A transcendência oculta das condutas sociais contrastadas com as normas vigentes, à luz da literatura, sob o pano de fundo do Conto Negrinha, de Monteiro Lobato

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Há diferença entre as crianças que crescem em becos e vielas, submetidas às piores condições possíveis de desenvolvimento, e àquela representada no conto "Negrinha", de Monteiro Lobato? Ou será que a sociedade já é justa, e busca a isonomia em sentido formal, não apenas elucubrando questões garantistas do direito material?

A proposta deste artigo é apresentar questões normativas constitucionais, em contraponto às condutas e estereótipos sociais marginalizados e condenados tacitamente por grande parte da sociedade, buscando a aproximação entre tais elementos. Toda nossa produção tem como base comparativa o conto Negrinha, de Monteiro Lobato.

O paradoxo entre a sociedade escravocrata, pós-republicana, ambientada no conto, e a atual, que possui acesso à informação, é notório quando, apesar da quantidade de normas amparativas, não há garantias de que os direitos “mais fundamentais” estejam sendo respeitados. Um exemplo clássico do desrespeito às garantias, que além de ser abstratamente representado no conto também apresenta seu aspecto contemporâneo, é o dos maus tratos. Considerando que não cabe neste artigo a discussão do mérito, tampouco da conduta praticada pelo agente; toma-se como contextualização inicial a notícia veiculada pelo Portal G1, onde um homem foi espancado e amarrado a um poste após a tentativa de assalto a um ônibus, na Ilha do Governador, Rio de Janeiro em 8 de setembro de 2017{C}[1].

Estamos discutindo um fenômeno ocorrido em pleno século XXI, ano de 2017. Sim, mais de um século depois da primeira carta constitucional republicana, percebemos uma conduta bastante semelhante à ambientada no conto Negrinha, de Monteiro Lobato. O mais assustador neste caso, é que a ação foi praticada pelos próprios passageiros do ônibus. O anseio por justiça ou talvez justiçamento2, pode sim ter sido responsável pela ação, mas percebam que quando o criminoso preenche os requisitos estereotipais: negro, pobre, favelado, fica mais fácil o “julgamento”.

A mesma indignação não permeia, por exemplo, as esferas políticas, onde não vemos homens/mulheres “de terno e gravata” tendo o mesmo tratamento de tortura quando constatadas suas práticas criminosas. Hipocrisia? Talvez, mas fato é que a menor apresentada no conto possuía a mesma personificação do assaltante, aquela que indiretamente remete à figura de servidão, à propriedade do “senhor branco”, à condição sub-humana, e talvez isso tenha tornado mais fácil a prática de tortura, como forma de castigo aplicada por parte dos passageiros do ônibus e da Senhora “curadora” do conto, que deveria, em tese, ser responsável pela preservação da menina.

Sob a ótica da existência de uma interlocução entre os personagens, quais elementos os uniriam? Ambos encontram as mesmas dificuldades e obstáculos ao longo de suas jornadas, e carregam consigo o fardo de não terem atingido o nível mínimo de discernimento/reconhecimento social. Não, não há espaço para o vitimismo, o propósito do artigo, talvez até mesmo eivado de certa “prepotência projetada”3, é despertar a dúvida e a percepção de que, com base na constatação de fatos e materialidade, possam ser observados fenômenos de subjugação por conta da raça (ainda que não apenas em razão dela) e sua perpetuação ao longo do tempo.

No sistema em que convivemos, “a justiça é o direito do mais fraco” (Joseph Joubert), e quando usamos a literatura, percebemos que a projeção da realidade é diluída nas entrelinhas da sociedade, que através de suas obras, representadas por livros, textos, crônicas, enxerga seu próprio espelho, de forma oposta e contrária ao que de fato deveria ser vislumbrado.

Para que tenhamos a real percepção de todo o processo de estereotipagem acerca da realidade da Negrinha, torna-se necessário retroceder ao ano de 1891 (ou até mais) tempos onde tornáramos um Estado Democrático Republicano (como já citado), que, para efeitos legais extinguiu a escravidão, positivando, na carta, os direitos individuais. Embora desde 1888 já houvesse uma lei (Áurea), a Carta de 1891 rechaçou, de forma definitiva, as eventuais conjecturas em relação à mitigação dos direitos à liberdade individual que, apesar de tão difundidos, através do liberalismo na Europa, desde à Revolução Francesa, demoraram a dar seus ares em terras tupiniquins.

Apesar da ideia de que a democracia (1889) nos trouxe as principais garantias fundamentais, desde 1824, em nossa primeira Carta Constitucional, em seu art. 179, houve um rol simplista, porém, alinhado com os princípios liberais e democráticos (não podemos deixar de apontar que estávamos em uma monarquia escravocrata, portanto, era um arremedo de democracia), constituído de trinta e cinco incisos que de forma sucinta, porém moderna, trouxeram conceitos bem conhecidos em nossos dias. Ainda que a análise dos textos legislativos não seja exatamente o propósito deste artigo, o inciso XXI do art. 179 recepcionou o conceito de “diversificação das casas (cadeias) para separação dos Reos**, conforme a circunstância e natureza dos seus crimes.

