Capa da publicação Guerra fiscal dos municípios pelo ISSQN na ADPF 189
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Os municípios e a guerra fiscal do ISSQN: uma breve análise acerca das perspectivas e expectativas do processo e julgamento da ADPF 189

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Analisa-se a ADPF 189, proposta pelo Governador do DF, tendo como objeto o art. 42 da LC 118/2002, de Barueri/SP, que instituiu benefícios fiscais em relação ao ISSQN, vistos como incitadores de guerra fiscal predatória entre municípios.

Resumo: Neste texto será feita uma abordagem do processo que tramita nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 189 (ADPF 189), proposta pelo Governador do Distrito Federal, que tramita no Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio, e que tem como objeto o art. 42 da Lei Complementar n. 118/2002, do município paulista de Barueri, que instituiu benefícios fiscais em relação ao ISSQN que podem ser vistos como “guerra fiscal predatória” entre os Municípios, e que supostamente teriam violado os artigos 1º, caput, da CF (princípio federativo), e 88, do ADCT. Serão examinados os argumentos jurídicos e os fundamentos normativos que suportam as postulações do arguente, do arguido e dos demais atores processuais, bem como o cabimento e a viabilidade da ADPF em face de provimentos normativos municipais. Também será visitado o tema da autonomia constitucional dos Municípios.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Direito Tributário. Guerra Fiscal. ISSQN. Federalismo. Município. ADPF 189.

Sumário: 1 Introdução. 2 A ADPF 189. 3 A autonomia constitucional do Município. 4 Perspectivas e expectativas da ADPF 189. 5 Considerações finais. 6 Referências.


O Estado Federal brasileiro tem uma característica que é essencial para o aprofundamento do processo democrático: confere autonomia política a organizações estatais territorialmente menores, e por isso mais próximas e sensíveis às diretrizes apontadas pela comunidade. Quanto mais poderes conferidos aos Municípios, maior é a possibilidade de se construir o Estado democrático. Obviamente que não será apenas a descentralização política, administrativa, legislativa e judiciária o fator responsável pelo funcionamento da democracia participativa, legitimadora das mudanças sociais e econômicas permanentes, mas este é um pressuposto necessário que será complementado por outros fatores, como a própria estrutura organizacional.

(José Luiz Quadros de Magalhães)3


1 INTRODUÇÃO

O presente texto tem como objeto o processo da ADPF 189, que tramita no STF, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio, e que foi ajuizada pelo Governador do Distrito Federal em face de Lei Complementar do Município de Barueri/SP, que instituiu benefícios fiscais em relação ao ISSQN – Imposto sobre serviços de qualquer natureza, tributo de competência municipal, e que teriam diminuído a base de cálculo desse tributo.

A justificativa deste trabalho descansa sua importância no fato de que segundo o arguente (o Governador do DF), a referida legislação, ao instituir benefícios fiscais de ISSQN, provocou uma “guerra fiscal predatória”, pois criou incentivos à margem da Constituição, que estariam a agredir o princípio federativo e o mandamento constitucional que estabelece a alíquota mínima a ser praticada pelos Municípios em relação a esse aludido imposto.

A finalidade deste texto consiste em verificar a consistência argumentativa e a coerência narrativa desenvolvida pelos atores processuais no curso dessa aludida demanda. Também verificaremos o sentido e o alcance normativo dos preceitos constitucionais empolgados nessa controvérsia, bem como as possibilidades decisórias do Tribunal.

Será analisado o instituto da ADPF, suas hipóteses de cabimento, seus legitimados (ativos e passivos) e as suas vantagens processuais em relação a outros institutos processuais constitucionais, mormente a ADI – ação direta de inconstitucionalidade e a ADC – ação declaratória de constitucionalidade, especificamente no tocante ao questionamento de leis ou atos normativos municipais em face da Constituição Federal e na possibilidade de se questionar atos ou normativos anteriores à vigente Constituição.

O texto visitará o tema da autonomia dos Municípios e as implicações do mandamento constitucional que lhes reconhece como parte componente e indissociável da Federação brasileira. O reconhecimento dessa autonomia constitucional pelo STF será objeto de nossas considerações.

