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As tendências do Direito Civil brasileiro na pós-modernidade

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23/04/2005 às 00:00
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3) REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL. CONSTITUIÇÃO FEDERAL E CLÁUSULAS GERAIS. CÓDIGO CIVIL DE 2002.

Antes de enfrentarmos os temas propostos neste capítulo, é necessário fazermos algumas considerações de cunho metodológico, imprescindíveis para a compreensão da constitucionalização do Direito Civil, fenômeno que parece carregar em si verdadeiro paradoxo.

Para tanto, devemos compreender, em primeiro lugar, que a dicotomia da dogmática do século XIX, restaurada pelo Iluminismo, que estabeleceu uma profunda separação entre Direito Público e Privado não mais parece fazer sentido hodiernamente.

Todas as normas infraconstitucionais – que caracterizam uma pluralidade de fontes normativas – devem se submeter aos princípios e valores que a sociedade brasileira identifica como prevalentes, quais sejam, os princípios e valores constitucionais.

Com a queda da dicotomia que segmentava o Direito Privado do Público, é um contra-senso afirmar que as normas constitucionais se destinam somente ao legislador. Todas elas têm aplicação direta. Seus princípios atuam tanto no plano da justificação quanto no plano da aplicação, e são, inclusive, auto-executáveis.

Diante disso, a Constituição da República se situa no ápice do sistema normativo. Possui, um papel unificante tendo em vista o amplo compromisso social que suas normas representam.

Conforme nos ensina o Prof. Gustavo Tepedino (TEPEDINO, 2003, p. 119-120), a sociedade contemporânea alcançou três conquistas fundamentais no campo jurídico.

A primeira dessas conquistas seria a descoberta do significado relativo e histórico dos conceitos jurídicos, que sempre foram encarados como neutros e absolutos. Hoje, inclusive, nos parece óbvio que nenhum direito, dever ou construção jurídica seja revestido de absoluteidade. Cada instituto jurídico se torna insuficiente fora de um contexto histórico ou cultural.

A segunda conquista elencada pelo Prof. Gustavo Tepedino é a superação da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado. Esta classificação não serve para atender reivindicações sociais, onde é necessário funcionalizar as relações patrimoniais a valores constitucionais, tendo em vista o amplo compromisso social de nossa Constituição Federal de 1988.

Por fim, a terceira conquista se traduz na absorção definitiva pelo texto constitucional de valores que presidem a iniciativa privada e seus institutos (família, propriedade e contrato).

Por tudo isso, fala-se, atualmente, em Direito Civil-Constitucional. A atividade interpretativa do Direito passa necessariamente por esta perspectiva, onde os princípios constitucionais deixaram de ser, há muito, meros princípios políticos.

3.1) Ser humano e sua dignidade: centro epistemológico do ordenamento jurídico.

Neste contexto, onde a dignidade da pessoa humana é colocada como fundamento da República Brasileira, sendo valor essencial de nosso sistema jurídico, encontramos mais uma razão para que a dicotomia público-privado seja superada, tornando-se possível alcançar a plena tutela da pessoa humana.

No estado Democrático de Direito, delineado pela Constituição Federal de 1988, que tem como entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o antagonismo público-privado perdeu definitivamente o sentido. (MORAES, 1993, p. 26)

Assim, os valores existenciais estão no vértice do ordenamento jurídico. A pessoa humana é o valor que deve orientar todo e qualquer ramo do Direito. Todos – absolutamente todos – os institutos jurídicos devem ser funcionalizados com o objetivo de promover o pleno e integral desenvolvimento do homem.

Desta feita, a "patrimonialização" tradicional das relações civis, que ainda persiste em nosso novo Código Civil, é totalmente incompatível com os valores constitucionais fundados no princípio da dignidade da pessoa humana. A primazia da pessoa humana é condição essencial de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais vigentes.

Diante disso, fala-se em "repersonalização" das relações civis, movimento que objetiva recolocar o ser humano no centro do Direito Civil, lugar que sempre deveria ter ocupado, ao invés do patrimônio, que norteou nosso ordenamento juscivilístico até então.

Nesse aspecto, cumpre fazermos algumas ponderações para indagarmos se esse fenômeno não seria melhor denominado como "personalização" do Direito Civil.

O breve histórico que fizemos de nossa civilística e daquelas que a influenciaram nos revela que o ser humano e os valores existenciais jamais ocuparam o centro do Direito Civil. Tal posição sempre fora inegavelmente reservada ao patrimônio, considerado, por muito tempo, a verdadeira medida do homem.

