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A fiscalização do trabalho frente à flexibilização das normas trabalhistas

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13/04/2005 às 00:00
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5 - APLICAÇÃO DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO DE INTERESSES PELA INSPEÇÃO ESTATAL

Freqüentemente setores favoráveis a uma ampla reforma da legislação trabalhista apontam para profissionais do direito que atuam na defesa dos direitos do trabalhador: juízes, membros do Ministério Público, Auditores-Fiscais do Trabalho e advogados, entre outros, como intransigentes opositores da reforma por medo de perda de espaço profissional, face o enxugamento da base legal de sustentação da legitimidade de atuação desses operadores jurídicos. Eis uma visão limitada que não se sustenta.

Na Constituição da República Federativa do Brasil estão agasalhados diversos princípios, os quais representam a materialização, no ordenamento maior, dos valores e interesses da nossa sociedade que, revelando-os nas suas manifestações, indicou um modelo de Estado que contemplasse pretensões dos variados seguimentos sociais.

Diante da envergadura constitucional com que foram contemplados certos interesses, não é incomum que os princípios que os sintetizem entrem em choque, ante o antagonismo das pretensões de cada seguimento. Nesse passo, no que tange à flexibilização das normas trabalhistas encontraremos situações que estarão protegidas por princípios constitucionais e que irão demandar análise criteriosa por parte daqueles que, como autoridade competente em cada caso concreto, terão que decidir por qual interesse proteger.

Na persecução de uma justa solução para as situações concretas que se apresentarão, em que princípios constitucionais estarão em oposição, a técnica da ponderação de interesses pode se constituir num método eficaz de tomada de posição, pois como brilhantemente demonstrou Daniel Sarmento "os critérios cronológico, de especialidade e hierárquico não são suficientes para a solução das tensões entre normas constitucionais. Tais questões desafiam o uso de método mais dinâmico e flexível, que possa dar conta das infinitas variáveis fáticas que estes conflitos podem ostentar". [41]

No âmbito de competência da Fiscalização do Trabalho diversas questões trabalhistas são demandadas, como noutro passo demonstramos, e que consideradas sob o fundamento da flexibilização, contemplada na supremacia do negociado sobre o legislado, poderão revelar interesse com lastro de um princípio constitucional que seja obstativo da concretização de outro interesse também protegido por um princípio constitucional. Nesse caso, surge para a inspeção estatal a necessária adoção de um método que indique qual o princípio deva prevalecer, e neste contexto a ponderação de interesses é fundamental, como indica o autor desta obra de engenharia jurídica. Vejamos:

Assim, a ponderação de interesses consiste justamente no método utilizado para resolução destes conflitos constitucionais.

Tal método caracteriza-se pela sua preocupação com a análise do caso concreto em que eclodiu o conflito, pois as variáveis fáticas presentes no problema enfrentado afiguram-se determinantes para a atribuição de ‘peso’ específico a cada princípio em confronto, sendo, por conseqüência, essenciais à definição do resultado da ponderação. [42]

Para a aplicação concreta dessa técnica é indispensável que pelo menos dois princípios constitucionais sejam conflitantes. Isso importa a que previamente seja analisada a real obstrução de um deles pela manutenção do outro, eis que muitas vezes podem ser acomodados pela forma orgânica que caracteriza o sistema de normas constitucionais, pois como lecionou CANOTILHO, citado por SARMENTO "o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a constituição em sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão entre as normas constitucionais a concretizar" [43]

Portanto, a técnica da ponderação exige seja primeiramente vencida uma fase de admissibilidade, qual seja a impossibilidade de harmonização dos princípios que se apresentarem no caso concreto sob análise. Se vencida esta fase restar clara a colisão dos princípios utilizar-se-á da técnica da ponderação efetivamente.

Como ressalta SARMENTO, esse método requer uma pré-compreensão do problema, levando o operador do Direito a comparar o "peso genérico que a ordem constitucional confere, em tese a cada um dos interesses envolvidos." [44] Para tanto, deve nortear sua compreensão pelo conjunto de valores subjacentes à Constituição. Esse peso é "indiciário do peso específico", ressalta o ilustre Professor. Por sua vez, este último é medido diante do problema concretamente apresentado, já que é dependente do conhecimento do grau de intensidade que cada interesse é protegido pelos respectivos princípios conflitantes.