Com efeito, a questão controvertida submetida ao crivo do Supremo Tribunal Federal, via ADPF 189, aborda os seguintes temas problemáticos: a) o Município tem autonomia constitucional para modificar a base de cálculo do ISSQN?; b) o Município tem o direito de reduzir a base de cálculo ou conceder incentivos fiscais que impliquem a diminuição da carga tributária do ISSQN?; c) Essa redução da carga tributária do ISSQN é “guerra fiscal”?; d) Essa eventual “guerra fiscal”, em sede de tributo municipal, pode ser compreendida como um “conflito federativo”?; e) Esse eventual “conflito federativo” pode ser atacado judicialmente via ADPF perante o STF?; f) o Tribunal deve conhecer da citada Arguição?; e g) o Tribunal deverá julgar procedente ou improcedente o pedido da Arguição?

Convém informar que todas as peças processuais examinadas neste artigo, bem como os demais julgamentos do Supremo Tribunal Federal, podem ser acessados diretamente na página virtual desse citado Tribunal4.

Neste artigo pretendemos apontar as melhores soluções para a citada ADPF 189.


2.A ADPF 189

Em 8.9.2009, o Governador do Distrito Federal, com esteio nos artigos 102, § 1º; e 103, inciso V, da Constituição Federal5, e no artigo 2º, inciso I, da Lei n. 9.882/19996, protocolizou a petição inicial7 de ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental8, com pedido de suspensão liminar da eficácia de norma, em face do artigo 41 da Lei Complementar n. 118/2002 (Código Tributário)9, do Município de Barueri/SP, na redação dada pela Lei Complementar municipal n. 185/2007, por suposta violação ao artigo 1º, caput, da Constituição Federal10, e ao artigo 88 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT11. O feito restou tombado como ADPF 18912, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio.

Ao Distrito Federal, nos termos do art. 32, § 1º, CF, são atribuídas as competências legislativas (e administrativas) reservadas aos Estados e Municípios.13 Daí porque o interesse jurídico e econômico no ajuizamento de ADPF versando sobre tributo municipal.

Pois bem, segundo o aludido arguente, o referido art. 41 da Lei Complementar municipal 118/2002 tem agredido o princípio federativo (art. 1º, caput, CF) e o mandamento constitucional que estabelece os limites mínimos de alíquota do Imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN) que podem ser aplicados pelos Municípios (art. 88, ADCT), o que, para o arguente, implicaria desrespeito ao princípio da igualdade entre os entes da Federação.

O arguente, após sustentar o cabimento e a viabilidade da citada ADPF (tema que será objeto de nossas considerações oportunamente), no mérito, ataca a mencionada legislação municipal ao informar que esse provimento normativo burla determinação constitucional ao criar benefícios fiscais de ISSQN que se tornariam atrativos para as empresas prestadoras de serviços, pois permitiriam a dedução na base de cálculo do citado imposto municipal as despesas decorrentes com outros tributos.

Segundo o arguente, a tributação do ISSQN no município de Barueri tornou-se menos onerosa que em relação aos demais entres tributantes do ISSQN, no caso específico, o Distrito Federal. Nessa perspectiva, segundo o arguente, a preferência empresarial por um ou outro Município não pode decorrer desse tratamento tributário privilegiado, pois todos os municípios devem resguardar o percentual mínimo efetivo de 2% para a alíquota do ISSQN.

O arguente recorda que na redação originária da Constituição Federal havia uma previsão para a fixação de alíquotas máximas para o ISSQN (art. 156, § 4º, I, CF)14. Sucede, no entanto, que foi editada a Emenda Constitucional n. 37/2002 que acrescentou o mencionado artigo 88 ao ADCT e estabeleceu, até a edição de competente lei complementar nacional, a alíquota mínima de 2%, com algumas exceções.

Para o arguente, essa determinação constitucional no sentido do limite mínimo de 2% e a proibição de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resultasse, direta ou indiretamente, na redução dessa referida alíquota mínima, visava evitar “guerras fiscais” entre os Municípios, em homenagem ao princípio do equilíbrio federativo.

Tendo esse princípio federativo como “pedra de toque” e como “cláusula pétrea”, o arguente passa a defender a sua postulação, e argumenta que as eventuais dificuldades financeiras dos entes federativos não lhes autorizam a uma “guerra fiscal” a ser travada com outros entes da Federação, vindo a trazer prejuízos para os demais municípios.