Há de se surpreender pela modernidade do texto, considerando que, ainda hoje, temos um sistema prisional que na melhor das hipóteses, não ressocializa os criminosos. Pois, imaginem que em 1824 já era possível separarmos as naturezas dos crimes em presídios distintos, o que hoje parece impossível, tendo em vista o “recrutamento” de criminosos que cometeram crimes de potencial ofensivo menos lesivo para os “exércitos” dos presídios, por criminosos profissionais, por assim dizer, que têm contaminando esses presidiários. Esse tipo de tratamento desumano e degradante nos institutos prisionais colabora sobremaneira para a manutenção desse abismo social, bem como para a reprodução de discursos inflamados em prós e contras movimentos raciais e sociais, que, na prática servem apenas para desviar o foco das verdadeiras questões que deveriam ser discutidas, como propositura de projetos educacionais e de conhecimento eficazes, como forma de reduzir o abismo entre as classes. E as normas? Essas já dão conta de um rol extensivo de direitos, que, apesar de positivados, não cumprem seu papel.

Em 1891, abrigados sob um Estado Republicano, onde a escravidão, em tese, já fora abolida e que, em razões práticas, produziu uma demanda sem precedentes de “aumento da mão-de-obra disponível”; como contraponto, no momento em que os senhores de escravos deixaram de sê-lo, optaram pela contratação de imigrantes especializados, ou seja, na pior das hipóteses, tínhamos um grande índice de desempregados que se sujeitariam a salários ínfimos ou até mesmo decidiriam seguir o caminho da criminalidade. Notaram alguma semelhança?

Não evoluímos, enquanto sociedade, da mesma forma que as normas evoluíram. Os últimos índices de desemprego apontam que 12,2% da população estão à procura de emprego conforme relatório divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 28/01/2018(5); a pesquisa refere-se ao período compreendido entre novembro de 2017 e janeiro de 2018. Cabe ressaltar que o resultado inclui apenas pessoas que estão à procura de emprego, o que exclui os trabalhadores informais, que correspondem, em números, a pouco mais de 10 milhões no país (6), uma fatia de aproximadamente 5%, o que, de certa forma, eleva para o patamar de quase 20% da população desempregada.

O desemprego, embora na expectativa de redução**, segundo o Ministro da Economia Eduardo Guardia, ainda é o grande vilão da pobreza e, juntamente com a falta da educação, são os principais responsáveis pelo aumento da violência (traduzido em roubos), que só no estado do Rio de Janeiro tem, em números percentuais aumento de 91,5%, se comparados à 2010***. Não há como garantir a segurança, se temos um número tão alto de ocorrências. A violência se torna apenas o resultado de uma condição sub-humana, que para muitos que não conhecem, julgam haver escolha, ainda que na dura e cruel realidade, não seja tão fácil decidir.

As mesmas condições eram apresentadas pela Negrinha, que não possuía o mínimo dentre as garantias fundamentais previstas na constituição de 1891. Há algum diferencial dentre as crianças que crescem em becos e vielas, submetidas às piores condições possíveis de desenvolvimento, e àquela representada no conto? Temos hoje uma sociedade justa, que busca a isonomia em sentido formal, não apenas elucubrando questões garantistas do direito material?

Sob o aspecto contemporâneo, não temos hoje uma sociedade mais justa, apesar de todas as garantias fundamentais elencadas no Art. 5º da CRFB/88. Sabemos que políticas de inclusão social são débeis e frágeis, buscando sempre a tentativa de incluir, quando na verdade o objetivo deveria ser expandir o acesso. Não é simplesmente abrindo caminhos estreitos que trazemos uma nova realidade social para os estereótipos flagelados de outrora. Para que possamos iniciar um processo de evolução e mudança, devemos ser a mudança que esperamos no mundo.

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O Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão, Josenildo de Jesus Pereira, faz referência em seu texto intitulado: A escravidão Moderna: Objetos, Lógicas e a Formação Histórica Brasileira, à desracialização*, um neologismo fundamental para lançar mão de fenótipos a nível populacional que distinguem, dentre outras ações, características físicas das culturais. Desconstruir a ideia de que as existem raças é quase tão necessário quanto prover todas as garantias individuais previstas na Constituição à população. Em seu texto, o autor cita ainda, que grande parte dos afunilamentos raciais dão-se por conta da necessidade de se “criar” padrões sociais que ajudem a sustentar todo o aparato sócio-econômico-histórico que mantém o ciclo de que (parafraseando um hit dos anos 90) os abastados continuam enriquecendo e os menos favorecidos empobrecendo*.