A proposta do atual movimento não é confundível nem mesmo com o antropocentrismo preconizado pelo Iluminismo, razão pela a denominação "personalização" do Direito Civil parece mais adequada aos fins que o fenômeno representa.

Neste sentido, Luiz Edson Fachin defende, ainda, a existência de um patrimônio personalíssimo, relacionado com a "verificação concreta de uma esfera patrimonial mínima, mensurada pela dignidade humana à luz do atendimento de necessidades básicas ou essenciais". (FACHIN, 2001, p. 03)

A tese de Fachin é muito interessante, pois propõe a colocação da pessoa e suas necessidades fundamentais, em primeiro plano e coaduna-se, portanto, com as tendências de "despatrimonialização" ou "personalização" do Direito Civil.

Fachin fundamenta suas formulações na tutela constitucional ao direito à vida, prevista no artigo 5º, bem como no artigo 170 da Carta Magna, que comanda o condicionamento da ordem econômica à garantia de uma existência digna a todo ser humano.

Este autor preconiza que a defesa da vida, plena e digna, é a única seiva que pode animar o Direito e busca, em sua tese, uma nova conceituação do patrimônio, capaz de colocar a pessoa humana e seus valores personalíssimos no centro das relações jurídicas.

3.2) Nova técnica legislativa: Cláusulas Gerais

Antes de adentrarmos no conceito das cláusulas gerais, sua função e natureza jurídica, é necessário que pontuemos alguns preceitos de interpretação da lei em nosso sistema jurídico contemporâneo.

A esta altura, não restam dúvidas a respeito da supremacia absoluta dos princípios e regras constitucionais sobre todo o ordenamento jurídico, nem tampouco de que a estrutura legislativa adotada por nossa Carta Magna forma um sistema que rege tanto as relações jurídicas públicas quanto as privadas.

Entendido este ponto, devemos considerar que a interpretação das normas constitucionais e da legislação infra-constitucional não pode ser estática. Ao contrário, deve ser dinâmica para se adaptar à realidade social do momento da aplicação da norma, pois o significado de um texto legal pode variar no tempo e no espaço.

Todas estas premissas são de extrema relevância para analisarmos a harmonia do Código Civil de 2002 – e de sua técnica legislativa - com a Constituição Federal de 1988.

Bem, a lei, em sua forma tradicional, se apresenta com conteúdo rígido e fechado; completamente estático, a ponto de não abrir espaço algum para o juiz interpretar e aplicar a lei em face do caso concreto. Contudo, conforme leciona Joaquim Augusto Delgado:

Essa técnica legislativa, na época contemporânea, não se coaduna com as exigências impostas pelas relações jurídicas vividas pelos membros da sociedade humana, haja vista a complexidade que as envolvem e as constantes mutações a que se submetem durante o curso da produção dos seus efeitos. (DELGADO, 2003, p. 395)

Diante disso, o novo Código Civil é composto por um sistema de regras móveis que não se deixam envelhecer com o transcorrer do tempo, tendo em vista a possibilidade de sua adaptação, no momento da aplicação, através da interpretação.

Delgado, então, ensina que ’‘a técnica legislativa moderna se faz por meio de conceitos gerais indeterminados e cláusulas gerais, que dão mobilidade ao sistema, flexibilizando a rigidez dos institutos jurídicos e dos regramentos do direito positivo. (DELGADO, 2003, p. 395)

Assim, as cláusulas gerais se afiguram como fórmulas genéricas que determinam comportamentos não pormenorizados, ao contrário das regras, destinadas a regular, especificamente, hipóteses fáticas determinadas. Tratam-se de normas orientadoras e se dirigem ao julgador, dando-lhe certa liberdade para decidir, preenchendo seu conteúdo diante do caso concreto.

Possuem natureza jurídica de norma jurídica, pois é fonte criadora de direitos e obrigações. Não podem, por conseqüência, ser consideradas como princípios ou regras de interpretação.

Constituem técnica legislativa muito útil para a atualidade, pois o legislador é ciente de sua impotência para regular a complexidade de fatos sociais que surgem no seio da sociedade contemporânea, extremamente pluralizada e multifacetada.

Porém, a despeito de revelarem algumas vantagens, vez que evitam o engessamento do Direito, apresentam alguns riscos, sobretudo, na atividade interpretativa. Podem ser campo fértil para o subjetivismo exacerbado dos órgãos jurisdicionais, a quem resta a tarefa de preencher seu conteúdo em face do caso concreto.