Em suma, segundo o arguente, a autonomia constitucional dos Municípios não pode chegar ao ponto de estabelecer desequilíbrios financeiros e tributários com os outros entes da federação, sob pena de agressão ao princípio do federalismo, “cláusula pétrea” constitucional15.

O arguido16, Município de Barueri/SP, no mérito, defende a validade do preceito impugnado forte no art. 156, III, CF17, e que a legislação municipal está em sintonia com o desenho constitucional. O Município aduz que não introduziu originalidade ou inovação em relação ao cálculo do ISSQN, mas dispôs de modo similar ao que contido em diversas legislações tributárias municipais18.

Segundo o arguido, a legislação impugnada contém a definição da base de cálculo do ISSQN exigido pelo Município de Barueri, “aclarando o seu conceito, em relação aos serviços que menciona, mediante a indicação de elementos que não o integram e, por isso, não podem ser considerados na apuração do imposto devido”. A tese do arguido consiste em dizer que o conceito de serviço, hipótese de incidência do ISSQN, consiste na receita bruta que decorre de sua prestação.

Para o arguido, a legislação municipal assegura aos contribuintes, em fidedigna obediência à Constituição, o direito de serem tributados corretamente, sem a inclusão de elementos estranhos ao figurino normativo desse imposto.

O Município arguido defende a tese segundo a qual os municípios não integram a Federação brasileira, a despeito do caput do art. 1º e do caput do art. 18, todos da Constituição Federal19, pois, segundo o arguido, a Federação seria composta apenas dos Estados e da União. E, com espeque no magistério de Roque Carrazza e de Paulo de Barros Carvalho, aduz que o Município não tem representação no Congresso Nacional. Esse argumento visava afastar o eventual conflito federativo justificador da citada ADPF.

Em sua manifestação, o Município acosta parecer da lavra do eminente professor Aires Fernandino Barreto20 que defende a validade jurídica e a higidez normativa do preceito legislativo acossado. O arguido alega que a sua legislação não teria o condão de ferir o princípio federativo, pois o seu alcance normativo ficaria restrito ao seu respectivo território, sem que impactasse outras unidades da Federação. Ademais, segundo o arguido, a formulação da política fiscal municipal é de competência das autoridades locais, para que efetivem a autonomia constitucional que possuem.

Instado, o Advogado-Geral da União21, no mérito, manifestou-se pela procedência parcial da arguição, sob o entendimento de que a legislação do Município agrediu o art. 146, III, “a”, CF22, no que dispôs sobre a base de cálculo do imposto, que seria matéria de competência de lei complementar nacional23, bem como modificou a base de cálculo “preço do serviço”, que deve ser o valor integral que o usuário deve pagar ao prestador do serviço, sem qualquer dedução dos custos envolvidos em sua prestação. E, segundo o AGU, houve agressão ao suscitado limite de 2% fixado pelo art. 88 do ADCT.

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Intimado, o Procurador-Geral da República24, no mérito, seguiu o traçado do AGU e se manifestou pela parcial procedência do pedido, forte na inconstitucionalidade da lei municipal no que alterou a base de cálculo do imposto, que seria de competência da legislação complementar nacional e na agressão ao art. 88 do ADCT.

O Município de São Paulo/SP25 ingressou no feito na qualidade de “amigo da Corte” (amicus curiae) e defendeu a procedência do pedido da ADPF com a decretação de inconstitucionalidade da legislação de Barueri, na linha do que aduzido pelo arguente, pelo AGU e pelo PGR.

O relator, ministro Marco Aurélio, em 3.9.2011, negou seguimento ao pedido formalizado na ADPF sob a justificativa de que não se cuidava de risco ao princípio federativo, que ao seu entender seria restrito aos conflitos que envolvessem a União Federal, os Estados Federados e o Distrito Federal. Segundo o relator, não há conflito federativo se estiver o Município como parte. Ademais, para o relator, a eventual agressão a dispositivo constitucional seria transversa, pois não se estaria violando diretamente preceito fundamental da Constituição.26

Contra essa decisão monocrática, o arguente interpôs o recurso de agravo regimental defendo o cabimento e a procedência da ADPF, forte na tese da possibilidade de haver agressão ao princípio federativo por parte de eventual “guerra fiscal municipal” e que o objeto normativo da ADPF é mais amplo, alcançando, inclusive leis ou atos normativos municipais.27