Como bem aponta Daniel "o nível de restrição de cada interesse será inversamente proporcional ao peso específico que se emprestar, no caso, ao princípio do qual ele se deduzir, e diretamente proporcional ao peso que se atribuir ao princípio protetor do bem jurídico concorrente." [45]

Em matéria de Direito do Trabalho, onde especificamente opera a fiscalização do trabalho, sem logicamente afastar outros ramos do direito, por serem imanentes à própria atuação estatal, como o Direito Constitucional e o Direito Administrativo, dois princípios constitucionais se destacarão nas questões reveladas com a efetivação da flexibilização das normas trabalhistas. São eles o princípio protetor e o princípio da autonomia privada coletiva, dos quais trataremos no tópico a seguir.

5.1 - O Princípio Protetor no Direito do Trabalho e a Evidência do Princípio da Autonomia Privada Coletiva no Ordenamento Jurídico, sob o Prisma Constitucional

Partimos aqui da noção pós-positivista de princípios, ou seja, hoje concebidos como norma, uma vez que já estão superadas as idéias sobre a sua juridicidade, construídas nas fases jusnaturalista e juspositivista. Para BOBBIO, citado por GOMES, não há dúvidas de que os princípios são normas, quando leciona:

‘.....Para sustentar que os princípios gerais são normas os argumentos são dois, e ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio da espécie animal obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para a qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. E com que finalidade são extraídos em caso de lacuna? Para regular um comportamento não regulamentado: mas então servem ao mesmo escopo a que servem as normas expressas. E por que não deveriam ser normas?’. [46]

Os doutrinadores concordam, quase unanimemente, de que os princípios são normas mais abrangentes, de maior generalização que as leis, estando a evidência dessa diferenciação no critério adotado para o enfrentamento de conflito entre regras ou entre princípios. Enquanto o choque entre as regras é solucionado pelo critério de validade, afastando a aplicação de uma das regras, a contrariedade entre princípios é resolvida pela valoração dos interesses por eles protegidos, não servindo o critério de validade para tal fim.

No Brasil o Direito do Trabalho, desde sua concretização, tem como traço marcante o princípio protetor. Essa insígnia foi absoluta até a Constituição de 1988, quando teve seu atributo de comando levemente abrandado com os dispositivos que permitem a modificação dos salários e da jornada mediante negociação coletiva (art. 7º, Inc. VI e VIII, CF/88). Com isto, é sinalizada a reaparição do princípio da autonomia privada no âmbito das relações do trabalho.

O princípio protetor que informa o Direito do Trabalho é uma norma constitucional, contudo essa compreensão não é tão evidente sob um simples olhar sobre o texto da carta magna, pois não está expresso num dispositivo da Constituição de 1988. Mas um princípio para ser norma constitucional não necessita ser expresso, eis que pode estar presente na Constituição de um país de forma implícita e nem por isso tem menos força que os princípios explícitos.

PLÁ RODRIGUES, ao lecionar sobre os princípios informa que não há "uma forma única e exclusiva de se manifestarem [...] Poderíamos dizer que nem sequer há uma forma preferida de manifestação". [47]Josef Esser também tem uma brilhante observação sobre os princípios implícitos, afirmando que "Los principios no escritos son los más fuertes. [...] Donde más evidente es esto, es en materia constitucional, donde vemos a cada paso cómo principios escritos son pronto desplazados por obra de la coyuntura política, mientras que las verdades elementales permanecen incólumes". [48]

Na busca da compreensão de que o princípio protetor é norma de cunho constitucional, é intocável a observação feita por GOMES após pesquisar com profundidade o tema. Afirma ela:

É inquestionável que, das disposições de direitos fundamentais sociais constitucionais, podemos induzir o princípio protetor, ou seja, a presença do Estado para equilibrar uma situação materialmente desigual - a relação de trabalho - mesmo sendo esta uma relação contratual, baseada na liberdade dos indivíduos. [...] Apesar de não escrito, é na própria Constituição que encontraremos a base jurídica para a consideração do princípio protetor como direito constitucional dos trabalhadores. Sendo princípio fundamental do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, torna-se razoável que a sociedade exija um nível mínimo de cidadania para todos, inclusive para o trabalhador, justificando-se a ação protetora do Estado; [49]

Também no tocante ao princípio da autonomia privada coletiva a mesma autora informa: "O princípio da autonomia privada coletiva tampouco se encontra previsto expressamente em uma disposição da Constituição. Ambos, no entanto, são normas constitutivas do ordenamento jurídico" [50], indicando, assim, a presença dos dois princípios na Constituição Federal.

Está plasmado, portanto, na Constituição da República Federativa do Brasil o princípio protetor justificador da declaração de direitos garantidora das condições dignas, de respeito obrigatório que possibilite o desenvolvimento das relações de trabalho, onde a pessoa humana do trabalhador seja respeitada para que possam ser concretizados os valores expressos na Constituição de 1988.

5.2 - O Tratamento do Princípio Protetor no Direito do Trabalho, Ante a Onda da Flexibilização

Como prólogo desta etapa, importante a doutrina de BOBBIO sobre a heterogeneidade da categoria dos direitos fundamentais:

[...] desde quando passaram a ser considerados como direitos do homem, além dos direitos de liberdade, também os sociais - a categoria em seu conjunto passou a conter direitos entre si incompatíveis, ou seja, direitos cuja proteção não pode ser concedida sem que seja restringida ou suspensa a proteção dos outros [...] as sociedades reais, que temos diante de nós, são mais livres na medida em que menos justas e mais justas na medida em que menos livres. [51]

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Cai como uma pérola essa conclusão de Bobbio nesta questão da flexibilização, eis que dois princípios do Direito do Trabalho se encaixam com perfeição sob o aspecto da categoria heterogênea desse direito fundamental social constitucional, quais sejam: o princípio protetor e o princípio da autonomia privada coletiva. Uns querem mais liberdade, outros mais justiça. Como solucionar?

Indiscutível que as questões econômicas têm guiado as propostas de reforma da legislação trabalhista, onde a âncora dessas propostas é lastreada com a justificativa da necessidade de competitividade das organizações econômicas e de diminuição do desemprego. GOMES, que pesquisou com dedicação o assunto, aponta serem "esses os argumentos favoráveis à transformação do Direito do Trabalho em um direito ‘flexível’, o que pode, enfim, desfigurá-lo por completo, pelo abandono das disposições protetoras e, conseqüentemente, da garantia de alguma justiça nas relações de trabalho". E acrescenta em razão disto que "não se deve considerar um suposto princípio da flexibilidade - pois esse não existe no nosso Direito. A flexibilidade pode simplesmente constituir uma especificidade do ordenamento jurídico". [52]

A flexibilização das normas trabalhistas, como noutro momento apontamos, não é um processo novo, ao contrário, já vem sendo implementada há algum tempo. Apenas agora se busca um modelo normativo que contemple clara e expressamente uma característica flexível, como o que está sendo tratado através do Projeto de Lei nº 5.483/01, em tramitação no Senado.

No entanto, a prática da flexibilização que ora se almeja,estará condicionada pela efetiva atuação do princípio protetor como norma fundamental da concepção de Estado Social e de Direito do Trabalho, opondo-se logicamente ao princípio da autonomia privada coletiva em certos casos em que os valores insculpidos na Carta Magna apontarem com luz ofuscante para este.

Com efeito, dentro de um ordenamento legal em que apareça como especificidade a flexibilidade, não há dúvidas de que com muito mais ênfase atuará o princípio protetor, em especial num Estado em que as condições gerais do trabalho são caóticas. Mas a concorrência deste princípio não será absoluta, eis que o princípio da autonomia privada coletiva o condicionará e, por conseguinte, implicará circunscrição das condições jurídicas de como será a sua aplicabilidade.

