Resumo: Este trabalho acadêmico tem como escopo primordial analisar o instituto da infiltração policial, detalhando seus aspectos gerais, como sua origem histórica, conceito, natureza jurídica, aspectos éticos, finalidades e espécies. Ademais, visa a estudar a técnica de investigação em comento sob a ótica da nova Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/13), abordando os requisitos legais da infiltração e dirimindo as controvérsias concernentes à responsabilidade penal do agente infiltrado. Por fim, diferencia-se a figura do agente infiltrado e a do agente provocador.
Palavras-chave: Crime organizado. Organizações criminosas. Infiltração de agentes. Lei 12.850/13.
Sumário: Introdução. 1. Aspectos gerais da infiltração policial. 1.1. Origem e conceito da infiltração policial. 1.2. Natureza jurídica. 1.3. Aspectos éticos da infiltração de agentes. 1.4. Escopos da infiltração policial. 1.5. Espécies. 2. Aspectos legais da infiltração de agentes. 2.1. Requisitos legais. 2.1.1. Representação do Delegado de Polícia ou requerimento do Ministério Público. 2.1.2. Autorização judicial circunstanciada, motivada e sigilosa. 2.1.3. Agentes de Polícia. 2.1.4. Prazo. 2.1.5. Indícios de cometimento de infração penal prevista no art. 1º e imprescindibilidade da infiltração de agentes. 2.1.6. Relatórios. 2.1.7. Sigilo da infiltração. 2.2. Responsabilidade penal do agente infiltrado. 3. Distinção entre agente infiltrado e agente provocador. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO:
O crime organizado transnacional, embora não seja um fenômeno dos mais recentes, nunca esteve tão em evidência quanto hodiernamente, alcançando proporções alarmantes e, sem dúvida alguma, tornando-se um dos maiores problemas existentes no mundo globalizado, em virtude da danosidade de suas condutas, as quais põem em risco a paz, a segurança humana e a prosperidade mundial.
Em decorrência dessa assustadora realidade, torna-se necessária a busca de soluções adequadas para o enfrentamento das organizações criminosas, visto que os instrumentos tradicionais de investigação mostram-se obsoletos no combate à criminalidade organizada.
O presente artigo tem como objetivo analisar o instituto da infiltração policial à luz da nova Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/13), já que tal técnica inovadora mostra-se bastante importante na luta contra o crime organizado.
De início, far-se-á um estudo sobre os caracteres gerais da infiltração de agentes, como sua gênese, definição, natureza jurídica, aspectos éticos, objetivos e espécies. Na sequência, proceder-se-á a uma análise dos dispositivos previstos na Lei 12.850/13 que tratam da infiltração, ganhando destaque os requisitos legais e a responsabilidade penal do agente infiltrado. Por fim, far-se-á a diferenciação entre o agente infiltrado e o agente provocador.
1.ASPECTOS GERAIS DA INFILTRAÇÃO POLICIAL
O fenômeno da globalização influenciou sobremaneira na expansão e desenvolvimento das atividades delituosas do crime organizado.
Valendo-se dos benefícios referentes à globalização, tomando como exemplo a facilidade de comunicação com outras partes do mundo, os aparelhos de alta tecnologia, apresentando, enfim, pleno acesso aos desenvolvimentos tecnológicos atuais, as organizações criminosas tornam seus passos cada vez mais ocultos, dificultando e até mesmo impedindo que seus negócios sejam descobertos por uma ação investigativa.
Em virtude da necessidade de combater a criminalidade organizada, a qual atua de forma cada vez mais sofisticada e eficiente, impedindo os órgãos de persecução penal de produzirem os instrumentos probatórios necessários para o seu desbaratamento, torna-se imperioso adotar técnicas inovadoras e eficientes adaptadas à realidade atual e que possam ser úteis no enfrentamento ao crime organizado.
Como consequência, a Lei 12.850/2013 previu, no seu art. 3º, vários meios de obtenção de prova como instrumentos de combate aos cartéis da criminalidade organizada, trazendo, no seu inciso VII, a infiltração policial.
