, e a autoria. Cabe observar também que alguns doutrinadores preferem fazer distinção entre os conceitos de originalidade, o qual seria a distinção da obra considerando o seu conjunto de elementos que a tornam única, e de criatividade, que, por sua vez, seria a engenhosidade da elaboração. [3] Sobre o tema Professor Denis Borges Barbosa esclarece que:
(...) o objeto de proteção no programa de computador não é uma ideia, mas a expressão de uma solução para um problema técnico. Assim como o engenheiro, lendo uma patente, prescreve um conjunto de instruções, seja a uma equipe de operários, seja a uma máquina qualquer, assim também o programa incorpora (ou expressa) este conjunto de instruções, mas destinado e legível apenas por uma determinada máquina de tratamento de informação. O valor econômico do programa deriva assim não da sua novidade enquanto ideia, mas da realização desta ideia enquanto conjunto de instruções a uma máquina. Diferentes programas podem representar a mesma ideia, ou mais frequentemente, incorporam dezenas ou centenas de soluções técnicas, novas ou ressabidas, mas de um modo específico.
Em complemento, a Lei nº 9.609/98, a Lei de Softwares, dispõe em seu art. 9º, que o uso de softwares no país será objeto de licença, isso significa que o adquirente, em regra, não será proprietário do software, esse apenas obterá a licença para sua utilização, sem poder transferi-la a terceiros.
Para Manoel J. Pereira dos Santos o contrato de licença de uso de software “é uma modalidade de negócio jurídico através do qual alguém, denominado Licenciante, concede a outrem, denominado Licenciado, o direito de exploração econômica e/ou utilização do programa de computador”[4], ou seja, a utilização de um programa de computador cujo direito patrimonial é de terceiro depende de prévio licenciamento, o qual pode ser a título gratuito ou oneroso. A gratuidade no licenciamento do software, em regra, não afasta a necessidade de um contrato de licença, pelo qual as partes poderão definir, dentre outras coisas, o prazo do licenciamento, as condições de uso, a limitação ou não de usuários, a política de utilização e as condições de suporte técnico e de atualização.
SOFTWARE POR ENCOMENDA E SOFTWARE DE PRATELEIRA E A TRIBUTAÇÃO
A utilização de software cujo direito patrimonial pertence a um terceiro, em regra, enseja no direito de remuneração a ser paga pelo usuário ao titular do direito, em decorrência da cessão de uso. Contudo, nos casos em que o autor realize o desenvolvimento do programa de computador visando atender as necessidades de um contratante, seja em uma relação de prestação de serviço ou fundado em uma relação trabalhista ou estatutária, como nos casos de servidores públicos, verifica-se que caberá ao contratante a titularidade sobre o programa de computador, salvo disposição em sentido contrário. É nesse sentido que dispõe o art. 4º, da Lei nº 9.609/98, abaixo expresso:
Art. 4º Salvo estipulação em contrário, pertencerão exclusivamente ao empregador, contratante de serviços ou órgão público, os direitos relativos ao programa de computador, desenvolvido e elaborado durante a vigência de contrato ou de vínculo estatutário, expressamente destinado à pesquisa e desenvolvimento, ou em que a atividade do empregado, contratado de serviço ou servidor seja prevista, ou ainda, que decorra da própria natureza dos encargos concernentes a esses vínculos.
§ 1º Ressalvado ajuste em contrário, a compensação do trabalho ou serviço prestado limitar-se-á à remuneração ou ao salário convencionado.
§ 2º Pertencerão, com exclusividade, ao empregado, contratado de serviço ou servidor os direitos concernentes a programa de computador gerado sem relação com o contrato de trabalho, prestação de serviços ou vínculo estatutário, e sem a utilização de recursos, informações tecnológicas, segredos industriais e de negócios, materiais, instalações ou equipamentos do empregador, da empresa ou entidade com a qual o empregador mantenha contrato de prestação de serviços ou assemelhados, do contratante de serviços ou órgão público.
§ 3º O tratamento previsto neste artigo será aplicado nos casos em que o programa de computador for desenvolvido por bolsistas, estagiários e assemelhados.