Gizamos, para a delimitação da aplicação do princípio protetor que o princípio da proporcionalidade, já clássico nos sistemas jurídicos, deve ser contemplado com suas respectivas dimensões: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade estrita da norma protetora.

No que concerne a proporcionalidade, embora a Constituição não a textualize como princípio e também não disponha sobre ser ela critério de interpretação, é indiscutível sua fundamentação como postulado constitucional. Nesse sentido ensina Willis Santiago, citado por GOMES:

[...] o princípio da proporcionalidade...determina a busca de uma ‘solução de compromisso’, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo ao(s) outro(s), e jamais lhe(s) faltando minimamente com respeito, isto é ferindo-lhe seu ‘núcleo essencial’. Esse princípio, embora não esteja explicitado de forma individualizada em nosso ordenamento jurídico, é uma exigência inafastável da própria formula política adotada por nosso constituinte, a do ‘Estado Democrático de Direito’, pois sem a sua utilização não se concebe como bem realizar o mandamento básico dessa fórmula, de respeito simultâneo dos interesses individuais, coletivos e públicos. [53]

Relativamente às dimensões do princípio da proporcionalidade, a adequação das normas protetoras deve ser aferida sob critérios de utilidade de sua presença, ou seja, se de fato serão úteis ao fim perseguido. A necessidade diferencia-se da adequação por indagar se o meio empregado é o que menos limitação vai gerar ao outro direito em oposição, também de natureza fundamental. Já a proporcionalidade em sentido estrito, como critério na análise do conflito entre o princípio protetor e o da autonomia privada coletiva, diferentemente dos dois anteriores pelos quais se verificam condições fáticas, visa a aferição das condições jurídicas, de forma que as disposições de um princípio serão analisadas em relação às disposições do princípio conflitante, e de acordo coma máxima da ponderação, conforme leciona Ana Virginia, nesta brilhante observação:

[...].Considerando que o princípio protetor é adequado e necessário para que se alcance um patamar mínimo de dignidade para o trabalhador e justiça nas relações de trabalho, convém analisar em que medida essa proteção deve ser concretizada, de modo que os prejuízos causados à autonomia dos atores sociais não sejam superiores aos benefícios gerados pelas regras protetoras. [54]

Assim, na sua atuação a inspeção do trabalho deverá orientar-se por critérios que estejam em perfeita sintonia com essas exigências fáticas que possam sustentar validamente o princípio protetor no Direito do Trabalho.

Nesse norte, a técnica da ponderação de interesses será a ferramenta mais adequada, posto que é dirigida por critérios manejados com bastante objetividade, guiada pelo princípio da proporcionalidade considerado na sua total dimensão, ou seja, partindo da consideração de suas três etapas: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

A par desse contorno, a restrição imposta a um dos interesses em conflito, abarcados pelos princípios da proteção ou da autonomia privada, deverá estar claramente justificada. Nesse sentido os ensinamentos de SARMENTO:

[...] na ponderação, a restrição imposta a cada interesse em jogo, num caso de conflito entre princípios constitucionais, só se justificará na medida em que: (a) mostrar-se apta a garantir a sobrevivência do interesse contraposto, (b) não houver solução menos gravosa, e (c) o benefício logrado com a restrição a um interesse compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico. [55]

A restrição tratada pela técnica da ponderação de interesses é realizada tanto no plano abstrato quanto no plano concreto, embora não seja absoluta a aceitação de que a ponderação abstrata seja propriamente uma ponderação de interesses, face estar mais adstrita ao campo da interpretação. No que tange a ponderação concreta não se discute sua definição como técnica de ponderação de interesses. É exatamente esta ponderação que servirá à fiscalização do trabalho, chamada por SARMENTO de ponderação "ad hoc" [56] uma vez que ocorre diante de situações concretas.

