4.Estudo de casos
Vistos os procedimentos de atuação da Corte, analisar-se-á dois casos em que ela foi o recurso jurídico capaz de efetivar a proteção aos direitos humanos de dois trabalhadores no âmbito do exercício de seus labores. Dessa forma, é possível ilustrar como funciona este eficaz mecanismo internacional de proteção às garantias fundamentais na Europa.
Foram escolhidos dois casos em que o Estado falha na efetivação das garantias estabelecidas no Tratado, mas por motivos diferentes. No primeiro, havia arcabouço legislativo nacional para resolver a questão. Contudo, as instâncias jurídicas do país falharam e a vítima da violação pôde recorrer à Corte, quando já esgotadas as tentativas no âmbito de seu país de moradia.
No segundo ocorre uma omissão legislativa. O país, no caso a Inglaterra, deixou de criminalizar o trabalho escravo em sua legislação, restringindo este crime ao caso de tráfico de pessoas com fins de exploração. Contudo, o tráfico de pessoas é apenas um dos meios pelos quais se pode submeter um ser humano a trabalho escravo. Todas as outras formas estavam, assim, desprotegidas pela população. A empregada, imigrante ilegal, recorreu à Corte e conseguiu ser indenizada pela violação sofrida.
4.1 Caso sobre violação ao art. 14 (proibição de discriminação) da Convenção Europeia de Direitos Humanos
O artigo 14 da Convenção Europeia de Direitos Humanos estabelece que o gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação.
Em recente caso (García Mateos versus Espanha , processo nº 38285/09, julgamento 19.2.2013), a Corte Europeia constatou uma falha em julgamento que impôs discriminação de gênero contra uma mãe trabalhadora.
Em fevereiro de 2003, embasada na regulação trabalhista, a reclamante pediu ao seu patrão a redução de suas horas de trabalho para tomar conta de seu filho, menor de seis anos de idade, conforme o limite. Quando o empregador recusou, ela trouxe a demanda ao Tribunal do Trabalho, mas sua reclamação foi julgada improcedente. No julgamento, em 2007, a Corte Constitucional sustentou a procedência da reclamação da trabalhadora. Entendeu o Tribunal que o principio de não-discriminação de gênero fora desrespeitado, uma vez que o empregador a impossibilitou conciliar a vida profissional com a familiar.
O caso foi remetido para novo julgamento no Tribunal do Trabalho. Ainda em 2007, o Tribunal Laboral julgou improcedente a demanda e a reclamante se valeu de novo recurso. Em 2009, a Corte Constitucional entendeu que seu julgamento de 2007 não havia sido respeitado e declarou nulo e sem efeitos o julgado do Tribunal do Trabalho. Porém, decidiu inapropriado remeter de novo o caso para julgamento do Tribunal do Trabalho para nova decisão, já que, durante este percurso, o filho da reclamante já havia extrapolado a idade limite de seis anos. Em sua decisão, ainda, o Tribunal Constitucional disse não poder decidir sobre eventual compensação, já que o Regulamento Institucional do órgão não o atribuía competência para tanto.
Foi requerido do Estado que permitisse aos reclamantes obter efeitos das decisões dadas pelos Tribunais nacionais. O Tribunal Constitucional entendera, em sua decisão de 2009, que a reclamante tinha razão, conforme seu próprio julgado de 2007, existindo no caso uma violação do principio de não-discriminação. Uma decisão de um Tribunal não retira da reclamante o status de vítima, ao menos que as autoridades remediem ou façam remediar o dano sofrido. A violação reconhecida pela Corte Constitucional não havia, até esta data, sido compensada, a despeito de dois julgamentos sobre o assunto.
A intenção inicial da reclamante não era a de perquirir compensação, mas sim de reconhecer seu direito à redução na jornada de trabalho para poder cuidar de seu filho menos de seis anos. Ela clamou por reparação do dano apenas quando não podia mais reclamar o direito a redução nas horas de trabalho, pois seu filho já havia passado da idade limite de seis anos. A recusa de compensação, feita pela Corte Constitucional em sua decisão de 2009, não deu outra alternativa à reclamante senão levar sua demanda a outro órgão judicial ou administrativo. E verdade que, em virtude do alcance da idade limite pela criança ao final do procedimento, não era mais possível conceder amparo ao direito questionado. Mesmo assim, deveria a Corte indicar, no contexto do caso, uma alternativa que amparasse o direito lesado. É simples observar que a proteção conferida pela Corte Constitucional não foi efetiva. Além disso, o pedido anteriormente feito pela reclamante para que o Tribunal do Trabalho concedesse a redução na jornada de trabalho não logrou êxito, a despeito das duas decisões desfavoráveis deste Tribunal terem sido declaradas nulas e sem efeitos. Soma-se o fato de que seu recurso foi inútil, uma vez que o Tribunal Constitucional se declarou impossibilitado de compensar a reclamante pela violação de seu direito fundamental. Dessa forma, a falha em restaurar os direitos integrais da reclamante tornou ilusória a proteção concedida através do apelo a Corte Constitucional. A Corte Europeia concluiu pela violação (unânime) do artigo 14 da Convenção e pagamento de 16.000 euros em virtude de dano moral (HUDOC, 2013, disponível em http://hudoc.echr.coe.int/eng).