Assim, podemos afirmar que o desenvolvedor de programa de computador que presta um serviço de desenvolvimento a um terceiro, salvo disposição em sentido contrário, não terá direito patrimonial sobre o fruto de seu trabalho, não podendo, assim, explorá-lo no mercado.
Não obstante, cabe esclarecer que o desenvolvedor não perde sua condição de autor, conforme demonstra o art. 3º, §1º, I, da norma legal acima citada. Isso porque a legislação estabelece que no momento do pedido de registro do programa de computador, deverão ser designados, dentre outras coisas, “os dados referentes ao autor do programa de computador e ao titular, se distinto do autor, sejam pessoas físicas ou jurídicas”.
Enfim, no caso em que programa de computador for desenvolvido a fim de atender uma relação de prestação de serviço, a qual tem como primazia a própria prestação de serviço realizado pelo desenvolvedor em detrimento do resultado do serviço, tal fato será tributado pelo imposto de serviços de qualquer natureza, de competência municipal, conforme dispõe o item 1.4, da Lista Anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003. Ressalta-se que o imposto sobre serviço não incide nas relações de serviço fundadas na legislação trabalhista e estatutária.
Porém, quando o programa de computador é desenvolvido pelo autor sem considerar a relação de prestação de serviço com outrem, a exploração desse software perante o mercado não será tributado da forma acima descrita. Trata-se, portanto, de um programa de computador concebido para um determinado propósito, que será colocado no mercado a fim de ser utilizado por qualquer interessado. Nessa hipótese, temos o denominado “software de prateleira”. Nesse diapasão, a celeuma que se instaurou no meio jurídico é a seguinte: o software de prateleira seria um produto?
Como dito anteriormente, o programa de computador é considerado, para fins legais, como fruto do intelecto humano e sobre isso o escritor português Rui Saavedra leciona que:
Nas relações com seus clientes, a empresa produtora de software surge como proprietária do software que ela cria e comercializa, que se trate de software standard, comercializado em massa, quer de software concebido especificamente em função das necessidades de um utilizador em particular. Com efeito, mesmo neste último caso, a propriedade do software permanece, habitualmente, na titularidade da empresa que o realizou; mas nada impede que as partes estipulem o contrário, no caso de o cliente querer proteger o seu investimento solicitando que lhe cedida a propriedade do software, se ele tiver financiado totalmente os custos de desenvolvimento.
Diferentemente sucede nas relações com o utilizador de um software standard, porque este vocaciona-se a ser comercializado junto de uma clientela potencialmente vasta: a propriedade do software em si, normalmente, nunca é cedida ao cliente, apenas um direito de uso não exclusivo. Isso não obsta a que se considere que o cliente adquire as "manifestações físicas" do software, com todas as prerrogativas ligadas a esta propriedade, se a licença de uso lhas tiver concedido a título definitivo e por um preço.
Os contratos de licenciamento e cessão são ajustes concernentes ao direito de autor, firmados pelo titular desses direitos - que não é necessariamente, o vendedor do exemplar do programa - e o usuário do software.
No caso do software-produto, esses ajustes assumem, geralmente, a forma de contratos de adesão, aos quais o usuário se vincula tacitamente ao utilizar o programa em seu computador. As cláusulas desses contratos - voltadas à garantia dos direitos do autor, e não à disciplina das condições do negócio realizado com o exemplar - limitam a liberdade do adquirente da cópia quanto ao uso do programa, estabelecendo, por exemplo, a proibição de uso simultâneo do software em mais de um computador, a proibição de aluguel, de reprodução, de decomposição, de separação dos seus componentes e assim por diante. [5]
Em um parecer elaborado pelo renomado jurista Ives Gandra Martins, pertinente ao tema em discussão, o mesmo lembra que o ICMS não incide sobre a mercadoria em si, mas sim, sobre a movimentação ficta, física ou econômica de bens identificados como mercadorias, da fonte de produção até o consumidor. [6]
O ilustre jurista acrescenta que, em casos de aparente conflito de competência tributária, deve-se considerar a teoria da preponderância, ou seja, o item de maior densidade econômica deve prevalecer sobre o item de menor densidade. Portanto, no caso dos programas de computadores o que deve prevalecer é o mesmo deve prevalecer perante as demais características ou suporte, uma vez que o programa de computador é fruto do intelecto humano. Por fim, Ives Gandra Martins define que:
Ora, pela teoria da preponderância, que defendi para a própria fazenda do estado de São Paulo, em parecer pela procuradoria solicitado, não se pode considerar que o conjunto denominado “logiciário” seja fornecimento de mercadoria, posto que o que se transfere é o patrimônio intelectual. A densidade econômica da mercadoria (caderno de anotações, programa de computador e descrição do programa) é incomensuravelmente menor do que o programa em si exteriorizados pelos três bens lá mencionados, com o que de longe, afastaria qualquer incidência tributária, que conformasse o software como mercadoria sujeita ao IPI, ICMS e II.(...)