O arguido impugnou o referido recurso de agravo do arguente e defendeu a decisão monocrática do relator, forte na tese segundo a qual não há conflito federativo decorrente de atuação municipal e que não há preceito constitucional descumprido.28

O relator ainda não se pronunciou sobre o citado recurso de agravo regimental, nem submeteu a questão à apreciação do soberano plenário do Supremo Tribunal Federal. A questão processual, assim como a de mérito, está em aberto. Nada obstante, não temos o direito de nos demitir da controvérsia nem do debate.

Antes, no entanto, se avançarmos na análise da ADPF 189, teceremos algumas brevíssimas considerações acerca do sentido e do alcance da autonomia constitucional dos Municípios, e como essa autonomia tem sido entendida pelo magistério doutrinário e aplicada na dinâmica jurisprudencial do STF.


3 A AUTONOMIA CONSTITUCIONAL DOS MUNICÍPIOS

A autonomia constitucional dos Municípios está consagrada explicitamente no art. 30, incisos, CF29, sem embargo do que disposto nos artigos 1º e 18, do mesmo diploma, e em vários outros preceitos da Constituição. Essa autonomia política, legislativa e administrativa dos Municípios é mandamento constitucional. Mas, como essa autonomia tem sido entendida pelo magistério doutrinário e como tem sido aplicada pela jurisprudência do STF?

No plano doutrinário, parcela substantiva dos relevantes autores brasileiros de direito público, desde os clássicos Orlando Magalhães Carvalho30 e Victor Nunes Leal31, passando por autores como Hely Lopes Meirelles32, e os mais recentes como José Nilo de Castro33, defende uma interpretação forte à autonomia constitucional dos Municípios. Entre os constitucionalistas, vemos os respeitáveis Paulo Bonavides34, Luiz Pinto Ferreira35, José Afonso da Silva36, Raul Machado Horta37 e Manoel Gonçalves Ferreira Filho38, com ensinamentos favoráveis ao reconhecimento dos Municípios como entidade política autônoma e componente indissociável da Federação brasileira.

É bem verdade, todavia, que em se tratando de matéria tributária, há uma tendência, entre tributaristas de boa cepa39, de se interpretar de modo restritivo os poderes legislativos municipais, pois, na experiência histórica brasileira, o poder de tributar tende ao abuso fiscal, daí a importância de fortes limitações constitucionais ao poder de tributar40, restando, por consequência, pouca margem de manobra fiscal para os Municípios, pois o esquadro normativo tributário encontra-se desenhado no texto da Constituição Federal.

Mas se no âmbito fiscal, assim como nas matérias de competência exclusiva ou da União ou dos Estados, são estreitas as margens de conformação legislativa dos Municípios, em outras províncias jurídico-legislativas, onde possa vicejar o “interesse local”, essas entidades políticas podem atuar com maior liberdade, como se vê na dinâmica jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, o Tribunal editou a Súmula 645 com o seguinte teor: É competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial. Segundo a Corte, essa questão estaria albergada pelo vocábulo “interesse local”, de modo que incidiria o comando do art. 30, I, CF.

Ainda em sede de interesse local, registre-se o entendimento do ministro Celso de Mello41:

Não vislumbro, no texto da Carta Política, a existência de obstáculo constitucional que possa inibir o exercício, pelo Município, da típica atribuição institucional que lhe pertence, fundada em título jurídico específico (CF, art. 30, I), para legislar, por autoridade própria, sobre a extensão da gratuidade do transporte público coletivo urbano às pessoas compreendidas na faixa etária entre sessenta e sessenta e cinco anos. Na realidade, o Município, ao assim legislar, apoia-se em competência material

-- que lhe reservou a própria CR -- cuja prática autoriza essa mesma pessoa política  a dispor, em sede legal, sobre tema que reflete assunto de interesse eminentemente local. Cabe assinalar, neste ponto, que a autonomia municipal erige-se à condição de princípio estruturante da organização institucional do Estado brasileiro, qualificando-se como prerrogativa política, que, outorgada ao Município pela  própria CR, somente por esta pode ser validamente limitada. 