Interessante notar, porém, que o primeiro diploma legal brasileiro a disciplinar a infiltração policial foi a Lei 9.034/95, após a alteração trazida pela Lei 10.217/01, que inseriu no art. 2º da antiga Lei do Crime Organizado o inciso V. Porém, essa lei apenas previa a infiltração de agentes como meio de obtenção de prova idôneo ao combate do crime organizado, não esmiuçando o procedimento próprio do instituto.
Tal situação só foi alterada com o advento da Lei 12.850/13, a nova Lei de Organizações Criminosas, que tratou da infiltração de forma detalhada, descrevendo de forma minudenciada o seu procedimento e as limitações necessárias à sua aplicação prática.
1.1 ORIGEM E CONCEITO DA INFILTRAÇÃO POLICIAL:
A gênese da infiltração remonta à época do absolutismo monárquico, no século XVIII, principalmente no reinado de Luís XIV da França. Neste período, foram contratados os primeiros inspetores da polícia de Paris, com o fito de reduzir as taxas de criminalidade e manter o consequente controle, ao menos de forma superficial, por parte do Estado, de todas as atividades desenvolvidas pelos principais grupos delinquenciais da época. Não se distinguiam neste período as figuras do agente infiltrado e do agente provocador[1].
A infiltração de agentes pode ser conceituada como uma técnica investigativa através da qual um agente público ou terceiro controlado pelo Estado ingressa no seio de uma organização criminosa, ocultando sua verdadeira identidade, angariando a confiança dos seus membros, com o escopo de colher o material probatório suficiente para a desarticulação da organização criminosa, como, por exemplo, proceder a descoberta dos seus principais integrantes e os crimes a eles imputados.
Para Marcelo Batlouni Mendroni, a infiltração policial:
“consiste basicamente em permitir a um agente da Polícia ou de serviço de inteligência infiltrar-se no seio da organização criminosa, passando a integrá-la como se criminoso fosse -, na verdade como se um novo integrante fosse. Agindo assim, penetrando no organismo e participando das atividades diárias, das conversas, problemas e decisões, como também por vezes de situações concretas, ele passa a ter condições de melhor compreendê-la para melhor combatê-la através do repasse das informações às autoridades[2]”.
1.2 NATUREZA JURÍDICA:
A infiltração tem natureza jurídica de meio extraordinário de obtenção de prova em organizações criminosas. Corroborando tal entendimento, Cassio Roberto Conserino afirma que:
trata-se de técnica específica sigilosa de produção de prova ou meio operacional sigiloso de investigação para produção de prova em casos de criminalidade organizada. Assenta-se, obviamente, que a infiltração só poderá ser utilizada para desbaratar organizações criminosas em sentido lato e é imperiosamente sigilosa, cabendo às partes guardar o sigilo, sob pena de responsabilidade [3].
1.3 ASPECTOS ÉTICOS DA INFILTRAÇÃO DE AGENTES:
A infiltração policial é instituto de grande importância atualmente para o desmantelamento dos cartéis do crime organizado, pois permite justamente a quebra de uma das características mais importantes de uma organização criminosa, qual seja, a clandestinidade[4]. Apesar disso, tal instrumento especial de investigação é bastante polêmico.
A figura do agente infiltrado é bastante controvertida, sendo defendida por uns e condenada por outros. Embora seja uma técnica investigativa de grande valor, ela suscita uma acesa polêmica quanto ao seu aspecto ético. Questiona-se, então, se a violação a alguns princípios constitucionais e direitos fundamentais e até mesmo o cometimento de delitos seriam justificados pelo fato de a infiltração ser um mecanismo de eficácia reconhecida na luta contra a delinquência organizada.
Os doutrinadores que consideram o instituto supramencionado imoral e, consequentemente, inadmissível lastreiam-se na ideia de que, com sua adoção, o Estado, agindo por meio do agente policial, estaria cometendo crimes e colaborando com a organização criminosa, violando, portanto, os princípios da legalidade e da moralidade administrativa (art. 37, caput, da CRFB/88), o que seria inaceitável em um Estado Democrático de Direito.