A Corte apreciou um caso de discriminação à mulher no âmbito do trabalho. A empresa desrespeitou o direito de sua empregada à redução na jornada de trabalho para poder cuidar de seu filho menor de seis anos (direito previsto em legislação nacional). Tendo sido frustradas todas as suas demandas requerendo à aplicação da redução da jornada nos Tribunais do Trabalho e na Corte Constitucional, a empregada recorreu à Corte Europeia de Direitos Humanos. Na data de julgamento da Corte, como o filho já estava com mais de 6 anos, a decisão estabeleceu que se fosse paga à reclamante uma indenização por dano moral.
Embora a legislação nacional previsse a redução da jornada de trabalho da mulher com filho menor de seis anos, a trabalhadora não conseguiu ver seu direito efetivado em seu país. Recorreu à Corte Europeia sob alegação de violação de direitos humanos, desta feita relacionados a não discriminação no ambiente de trabalho. Neste caso, a Corte foi chamada a atuar porque o Estado não foi capaz de cumprir sua própria legislação. Não houve omissão legislativa por parte do Estado-membro, mas sim falta de capacidade de tornar efetivo em um caso concreto a proteção à qual se comprometeu por meio do Tratado.
4.2 Violação do artigo 4º (proibição de trabalho escravo e forçado) da Convenção Europeia de Direitos Humanos (decisão unânime).
O artigo 4° da Convenção Europeia de Direitos Humanos dispõe que ninguém pode ser mantido em escravidão ou servidão, nem constrangido a realizar trabalho forçado ou obrigatório.
Um caso marcante julgado pela Corte (caso Sra. C.N versus Reino Unido, processo nº 4239/08, julgamento 13/11/2012) envolvendo violação do artigo 4º foi o de uma mulher de Uganda que reclamou ser forçada ao trabalho como forma de sobrevivência no Reino Unido. A Corte entendeu que as provisões legislativas do Reino Unido são inadequadas para evitar praticas contrárias ao Artigo 4º da Convenção. Como a legislação britânica não criminaliza o trabalho forçado, as investigações do que alegava a vitima se tornaram sem efeitos.
A requerente, Sra. C.N., nascida em 1979, em Uganda, deixou seu país rumo ao Reino Unido em setembro de 2002, com ajuda de seu primo, S., que a permitiu entrar no país com passaporte e visto falsos. De acordo com a Requerente, escapou de sua terra natal devido a agressões físicas e sexuais que sofria. No começo de 2003, a Sra. C.N. começou a trabalhar para um casal de idosos iraquianos (Sr. e Sra. K). Segundo afirma, estava sempre à disposição por telefone, dia e noite, já que o Sr. K sofria de Mal de Parkinson. Ainda de acordo com a denunciante, seu salário era enviado ao agente que conseguiu o emprego com a família K., que passava percentual a seu primo, entendendo, aparentemente, que esta quantia seria paga a ela. Contudo, a denunciante nega ter recebido qualquer quantia significante por seu trabalho. Durante aquele tempo, seu passaporte estava retido. Em agosto de 2006, a denunciante sentiu-se mal e ficou hospitalizada por um mês, tendo sido diagnosticada como HIV positiva e sofrendo de psicoses. Após ter tido alta hospitalar, a denunciante foi abrigada pela autoridade local, que fez pedido de asilo, tendo sido este recusado. (HUDOC, disponível em http://hudoc.echr.coe.int/eng)
Depois de o advogado da requerente ter escrito à policia em abril de 2007, a Equipe Metropolitana de Policia de Tráfico Humano iniciou uma investigação e entrevistou Sra. C.N. Eles concluíram que não havia evidências substanciais de tráfico de pessoas no caso dela.
O chefe dos serviços legais do Centro de Trafico Humano do Reino Unido concluiu que enquanto ela trabalhava na casa dos K., sra. C.N. estava trancafiada e ganhava algum dinheiro. Havia, porém, uma disputa sobre o dinheiro e seu primo ficou com a maior quantia. Depois de o advogado da Sra. C.N. ter pedido à polícia para incluir no processo a acusação de escravidão ou trabalho forcado, a polícia começou a conduzir investigações mais profundas em janeiro de 2009. Na carta ao advogado da Sra. C.N., em agosto de 2009, a polícia disse que havia concluído as investigações, baseadas, sobretudo, nas conclusões do Centro de Tráfico Humano de que as circunstâncias do caso em análise não aparentavam constituir crime de tráfico de pessoas com propósito de exploração, baseado no Tratado de Asilo e Imigração de 2004 (HUDOC, 2012, disponível em http://hudoc.echr.coe.int/eng).
Em 6 de abril de 2010 a Seção 71 do Coronersand Justice Act de 2009 passou a vigorar e fez da escravidão, da servidão e do trabalho forcado crimes puníveis com multa e/ou até quatorze anos de prisão. Esta previsão não tinha efeito retroativo.