Essa orientação interpretativa da Corte, no sentido de fortalecer o alcance do art. 30, I, CF, pode ser vislumbrada em outros feitos.42

Em matéria tributária, o Tribunal, apreciando o Recurso Extraordinário n. 591.03343, decidiu pela autonomia municipal no tocante à condução das execuções fiscais dos respectivos créditos tributários, em precedente relevante.

O que se percebe, da leitura de várias decisões do STF44, no tocante à autonomia constitucional dos Municípios, é que a Corte tende a decidir favoravelmente à maior liberdade legislativa e administrativa dos entes municipais, especialmente nas situações problemáticas que mereçam soluções político-normativas locais, salvo nas matérias que sejam eminentemente federais ou estaduais, ou quando o bem jurídico tutelado estiver a merecer uma proteção normativa mais forte, como sucedeu, por exemplo, com o piso salarial dos professores do ensino público45.


4 PERSPECTIVAS E EXPECTATIVAS DA ADPF 189

Nos termos do § 1º, art. 4º, da Lei 9.882/1999, não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver outro meio eficaz de sanar a lesividade. Como o ato do Poder Público que estaria a agredir preceito fundamental da Constituição Federal tem caráter (ou natureza) municipal não poderia ser questionado via ação direta de inconstitucionalidade nem via ação declaratória de constitucionalidade.46

Com efeito, as leis ou atos normativos municipais podem ser questionados, via ação direta de inconstitucionalidade estadual (ou eventual ação declaratória de constitucionalidade estadual), perante os respectivos Tribunais de Justiça estaduais na hipótese de agredirem diretamente a Constituição do respectivo Estado, como se infere do art. 125, § 2º, CF47, e de precedente estabelecido pelo STF nos autos da Reclamação 38348, que superou o entendimento esposado pelo Tribunal na Reclamação 37049.

Segundo o Supremo Tribunal Federal, a partir dos referidos julgamentos das mencionadas Reclamações 370 e 383, a lei municipal ou estadual que agredisse a Constituição Estadual somente poderia ser questionada, em controle abstrato e direto, perante o respectivo Tribunal de Justiça estadual. E na hipótese de lei municipal que estivesse a agredir a Constituição Federal não caberia provocar diretamente o STF, via ADI ou ADC.

Todavia, a partir da edição da Lei 9.882/1999, que regulou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, nos termos do art. 1º, parágrafo único, I, caberá a ADPF, perante o STF, em face lei ou ato normativo municipal. Nessas situações, há várias decisões do Tribunal admitindo ADPF contra lei ou ato normativo municipal que esteja sendo acusado de violar preceito constitucional fundamental, como sucedeu com a ADPF n. 150.

Daí que cabível, prima facie, a ADPF contra lei municipal em face da Constituição Federal. O relator, monocraticamente, negou seguimento à ADPF 189 por entender ausente o conflito federativo, uma vez que a participação de Município não permite que se cogite de conflito federativo, nos termos do art. 102, I, ‘f’, CF51.

Nessa situação duas serão as soluções. Se se admitir o fundamento normativo constitucional do ministro Marco Aurélio, relator dessa ADPF, o Tribunal deverá revisar a sua jurisprudência acerca do cabimento de ADPF contra lei ou ato normativo municipal e decretar a inconstitucionalidade da parte do inciso I, parágrafo único, art.  1º, da Lei 9.882/1999, que enuncia o termo “municipal”.

A outra solução possível é manter a sua jurisprudência, não decretar a inconstitucionalidade desse aludido termo “municipal” do texto da referida Lei 9.882/1999, e dar uma interpretação conforme aos preceitos normativos envolvidos, no sentido de que a alínea ‘f’, do inciso I, do art. 102, da CF, não se aplica na hipótese de controle abstrato de validade constitucional. Esse citado dispositivo constitucional alcançaria as situações concretas, ou seja, as causas que não tenham como objeto do pedido a declaração direta e abstrata de inconstitucionalidade.

Sendo assim, como a ADPF tem como objeto do pedido a decretação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo municipal em face de preceito da Constituição Federal, em controle abstrato, não incidiria a reserva suscitada pelo relator da ADPF 189, com esteio no multirreferido art. 102, I, ‘f’, CF.