Corroborando tal raciocínio, Friede e Carlos citam Franco, para quem:
(...) o agente infiltrado se vê, não raro, na contingência de praticar fatos também criminosos e quase sempre ações de duvidosa eticidade. É de indagar-se, então, se, em nome da eficiência do sistema punitivo, guarda legitimidade o juízo criminal que se apoia na atuação de agente infiltrado, ou melhor, se, em nome dessa mesma eficiência, deva reconhecer-se, como racional e justo, que, próprio Estado em vez de exercer a função de prevenção penal pratique atos desviados, igualando-se ao criminoso[5].
Além do mais, haveria a desobediência a direitos fundamentais dos investigados e de terceiros consagrados expressamente na Constituição Federal, como o direito à intimidade, vida privada, inviolabilidade doméstica, pois o agente infiltrado, agindo de forma disfarçada, ingressaria na residência dos suspeitos e, valendo-se do embuste, teria acesso à sua vida íntima.
Sustentam, ainda, haver violação ao princípio da ampla defesa, na medida em que a inserção do agente infiltrado no âmago da organização criminosa impediria o suspeito de garantir o seu direito de silêncio e de não produzir provas contra si mesmo (princípio do nemo tenetur se detegere), pois o próprio integrante da organização criminosa produziria, sem saber, as provas necessárias a sua condenação.
Por outro lado, há os que defendem acertadamente a infiltração de agentes. Estes argumentam não existir na infiltração aspecto imoral, uma vez que tal mecanismo processual será exercido mediante controle judicial e respeitando os limites impostos pela lei.
Reforça tal posicionamento Marllon Sousa ao afirmar que:
deve ser afastada a arguição de inconstitucionalidade material da previsão legal de infiltração policial, sob o fundamento de mácula à moralidade administrativa, cujo exame de compatibilidade constitucional pauta-se não sobre o instituto enquanto realidade ontológica, mas sim na sua regulamentação normativa específica e nos atos efetivamente levados a cabo, utilizando-se das técnicas de valoração e vedação de provas previstas na Constituição de 1988[6].
Ademais, é sabido de todos que não existem direitos fundamentais absolutos, devendo haver relativizações quando da preponderância do direito mais importante no caso concreto. É o que acontece aqui, pois, em razão da extrema nocividade das organizações criminosas e da dificuldade existente na sua desarticulação, deve prevalecer o direito constitucional do cidadão à segurança em detrimento de outros que por ventura venham a sofrer alguma restrição em decorrência da atuação do agente infiltrado, como os direitos à privacidade, vida íntima etc.
Outro argumento que pode ser utilizado a favor da infiltração policial é trazido por Rogério Sanches:
“trata-se, ademais, como já observado, de instituto que tem previsão na Convenção de Palermo e que, fosse assim tão nefasto e danoso, como pensam alguns, decerto que não mereceria a aprovação em um encontro de âmbito mundial, promovido pela Organização das Nações Unidas. É, de resto, meio de prova admitido em praticamente todos os países do mundo ocidental”.
1.4 ESCOPOS DA INFILTRAÇÃO POLICIAL:
A partir do momento em que o agente policial infiltra-se em uma organização criminosa ele passa a conviver como se fosse um membro de tal grupo delinquencial, o que lhe permite desvendar os protagonistas, bens, estrutura, forma de atuação, etc de um cartel do crime organizado, rompendo com a clandestinidade típica dessas organizações e permitindo o seu desbaratamento.
São apontados tradicionalmente pela doutrina como objetivos[7] intrínsecos da infiltração policial os seguintes: a) desvendar a estrutura da organização delinquencial transnacional, além da mantença de relações com outros cartéis; b) desvelar os seus principais membros e sua relevância no seio da organização; c) identificar as principais atividades criminosas desenvolvidas e o modus operandi; d) descobrir os principais meios de financiamento da empresa criminosa, como também seu patrimônio, ainda que este esteja em nome de terceiros (“laranjas”); e) identificar as formas estratégicas protetivas de suas atividades ilícitas.