Com base no artigo 4º (proibição do trabalho escravo e forcado), artigo 8º (direito ao respeito pela vida privada e familiar) e artigo 13 (direito a um remédio efetivo) da Convenção, a requerente alegou que o tratamento ao qual fora submetida configurou servidão doméstica e que as autoridades foram incapazes de investigar seu caso devido à falta de legislação no Reino Unido, que no momento do fato criminalizasse servidão doméstica e trabalho forçado ou compulsório.
A Corte notou que as autoridades foram notificadas das alegações de servidão doméstica feitas pela requerente após ela passar mal em um banco, em agosto de 2006. Em seu pedido subseqüente por asilo queixou-se ,particularmente, que havia sido forçada a trabalhar para a família K. sem remuneração. Observou a Corte que as circunstâncias do caso eram notadamente similares as do caso Siliadin versus France, no qual a Corte confirmou que o artigo 4º impôs obrigação específica e positiva aos Estados membro de penalizar e processar de forma efetiva qualquer ato que objetive manter uma pessoa em situação de escravidão, servidão ou trabalho forcado.
A Corte, então, considerou que as queixas da requerente levaram a uma suspeita fundada de servidão doméstica, que impunha às autoridades britânicas a obrigação de investigá-la. A Corte notou que as investigações das autoridades indicaram fortemente que as alegações da requerente eram plausíveis.
As previsões legislativas em vigor no Reino Unido naquele tempo eram inadequadas para garantir proteção efetiva e prática contra tratamentos dissonantes do artigo 4º. Dessa maneira, as autoridades estavam limitadas a investigar e punir crimes que frequentemente – mas não necessariamente – acompanham crimes de escravidão, servidão ou trabalho forçado. Vitimas de servidão doméstica que não tenham sido também vitima de algum desses demais crimes relatados eram deixadas desprotegidas.
A Corte, então, examinou se a inexistência de legislação específica que criminalizasse a servidão doméstica impedira de fato as autoridades de conduzirem uma investigação efetiva das queixas da requerente. Considerou, também, que a investigação foi conduzida por uma unidade especializada somente no crime de tráfico de pessoas com o fim de exploração, como indicado pelo Ato de Asilo e Imigração de 2004.
Consequentemente, como a servidão doméstica envolve uma dinâmica complexa, em que pese as sutis possibilidades em que um indivíduo pode cair no controle de outro, as autoridades britânicas não foram capazes de fazer a investigação no caso da Sra. C.N., já que havia lacuna de lei específica quanto à servidão doméstica. Particularmente, nenhuma tentativa foi feita para entrevistar S. e não foi dada a devida relevância às alegações de que o passaporte da requerente havia sido confiscado, que S. não enviava seus salários para ela conforme combinado e que era ameaçada de reporte às autoridades de imigração, embora estes fatos sejam identificados pela Organização Internacional do Trabalho como indicativos de trabalho forçado.
A Corte concluiu que a investigação das alegações de servidão doméstica no caso da Sra. C.N. foram ineficazes devido à falta de legislação específica que criminalizasse o fato no Reino Unido no momento da investigação, em desacordo com o disposto no artigo 4º.
Logo, a Corte definiu que o Reino Unido dever pagar a requerente 8.000 euros em virtude de dano moral e 20.000 euros de custas processuais.
Baseando-se no artigo 4 º (proibição da escravidão e do trabalho forçado), no artigo 8 (direito ao respeitoda vida privada e familiar) e no artigo 13 (direito a um recurso efetivo), o requerente alegou que o tratamento a que ela foi submetida havia sido de servidão doméstica e que as autoridades foram incapazes de investigar seu caso, devido à ausência de legislação no Reino Unido que criminalizasse a servidão doméstica e trabalho forçado ou obrigatório no decorrer das investigações.
O trabalho em condições análogas a de escravo é uma das mais graves ofensas à dignidade do ser humano, interferindo inclusive na sua liberdade de ir e vir, em sua honra (tanto objetiva como subjetiva) e na saúde física e psicológica.
Assim, “uma compreensão da dignidade vinculada à noção de trabalho decente e ao conteúdo de honra, tornando-se um instrumento de inclusão e de garantia de respeito aos direitos fundamentais do trabalhador, evidencia a tremenda indignidade do trabalho escravo”(GOSDAL, 2007, p. 147).
Neste caso verificou-se a ocorrência de trabalho forçado (ou trabalho escravo em sentido amplo) no Reino Unido. A vítima, uma mulher africana, teve todas as suas demandas negadas em plano nacional, diante de ausência de legislação específica sobre trabalho forçado e servidão. Diante disso, recorreu à Corte Europeia de Direitos Humanos e conseguiu que o Estado fosse condenado a indenizá-la por tamanho dano sofrido.
Diferentemente do primeiro julgamento apresentado, neste a Corte lidou com uma omissão legislativa por parte de um dos Estados signatários da União Europeia. Não foi a ineficácia na aplicação de uma lei, mas a própria inexistência da lei que ensejou à requerente indenização. A indenização tem não só o papel de ressarcir a vítima de trabalho escravo, mas também de exigir seu combate em todas as legislações nacionais submetidas à Corte Europeia.