Fato é que quando falamos em desconstruir todo esse aparato supramencionado, estamos falando de trazer novos comportamentos sociais, que deveriam espelhar as normas. Temos hoje fenômenos sociais fortes o bastante para modificar normas. No STF obtivemos há pouco tempo a garantia (em seu estado letárgico, é bem verdade) da equiparação entre os institutos de casamento e união estável, bem como sua extensão às uniões homoafetivas. No entanto, por que quando abordamos questões sociais, torna-se tão difícil quebrar as correntes e deixar de “enxergar” os aspectos externos em contraponto aos valores e questões culturais? Talvez

Falando sobre as construções sociais e sobre os ilícitos penais praticados por jovens e adolescentes, estamos muito aquém na expectativa de realizarmos uma inclusão social, considerando que os dois institutos carecem de um acompanhamento mais próximo do Estado. Não há monitoramento do desenvolvimento dos jovens nas comunidades, onde em tese há maior incidência do recrutamento de soldados para o crime, bem como uma política de redução eficaz no número de menores de rua, fenômenos que culminam no contínuo aumento da criminalidade e da população de presidiários juvenis. Nos Centros de Socioeducação, o número de menores infratores ultrapassa, em muito, o máximo permitido por lei.

Os dados mais recentes disponibilizados pelo Ministério Público do Rio de Janeiro foram apresentados em audiência pública realizada em 15/04/2016, e os percentuais de superlotação são alarmantes, valores variam entre 152% e 252% nos Centros do Rio de Janeiro3, considerando a população sob medidas socioeducativas em âmbito nacional, a situação é ainda pior, segundo o CNJ, o Brasil possuía até 25 de novembro de 2016 pouco mais de 189 mil menores cumprindo as referidas medidas, dentre os quais 29.794 encontravam-se em regime de internação4.

Se estamos falando de reincidência e ressocialização, a questão fica ainda mais preocupante, pois segundo a FBAC (Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados), o número de menores reincidente chega à 90% (4) o que demonstra a ineficácia de políticas públicas para a reintegração desses menores junto à sociedade.

Alfim, trazemos como análise para este artigo, a possibilidade de reduzirmos a distância entre as normas positivadas e a realidade social apresentada. Talvez o principal meio de mudança da realidade seja ainda, a esperança no futuro, que se iniciou com a conscientização social (através das normas sim, como um primeiro passo), mas que demanda hoje a transformação de um comportamento coletivo, que não aceite mais a reprodução dos preconceitos apresentados no Conto Negrinha,  e sim num processo de diálogo e consenso através de mecanismos jurídicos (conciliação, por exemplo), onde seja buscada as convergências de conceitos e valores, ao invés de divergências.

  • https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/homem-e-espancado-e-amarrado-em-poste-apos-tentar-assalto-em-onibus-no-rio.ghtml
  • https://pt.wikipedia.org/wiki/Xibom_Bombom
  • http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/04/unidades-para-menores-infratores-do-rj-tem-superlotacao-de-ate-250.html
  • http://www.oabrj.org.br/noticia/108078-presidios-com-metodo-apac-tem-indice-de-reincidencia-tres-vezes-menor
  • https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/desemprego-fica-em-122-em-janeiro-de-2018.ghtml
  • https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,trabalhadores-informais-chegam-a-10-milhoes-no-pais,10000071200
  • https://exame.abril.com.br/economia/brasil-vai-crescer-3-este-ano-com-reducao-do-desemprego-diz-guardia/
  • https://oglobo.globo.com/rio/indices-de-violencia-sobem-no-estado-do-rio-22407369
  • https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_da_escravid%C3%A3o
  • http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/11/em-1-ano-dobra-n-de-menores-cumprindo-medidas-no-pais-diz-cnj.html
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Sobre os autores
Luiz Carlos Sá Campos

Doutorando do Programa de Educação na área de concentração: Educação e Cultura Contemporânea pela Universidade Estácio de Sá ? UNESA ? RJ. Mestrado em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura pela Universidade Federal Fluminense. Possui graduação em Letras - Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá. Atualmente é professor auxiliar da Universidade Estácio de Sá, professor - concursado - Secretaria de Educação do Rio de Janeiro, SEERJ, Brasil - Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira e Teoria Literária, atuando principalmente nos seguintes temas: Identidade ? Literatura; Literatura e Educação; Preconceito e Mídia; Literatura e Sociedade. Orienta Iniciação Científica junto à FAPERJ sob o tema: A dialética dos paradigmas no discurso jurídico dos precedentes judiciais. Integra como pesquisador o Programa Pesquisa Produtividade - Literatura e Direito: diálogos pertinentes. Orientador de Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Cientifica da Universidade Estácio de Sá ? UNESA ? Projeto: A construção do discurso jurídico e a Literatura.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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