Toda infiltração de agentes que se preste à consecução eficaz de seus fins deve possuir as seguintes características elementares: a dissimulação, que é o encobrimento da condição de agente estatal e de seus objetivos reais; o engano, já que a infiltração terá como base o fingimento do agente para alcançar a confiança dos investigados; e a interatividade, que consiste na relação que se formará entre o agente infiltrado e os afiliados da organização criminosa.
1.5 ESPÉCIES:
Afinal, cumpre atentar que existem duas espécies de infiltração policial, conforme o seu período de duração: a light cover e a deep cover.
A light cover é a infiltração mais leve e simples, não durando mais de seis meses, dispensando a penetração prolongada e duradoura na organização criminosa e a alteração de identidade ou distanciamento da família por parte do agente. Demanda menos planejamento e pode se constituir em apenas um encontro para a obtenção de informações.
De outra forma, a deep cover é a infiltração mais complexa e perigosa. Geralmente, dura mais de seis meses, sendo indispensável uma inserção completa na organização, exigindo a mudança de identidade, feita pelo Estado, do agente policial, bem como o seu afastamento em relação aos seus familiares[8].
Parece que a Lei 12.850/13 consagrou no seu bojo os dois tipos de infiltração policial retromencionados, a depender da situação fática, pois permitiu para a operação um prazo de até 6 meses, caso em que se estaria diante da light cover e, lado outro, estipulou a renovação do instituto, dando a entender que nas hipóteses em que a infiltração durasse mais de seis meses estaria se adotando a deep cover.
2. ASPECTOS LEGAIS DA INFILTRAÇÃO DE AGENTES:
2.1 REQUISITOS LEGAIS:
2.1.1 REPRESENTAÇÃO DO DELEGADO DE POLÍCIA OU REQUERIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO:
Da interpretação do texto legal conclui-se que a infiltração policial não poderá ser decretada de ofício pelo magistrado, visto que esta conduta violaria peremptoriamente os princípios da inércia da jurisdição e da imparcialidade do juiz. O art. 10, caput, da Lei 12.850/13, preceitua que tal medida será postulada pelo delegado de polícia ou pelo Ministério Público.
Quando a autoridade policial representar pela infiltração, haverá a necessidade de o juiz competente, antes de tomar a sua decisão, ouvir o Ministério Público, nos termos do parágrafo 1º do art. 10.
Por sua vez, o Ministério Público também pode requerer a técnica investigativa em comento durante a fase de inquérito policial. Neste último caso, o delegado de polícia deverá ser ouvido por meio de manifestação técnica.
Conforme o estipulado pelo artigo 11 da Lei 12.850/13, a representação do delegado de polícia ou o requerimento do parquet deverão conter a necessidade da medida, o alcance das tarefas dos agentes, o local da infiltração e, quando possível, os nomes ou apelidos das pessoas investigadas.
A apresentação da necessidade da infiltração se justifica devido ao seu caráter excepcional, já que é técnica das mais arriscadas e que vulnera alguns direitos fundamentais do investigado. Por isso, exige-se a indispensabilidade da medida, não devendo ela ser aprovada quando houver outros meios mais eficientes, menos perigosos e inconvenientes para a colheita do material probatório.
No que concerne à demonstração do alcance das tarefas a serem desenvolvidas pelos agentes parece um pouco complicado de se delimitar tal incumbência, visto que as organizações criminosas possuem um intricado e complexo sistema de funcionamento, não podendo precisar tal medida sob risco de haver o seu engessamento.
Importante, ainda, determinar o local em que se realizará a infiltração, bem como os nomes ou apelidos dos integrantes das organizações criminosas.
2.1.2 AUTORIZAÇÃO JUDICIAL CIRCUNSTANCIADA, MOTIVADA E SIGILOSA:
De acordo com o disciplinado no art. 10, caput, da nova Lei do Crime Organizado, é de competência do magistrado autorizar a infiltração policial de forma motivada, circunstanciada (pormenorizada) e sigilosa, a fim de que sejam impostos os limites da operação.