Ademais, o argumento esgrimido pelo Município arguido no sentido de que os Municípios não compõem a Federação brasileira, porque não têm assento no Congresso Nacional, não resiste à literalidade de vários dispositivos52 da Constituição que revelam que os Municípios são partes componentes da Federação brasileira e que a sua autonomia é princípio constitucional sensível, apto a ensejar a intervenção federal (art. 34, VII, ‘c’, CF) 53.

O outro fundamento normativo utilizado pelo ministro Marco Aurélio, segundo o qual a controvérsia não afrontaria diretamente preceito fundamental, mas tão somente por via transversa agrediria a Constituição, não convence, pois a alegação do arguente infirma a legislação municipal em face de dispositivos da Constituição e do ADCT no que estaria a modificar, indevidamente, segundo o arguente e segundo o AGU, a PGR e o Município de São Paulo, a base de cálculo do ISSQN, fora do esquadro constitucional.

Sendo assim, em linha de princípio, o parâmetro normativo que diretamente serve de conforto de validade é o texto da Constituição Federal, de modo que é a própria supremacia jurídica da Constituição Federal que está sendo posta em apreciação na ADPF 189. O Município arguido defende a compatibilidade de sua legislação com a Constituição Federal. O Distrito Federal – arguente – defende a incompatibilidade dessa legislação com a Constituição Federal.

Na eventual superação das preliminares de conhecimento da ADPF 189, no mérito a questão provoca algumas controvérsias acerca da autonomia tributária dos Municípios em sede de ISSQN.

Com efeito, nos termos do art. 156, III, CF, a competência municipal para instituir e cobrar o ISSQN estará condicionada pelos limites estabelecidos em lei complementar nacional. E, nos termos do § 3º, incisos, do referido art. 156, a lei complementar nacional fixa os limites mínimos e máximos das alíquotas do ISSQN, bem como as formas e condições da concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais em relação a esse tributo.

É de ver, portanto, que a autonomia tributária municipal, em sede de ISSQN, é restrita. Daí que, nada obstante o disposto no § 6º, do art. 150, CF54, a legislação municipal deve estar em sintonia com a indigitada lei complementar nacional, na linha do aduzido no art. 146, incisos I, II, III, alíneas ‘a’ e ‘b’, CF.

Esses aludidos preceitos constitucionais reduzem a autonomia municipal para modificar a base de cálculo do ISSQN e visam evitar o surgimento de “guerras fiscais” municipais em sede de ISSQN. Considerando que os Municípios são entes políticos da Federação, não restam dúvidas que o sentido desses dispositivos visa combater essa aludida “guerra fiscal” e alcançam medidas normativas que direta ou indiretamente criem situações tributárias favoráveis em relação a outros Municípios.

No caso objeto de nossas considerações, a ADPF 189 deverá ter o seu pedido julgado procedente? A resposta dependerá das premissas constitucionais adotadas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Se se adotarem as premissas do Município arguido e se aceitar a tese forte da autonomia constitucional municipal, os ministros julgarão improcedente o pedido da ADPF e reconhecerão a plena higidez normativa do preceito legal impugnado. Mas, se entenderem que a autonomia municipal, em sede de ISSQN, é fraca e dependente da regulamentação normativa da legislação complementar nacional e que cabe ao Tribunal pacificar a “guerra fiscal municipal”, os ministros deverão julgar procedente o pedido da ADPF.

Mas qual seria a melhor solução para esse caso? Nada obstante tenhamos uma tendência para enxergar a autonomia constitucional municipal de modo forte, concedendo ao citado art. 30, incisos, CF, uma interpretação favorável à liberdade de criação e aplicação normativa, pois defendemos que é no Município onde o indivíduo exerce sua plena cidadania, e onde as empresas têm suas sedes e a partir delas se projetam no desenvolvimento de suas atividades econômicas, entendemos que deverá prevalecer a tese de combate à “guerra fiscal”, pois não deve o direito tributário ser instrumento de desequilíbrios entre as unidades políticas da Federação, na linha aduzida pela Advocacia-Geral da União.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. Os municípios e a guerra fiscal do ISSQN: uma breve análise acerca das perspectivas e expectativas do processo e julgamento da ADPF 189. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5417, 1 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65809. Acesso em: 24 nov. 2024.

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