Com efeito, nas ações fiscais são identificados casos em que o princípio protetor e o princípio da autonomia privada coletiva se chocam, como ocorre nos casos em que jornadas de trabalho negociadas provocam tamanho desgaste físico dos trabalhadores que colocam em risco sua segurança, sendo afetada a própria dignidade humana. Esse exemplo e inúmeros outros implicam tomada de decisão pela autoridade fiscalizadora que precisa optar entre qual regra deve prevalecer: a negociada ou a legislada.Eis aí o exemplo onde efetivamente a técnica da ponderação de interesses será utilizada, pois estaremos diante de dois princípios constitucionais: o da proteção e o da autonomia privada. Evidentemente que essa ponderação há de ser feita sob parâmetros reais que não deixem dúvidas quanto a sua oportunidade e validade em face dos valores que informam nossa Carta Magna.

5.3 - Aplicação do Princípio Protetor pela Técnica da Ponderação de Interesses sob a Chancela do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

A ponderação de interesses como técnica não atua circunscrita a um processo endogênico de aferição dos valores, que pudesse ser entendida como um método simplesmente procedimental. Inversamente, como provado por SARMENTO, é um método muito mais abrangente, e assim ensina:

A ponderação incorpora uma irredutível dimensão substantiva, na medida em que seus resultados devem se orientar para a promoção dos valores humanísticos superiores, subjacentes à ordem constitucional. Estes valores estão sintetizados no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que confere, que confere unidade teleológica a todos os demais princípios e regras que compõem o ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional. [57]

A dignidade da pessoa humana foi contemplada como um fundamento da República Federativa do Brasil, conforme dispõe o art. 1º, Inciso III, da Constituição Federal de 1988. Com isso, é o princípio que dá unidade a todo o sistema jurídico, tudo o mais tem de cuidar para não afastar de sua órbita, sob pena, caso atente contra essa dignidade, de ser afastado pela ação daqueles que têm como atribuição fazer valer o regramento jurídico.

A própria dimensão do princípio da dignidade da pessoa humana é questão infinita. Como bem sintetizou SARMENTO, "A essência do princípio em questão é difícil de ser capturada em palavras" e aponta este mestre para outra fera do saber, dizendo assim:

Como observou com acuidade Walter Claudius Rothenburg, em lição que parece ser talhada à foice para o princípio da dignidade humana,... sendo os princípios manifestação primeira dos valores constitucionais, é certo que estão carregados de sentimentos e emoções. Ignorá-los seria desconsiderar a importância simbólica da constituição e seu significado histórico enquanto projeção de expectativas da comunidade. Vai daí que é impossível uma compreensão exclusivamente intelectual dos princípios: eles também são sentidos (experimentados no plano dos afetos). [58]

Flutua no entorno da pessoa humana tudo o que é organizado para permitir a existência do homem e, em especial, o ordenamento jurídico há de ser justificado pela finalidade da garantia da vida digna e nunca por arredá-la qualquer milímetro para que outro interesse seja privilegiado, eis que primeiro o ser humano, que fora o primeiro a chegar, precedendo ao Direito e ao Estado, estes só se justificam pela existência daquele. A pessoa humana deve ser concebida e tratada como "valor-fonte" do ordenamento jurídico, como leciona REALE. [59]

E neste sentido o princípio da dignidade da pessoa humana é o núcleo de todo o sistema jurídico que em torno dele gravita e por ele deve se alimentar, devolvendo-lhe em forma de garantia toda a energia necessária para sua existência, formando assim, uma simbiose perfeita. Essa idéia pode ser observada no que escreveu com pena-de-ouro Luzia Marques da S. C. Pinto, nestes termos " o poder constituinte, ao estabelecer o estatuto dos governantes e governados, isto é, domínio dos homens sobre homens, não pode divorciar-se da idéia de que a legitimidade do poder assenta nos direitos da pessoa humana, sendo os indivíduos simultaneamente a causa eficiente e a causa final de toda a organização política." [60]

Imperativo aqui destacar que o princípio da dignidade da pessoa humana responde também numa dimensão negativa, ou seja, impõe limites inafastáveis para a atuação do Estado, devendo ser invalidado qualquer ato estatal que atente contra esta dignidade, seja ele ato normativo, administrativo ou jurisdicional, pois estará desprovido de eficácia jurídica, mesmo não afrontando qualquer outro dispositivo da Constituição.