2.1.3 AGENTES DE POLÍCIA:
O artigo 10, caput, da Lei 12.850/13 estabelece expressamente que a infiltração será realizada apenas por agentes policiais, ou seja, policiais civis e federais, conforme o disposto no artigo 144 da Constituição Federal. Com esta previsão encerra-se de uma vez por todas a polêmica que havia quando da vigência do diploma anterior, já que o art. 2º, V, da Lei 9.034/95 previa também a atuação de integrantes da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) como agentes infiltrados. Mesmo durante a vigência da antiga Lei de Organizações Criminosas, uma boa parte da doutrina pregava a inconstitucionalidade do dispositivo, por afrontar o art. 144 da Constituição da República. Com a novel Lei a discussão perdeu o sentido.
Importante mencionar, também, que não é qualquer policial civil ou federal que poderá funcionar como agente infiltrado. Este deverá passar por um rígido e especializado treinamento, possuir um caráter muito sólido, psicológico e inteligência acima do padrão médio, boa compleição física, além de outras características específicas, sob pena de frustrar a operação e, também, por em risco a sua própria vida.
2.1.4 PRAZO:
Foi outra inovação trazida pelo novo diploma, visto que a lei anterior não estipulava expressamente o período de duração da operação de infiltração. O prazo indicado pelo parágrafo 3º, art. 10, da Lei de Organizações Criminosas é, inicialmente, de seis meses, podendo haver prorrogações de acordo com a necessidade das investigações. A Lei, no entanto, não estabeleceu por quantas vezes a técnica em comento poderia ser renovada, cabendo ao juiz decidir a partir da prudente análise da complexidade do caso concreto.
2.1.5 INDÍCIOS DE COMETIMENTO DE INFRAÇÃO PENAL PREVISTA NO ART. 1º E IMPRESCINDIBILIDADE DA INFILTRAÇÃO DE AGENTES:
Segundo o parágrafo 2º, art. 10, da Lei de Organizações Criminosas, para que seja permitido ao agente policial realizar a infiltração em um cartel do crime organizado, deve haver a percepção de vestígios da prática do delito estipulado no art. 1º, da Lei 12.850/13, quer dizer, indícios do crime de formação de organização criminosa. Ademais, tal medida deve ser excepcional, só devendo ser deferida quando da anterior utilização de outros meios probatórios. Isto justifica-se em razão do alto grau de invasividade da medida (pois viola direitos e garantias fundamentais do investigado) e dos riscos intrínsecos da operação[9], já que o agente infiltrado pode ser desmascarado a qualquer momento, podendo pagar inclusive com a sua própria vida.
Aliás, importa salientar que a Lei 12.850/13 em seu art. 12, parágrafo 3º, buscando resguardar a integridade física e até mesmo a vida dos agentes infiltrados, determina a imediata sustação da operação quando da verificação de risco iminente à incolumidade física destes indivíduos. Percebe-se que a interrupção da medida, devido à sua urgência, dispensa autorização prévia do juiz. É necessário apenas a requisição do parquet ou da autoridade policial, que realizarão, respectivamente, a comunicação posterior ao magistrado e a este e ao Ministério Público.
Ainda nesse contexto, consoante o estipulado pelo artigo 14, I, o agente infiltrado não está obrigado a aceitar a tarefa de infiltração, não incorrendo em nenhuma infração administrativa quando de sua negativa. Da mesma forma, já estando inserido no antro da criminalidade organizada, pode o agente infiltrado interromper a operação, a qualquer tempo, desde que constatadas razões robustas e fundamentadas para tanto, como por exemplo, a descoberta por parte do agente de que sua identidade foi revelada e que o chefe da organização planeja o seu homicídio e o de seus familiares.
2.1.6 RELATÓRIOS:
A Lei do Crime Organizado traz em seu bojo a obrigatoriedade de elaboração de dois tipos distintos de relatórios acerca da infiltração. O primeiro deles é o relatório da atividade de infiltração, que será elaborado pelo agente infiltrado, durante o decorrer do inquérito policial, por determinação do delegado de polícia ou requisição do Ministério Público (art. 10, parágrafo 5º). Este primeiro documento é um importante instrumento de controle, visto que é por meio dele que o delegado de polícia, inicialmente, e o Ministério Público poderão avaliar se as diligências realizadas para a obtenção de provas pelo agente policial observaram o disposto no mandado de infiltração.