Acresce-se que os contratos juridicamente conformados pelo direito privado, à luz da legislação existente, fazem menção a licenciamentos de programas estrangeiros ou nacionais, o que caracteriza efetivamente um não fornecimento de mercadoria (a densidade econômica do material utilizado é ínfima em relação ao custo do programa).[7]
Não obstante tal posicionamento, o Poder Judiciário mantinha o seguinte posicionamento sobre as operações comerciais de softwares: quando considerados desenvolvidos de forma personalizada em favor de um cliente específico, haveria a incidência de ISS; já no caso de software de prateleira, em decorrência de o programa estar gravado em um suporte físico, o que lhe confere a condição de produto tangível, haveria a incidência do ICMS. Seguem abaixo decisões nesse sentido.
STF - AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO RE 285870 SP (STF)
Data de publicação: 31/07/2008
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. ICMS. PRODUTOS DE INFORMÁTICA. PROGRAMAS [SOFTWARE]. CD-ROM. COMERCIALIZAÇÃO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 176.626, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 11.12.98, fixou jurisprudência no sentido de que "ão tendo por objeto uma mercado[n]ria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de 'licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador' - matéria exclusiva da lide -, efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo - como a do chamado 'software de prateleira' (off the shelf) - os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio". Precedentes. 2. Reexame de fatos e provas. Inviabilidade do recurso extraordinário. Súmula 279 do Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental a que se nega provimento.
TJ-PE - Agravo de Instrumento AI 9900614352 PE 0003058-95.2002.8.17.0000 (TJ-PE)
Data de publicação: 02/12/2010
Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO EM AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA. COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA. ATIVIDADES EMPRESARIAIS COM PROGRAMAS DE COMPUTADOR (SOFTWARES). ISS OU ICMS. AVALIAÇÃO DEPENDENTE DO CASO CONCRETO. AUSÊNCIA DE VEROSSIMILHANÇA. AGRAVO IMPROVIDO. DECISÃO UNÂNIME. 1.A controvérsia posta cinge-se à definição da competência para a cobrança de créditos tributários decorrentes de atividades empresariais envolvendo softwares. 2. Sobre o tema, tem sido iterativa a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de delimitar a competência tributária em hipóteses que tais: reconhece-se a incidência do ISS sobre as operações que envolvam o fornecimento personalizado de programas de computador desenvolvidos para clientes determinados; por outro lado, encontra-se sujeita ao ICMS a circulação de softwares postos à venda de modo impessoal, é dizer, passíveis de serem adquiridos por qualquer consumidor. (...)
EMENTA: TRIBUTÁRIO. ESTADO DE SÃO PAULO. ICMS. PROGRAMAS DE COMPUTADOR (SOFTWARE). COMERCIALIZAÇÃO. No julgamento do RE 176.626, Min. Sepúlveda Pertence, assentou a Primeira Turma do STF a distinção, para efeitos tributários, entre um exemplar standard de programa de computador, também chamado "de prateleira", e o licenciamento ou cessão do direito de uso de software. A produção em massa para comercialização e a revenda de exemplares do corpus mechanicum da obra intelectual que nele se materializa não caracterizam licenciamento ou cessão de direitos de uso da obra, mas genuínas operações de circulação de mercadorias, sujeitas ao ICMS. Recurso conhecido e provido.
(RE 199464, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 02/03/1999, DJ 30-04-1999 PP-00023 EMENT VOL-01948-02 PP-00307)