Assim, como destacou PEREZ LUÑO, citado por Daniel Sarmento, este princípio tem uma dupla dimensão constitutiva. Uma negativa, que é impeditiva da submissão da pessoa humana a ofensas e humilhações, e outra positiva, que impõe o reconhecimento da autonomia imanente ao Homem, pressupondo a garantia de condições para o pleno desenvolvimento da sua personalidade. [61] Esta dimensão positiva traz para o Estado a obrigação de atuar efetivamente para que a dignidade humana prevaleça em todos os sentidos no âmbito do território, ou seja deve promover ações que possibilite a cada indivíduo ter alimentação adequada, educação básica, saúde, moradia e outros direitos elementares do homem.

Também no âmbito das relações privadas, patrimonialista ou não, o princípio em questão deve obrigatoriamente ser respeitado, pois é condição inafastável nas relações particulares, individuais e coletivas, ante a posição de privilégio que ocupa ele no texto constitucional e por estar carregado de valores substanciais ligados à pessoa humana. Essa a sacação de SARMENTO que bem a liga ao contexto desta questão: "ficar superada a dicotomia direito público/ direito privado, de construção romana, em face da progressiva constitucionalização do direito privado, que passa a gravitar em torno da constelação de princípios constitucionais, capitaneados por aquele que ocupa a posição-mor: o princípio da dignidade da pessoa humana". [62]

Tal a magnitude desse princípio no ordenamento jurídico brasileiro, embora carregado de certo subjetivismo pela sua indeterminação, que funciona também como fundamento para integração da ordem constitucional. Pela mesma importância, é destacada a função hermenêutica por ele desempenhada, como observa SARMENTO quando magnificamente exarou em sua obra inaugural A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, nestes termos:

[...] Como fundamento basilar da ordem constitucional, o princípio da dignidade da pessoa humana configura diretriz inafastável para a interpretação de todo o ordenamento. Na condição de vértice axiológico da Constituição, o cânone em pauta condensa a idéia unificadora que percorre toda a ordem jurídica, condicionando e inspirando a exegese e aplicação do direito positivo, em suas mais variadas manifestações. É a partir desta perspectiva que o princípio da dignidade da pessoa humana revela-se como guia substantivo para a realização da ponderação entre interesses constitucionais. [63]

Sob essa perspectiva é que a fiscalização do trabalho, mediante situações concretas advindas da flexibilização, deve atuar para aplicação do princípio protetor no Direito do Trabalho, já que a dignidade da pessoa humana posta-se como o excelente critério substantivo na realização da ponderação de interesses constitucionais. Nessa atuação, logicamente que a ponderação deverá tomar a dignidade da pessoa humana não isoladamente sob o aspecto individualista, mas sobretudo sob o aspecto personalista, onde o homem possa ser contemplado em sua dimensão coletiva, em que a sua proteção individual seja o reflexo do desejo da sociedade que elegeu e construiu o modelo de Estado que ora contempla os princípios constitucionais presentes nessa proteção da pessoa humana. Isso implica respeito àquelas regulamentações particulares, sustentadas pelo princípio da autonomia privada coletiva, que não atentem contra a dignidade da pessoa humana e a outros interesses de ordem pública. Por outro lado, essa autonomia privada não prevalecerá quando atentar contra essa condição máxima do ser humano: a dignidade, devendo o Estado atuar positivamente para afastar qualquer ato, público ou privado, que represente aviltamento da dignidade da pessoa humana.

Revelado está, ao contrário do propalado em certas avaliações, que o fundamento jurídico para a defesa dos direitos dos trabalhadores não se reduz por simples "reforma trabalhista", posto que os princípios constitucionais do Direito do Trabalho são cláusulas pétreas, são normas fundamentais.

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Sobre o autor
José Manoel Machado

bacharel em Direito e Administração de Empresas, auditor-fiscal do Trabalho no Espírito Santo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, José Manoel. A fiscalização do trabalho frente à flexibilização das normas trabalhistas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 644, 13 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6599. Acesso em: 19 nov. 2024.

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