O segundo, por outro lado, é o relatório circunstanciado da infiltração policial, que será redigido pelo delegado de polícia, após o prazo de seis meses, ou a cada seis meses, se houver renovação, sendo endereçado ao juiz competente, que dará ciência imediata ao parquet, conforme previsto no parágrafo 4º, artigo 10, da Lei 12.850/13. Este relatório, em suma, tem como finalidades verificar quais materiais probatórios foram colhidos e que possam contribuir diretamente para o desmantelamento da organização criminosa e como atuou o agente infiltrado, ou seja, se agiu com proporcionalidade ou cometeu excessos.
2.1.7 SIGILO DA INFILTRAÇÃO:
A infiltração de agentes deverá ser realizada de forma totalmente sigilosa. É o que preceitua o artigo 12, caput, da Lei 12.850/13, ao exigir que a distribuição da operação seja realizada em absoluto segredo, de modo a preservar a identidade do agente policial, bem como o êxito da medida. Este sigilo só não atingirá o delegado de polícia, o magistrado e o membro do Ministério Público, alcançando, de outro lado, todos os servidores dos Cartórios Judiciais, do Ministério Público e da Polícia que não sejam necessários para dar andamento às investigações.
Depois de ter ocorrida a distribuição do pedido de infiltração policial, exigir-se-á, nos moldes do parágrafo 1º do artigo 12, máximo sigilo quanto às informações necessárias à operação, as quais serão encaminhadas diretamente ao juiz competente, que se manifestará em vinte quatro horas após o requerimento do Ministério Público ou da representação do delegado de polícia.
O parágrafo 2º do art. 12 estabelece, ainda, que os advogados dos integrantes das organizações criminosas somente poderão ter acesso aos autos da infiltração após o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, em homenagem aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Interessante notar que na parte final do dispositivo normativo em comento há uma vedação expressa quanto à revelação da identidade do agente infiltrado, ou seja, deve-se sempre, mesmo após o fim das investigações e início do processo, salvaguardar a identidade do agente, pois, caso contrário, sua vida e a de seus entes queridos estariam em perigo, além de poder provocar o próprio fracasso da infiltração policial.
Desta disposição legal surge uma discussão doutrinária a respeito da possibilidade ou não de o agente infiltrado figurar como testemunha.
De um lado, há quem defenda a viabilidade do infiltrado ser arrolado como testemunha, desde que haja realmente necessidade e sem a ocultação de sua identidade, em respeito ao princípio constitucional da ampla defesa. Este é o entendimento do Prof. Guilherme de Souza Nucci, para quem:
não se pode admitir uma ‘testemunha sem rosto’. Ela não pode ser contraditada, nem perguntada sobre muitos pontos relevantes, visto não se saber quem é. Além disso, todos os relatórios feitos por esse agente camuflado – e nunca revelado – não podem ser contestados, tornando-se provas irrefutáveis, o que se configura um absurdo para o campo da ampla defesa. A única solução viável para que todo o material produzido por esse agente se torne válido é a sua identificação à defesa do acusado, possibilitando o uso dos recursos cabíveis. É responsabilidade do Estado garantir a segurança de seus servidores policiais, não se podendo prejudicar o direito constitucional à ampla defesa por conta disso. O agente pode e deve ficar oculto do público em geral e do acesso da imprensa, mas jamais do réu e do seu defensor[10].
Por sua vez, existem doutrinadores como Marcelo Mendroni e Rogério Sanches que admitem a ideia de o policial infiltrado atuar como testemunha, já que ninguém mais do que ele estará apto a descrever as características essenciais, o modus operandi, os integrantes da organização criminosa objeto da investigação, como também discriminar minuciosamente as provas obtidas durante o período em que esteve infiltrado. Porém, deve ser garantida a condição de os seus depoimentos ocorrerem sob total sigilo, sem a sua identificação real.
Para Mendroni,
a ocultação da identidade do ‘agente infiltrado’ funda-se em três razões principais: se assim não for, dificilmente o agente concordará em colaborar – ou seja, sabendo que mais dia menos dia os integrantes da organização criminosa saberão as suas condições e a sua verdadeira identidade; sendo desvelada a sua identidade, o agente já não poderá mais atuar como ‘infiltrado’ em casos futuros; e não haverá muitos agentes especialmente preparados e treinados para atuar em situações semelhantes nos Departamentos de Polícia; o agente correrá sério risco de morte; e não só ele, como também seus familiares mais próximos e até eventuais amigos[11].
Ainda no que diz respeito ao sigilo da operação, mais precisamente em relação ao agente infiltrado, visando à sua proteção, determina o art. 14, inciso II, que o agente policial tenha sua identidade alterada, aplicando-se, no que for pertinente, o art. 9º da Lei 9.807/99, além das medidas de proteção a testemunhas. Tal medida é necessária não só para garantir a integridade física do infiltrado e de sua família, mas também para assegurar o completo sucesso da empreitada investigativa.
A modificação da identidade do agente deve consistir na produção de documentos falsos, como carteira de identidade, CPF, carteira nacional de habilitação e, em casos mais graves, passaporte, etc. Além disso, deve-se acrescentar dados fictícios nos sistemas de banco de dados da administração pública, para que se evite uma possível verificação da vida do novo membro, por parte de agentes públicos corruptos que tenham acesso livre aos sistemas de dados governamentais, o que acabaria inviabilizando toda a operação e expondo o agente infiltrado[12].
Quanto à aplicação de alguns dispositivos da Lei de proteção a vítimas, testemunhas e réus colaboradores, é importante salientar que sua utilização será subsidiária e para os casos específicos concernentes à infiltração, isto é, poderá ser concedida a alteração do nome do agente de polícia imerso na organização criminosa pelo magistrado competente, conforme o que dispõe o seu artigo 9º. Poderão, também, ser disponibilizadas para o agente algumas medidas protetivas de testemunhas, como as previstas nos incisos I, III e VII do art. 7º da Lei 9.807/99.
Em última análise, é importante mencionar as outras duas providências que objetivam proteger o infiltrado, dispostas nos incisos III e IV, da Lei 12.850/13. A primeira determina a preservação do nome, qualificação, imagem, voz e demais informações pessoais do policial infiltrado, exceto se houver decisão judicial em sentido contrário. Apesar de ser de difícil constatação, Mendroni exemplifica hipótese em que pode haver decisão do magistrado neste sentido:
poucas seriam as hipóteses, nessa esteira de raciocínio, que permitiriam a decisão judicial de revelação dos dados qualificativos do agente infiltrado. Imagine-se o exemplo em que o agente se prontificou a infiltrar-se na organização criminosa, mas em vez de efetivamente objetivar a coleta de evidências, buscava, antes, ter os seus dados ocultados – por qualquer motivo. Sendo caracterizada esta hipótese, sem resultado qualquer em termos probatórios, estará o juiz autorizado a revelar os dados do agente[13].
A segunda previsão normativa também procura resguardar a privacidade do infiltrado, na medida em que salvaguarda a sua identidade, não podendo esta ser exposta nem ser o agente policial fotografado ou filmado pela imprensa, salvo sua anuência prévia escrita.
Afinal, resta apontar que a Lei 12.850/13 tipifica em seu art. 20 a conduta de infringir determinação de sigilo das investigações que digam respeito à infiltração de agentes e ação controlada, punindo o infrator com uma pena de reclusão de 1 a 4 anos e multa. Busca-se, mais uma vez, garantir o sigilo da operação de infiltração, evitando a frustração de tal medida bem como a revelação da identidade do agente infiltrado e os possíveis riscos daí decorrentes.
2.2 RESPONSABILIDADE PENAL DO AGENTE INFILTRADO:
Questão das mais importantes e polêmicas quando da abordagem da infiltração policial era o debate travado a respeito da responsabilização penal do agente infiltrado. Entretanto, vale destacar que nem sempre o policial infiltrado cometerá uma ou várias infrações penais durante a operação, podendo sua atuação ser voltada apenas para a coleta de informações, realização de testemunhos ou, até mesmo, o desenvolvimento de atividades legais.
A antiga Lei do Crime Organizado era omissa no que concerne à responsabilização ou não do agente infiltrado que cometesse crimes durante a infiltração. Como não havia previsão legal acerca da matéria, coube à doutrina empreender a discussão sobre o assunto.
Por um lado, havia aqueles que defendiam a impossibilidade de o agente policial praticar delitos no transcorrer da operação de infiltração. Nesse sentido é o entendimento de Rafael Pacheco[14], pois “inquestionável e pacífica é a situação: não houve permissão para que o policial eventualmente praticasse crimes. Tal evento permanece sem previsão legal e, ocorrendo, deverá ser submetido à apreciação judicial”.
Manifestando opinião contrária existiam os doutrinadores que entendiam ser admissível o cometimento de infrações penais no decorrer da infiltração, visto que, em algumas situações peculiares, o agente se vê obrigado a praticar uma conduta delitiva a fim de angariar a confiança dos componentes da organização criminosa, não arruinar a operação ou, também, salvaguardar a sua integridade física ou a própria vida.
Superada esta primeira divergência, os estudiosos acabaram concentrando o debate na natureza jurídica da causa que excluiria a responsabilidade penal do infiltrado, merecendo destaque quatro correntes principais.
Os adeptos da primeira teoria defendem que, sem dúvida, cuida-se de uma causa excludente de antijuridicidade, pois o infiltrado estaria atuando no estrito cumprimento de um dever legal, realizando apenas o seu trabalho estatuído pela lei, não podendo esta castigar quem executa uma obrigação que ela mesma ordena, conforme previsto no artigo 23, III, do Código Penal.
A segunda corrente, por sua vez, prega a isenção de responsabilidade criminal do policial infiltrado em decorrência da existência de atipicidade penal, não importando que o motivo escolhido para tanto seja a falta de dolo (o agente não tem o propósito de delinquir, mas de contribuir para o desbaratamento do cartel do crime organizado) ou o fato da atividade do infiltrado corresponder a um risco legalmente admitido, sem valor algum para o Direito Penal.
A terceira posição doutrinária é partidária da tese da escusa absolutória, na medida em que reconhece o cometimento de crime por parte do agente infiltrado, mas não o não pune por motivos de política criminal.
Por último, a quarta corrente sustenta tratar-se de causa de exclusão da culpabilidade por haver a incidência de uma dirimente supralegal, qual seja, a inexigibilidade de conduta diversa, já que não se vislumbra outra saída que não a prática do delito para garantir o sucesso da infiltração ou quiçá a própria incolumidade física/ vida do agente policial inserido no seio de uma organização criminosa.
Toda esta celeuma doutrinária foi dirimida após o advento da Lei 12.850/13, que, em seu art. 13, parágrafo único, previu de forma expressa a possibilidade de o agente policial, no curso da infiltração, cometer alguns delitos, não sendo punível a sua conduta por inexigibilidade de conduta diversa. Andou bem o legislador ao adotar esta causa supralegal de exclusão da culpabilidade, pois, desta forma, de acordo com a teoria da acessoriedade limitada, os componentes da organização criminosa que atuem como partícipes poderão ser devidamente punidos pelas infrações perpetradas, vez que a conduta principal (do infiltrado) é típica e antijurídica. Além do mais, tal postura confere uma segurança jurídica maior aos agentes policiais que irão se infiltrar no âmago do crime organizado.
Todavia, deve-se frisar que a Lei de Organizações Criminosas, em seu art. 13, caput, elegeu o princípio da proporcionalidade como parâmetro para a aferição da inexigibilidade de conduta diversa do agente, devendo a atuação do infiltrado manter a devida proporção com o desiderato da investigação, sob pena de responder administrativa e judicialmente pelos excessos cometidos. Em outros termos, não pode o agente, inserido em uma organização criminosa que realiza a prática de jogos de azar, cometer homicídios, uma vez que faltaria claramente a proporção necessária entre a sua ação e a finalidade da investigação. Porém, por outro lado, é perfeitamente admissível a conduta de um policial inserto em organização delinquencial encarregada da exploração sexual de seres humanos, em determinado instante da operação, ter que cometer algum delito contra a liberdade sexual.