A solução para evitar o subjetivismo e a discricionariedade dos julgadores é condicionar a aplicação das cláusulas gerais à normatividade constitucional. Por esta razão, no início deste tópico, frisamos os preceitos interpretativos da lei na contemporaneidade.

Assim, é forçoso entender que ao juiz é dada certa discricionariedade ao preencher os conteúdo da cláusula geral, mas tal discricionariedade encontra limites impostos pela normatividade constitucional.

Sua função é de instrumentalizar o Direito e "atuam com o objetivo fundamental de cumprir preceitos constitucionais de valorização da dignidade da pessoa humana e da cidadania..." (DELGADO, 2003, p. 397)

Deste modo, levando-se em consideração os limites constitucionais para a interpretação e aplicação das cláusulas gerais e atentos ao fato de que um sistema mais aberto contribui para a ocorrência de soluções mais justas e corretas no caso concreto, devemos concluir pela perfeita compatibilidade dessa nova técnica legislativa com a Constituição Federal e com as exigências sociais da contemporaneidade.

3.3) Código Civil de 2002

Dentre as diretrizes fundamentais, elencadas pelos elaboradores do novo diploma civil brasileiro como orientadoras de sua feitura, estão a compreensão do código como lei básica e não global do direito privado e a manutenção da estrutura do código anterior, no sentido de preservar, sempre que possível, a redação do Código Beviláqua.

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A esse respeito, J. M. Othon Sidou escreve:

É natural e óbvio que as leis de grande abrangência, tal o Código Civil, absorvam inovações pertinentes, do mesmo modo como, ao inverso, mantenham institutos já desfigurados e que bem mereciam o repouso no arquivo da História do direito. Num caso, a ânsia da renovação; noutro, o apego à tradição. (SIDOU, 2003, p. 361)

A comissão de elaboradores, do alto de seu brilhantismo, que me perdoe: mas, na minha profunda ignorância, ouso dizer que um Código Civil, no contexto político, econômico e social de nossa contemporaneidade não carrega impertinências: revela-se como uma verdadeira impertinência.

Seus mentores justificaram a atualização do código civil com o objetivo de superar os pressupostos individualistas que condicionaram o diploma de 1916, bem como para dota-lo de novos institutos jurídicos, reclamados por nossa sociedade contemporânea.

Aqui, somos forçados a fazer nova pausa, tendo em vista a impossibilidade de deixar de comentar tamanha incoerência. Os códigos são fruto da ideologia liberal, profundamente marcada pelo individualismo, e expressão do positivismo jurídico, que leciona um sistema fechado e exausto em si. A meu ver, é impossível pretender fabricar um novo código que não esteja inserido neste contexto e marcado por tais ideologias. Contudo, sigamos adiante.

Nortearam-se pela premissa de não tutelar institutos jurídicos que não estivessem "sedimentados" na sociedade e justificaram tal fato alegando deixar para a "legislação aditiva" a disciplina destas questões, em virtude das mutações sociais em curso.

Paradoxalmente, mesmo confessando não desejar erigir o Código Civil ao centro do ordenamento privado, elegeram o objetivo de incluir em sua sistemática as matérias reguladas pelas leis especiais promulgadas após 1916 - o que chega a nos arrepiar.

Além da tarefa hercúlea de aglutinar os institutos do código de 1916 e os das leis especiais vigentes desde então, desejaram acolher modelos jurídicos elaborados pela jurisprudência durante todo o último século – o que intensifica ainda mais nosso arrepio.

Depois de tudo isso, afirmam que procuraram dar ao Código Civil um sentido operacional, estruturando instrumentos capazes de promover paz social e desenvolvimento.

Parecem ter esquecido que a lei codificada, engessada, estática no tempo, ao contrário de promover desenvolvimento social, o paralisa e causa atraso.

Justamente no instante em que o ordenamento juscivilístico começa a se ressistematizar, pelo empenho da doutrina e da jurisprudência, justamente no instante em que ganha contornos de algo simétrico e inteligível, surge o fantasma de um novo Código Civil, que ameaça ruir todos os esforços de ressistematização envidados até o presente.

É um código que já nasce de costas para o presente, ao menoscabar o paradigma do Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, nascerá já necessitando de releitura urgente. Salta aos olhos que seria muito mais sábio proceder-se a uma reforma paulatina do Código de 1916, à semelhança do que se vem fazendo com o Código de Processo Civil. (FIUZA, 2003, p. 33)

3.3.1) O Código e seus destinatários no contexto da descodificação

Toda norma imposta pelo Poder Público deve estar adequada aos costumes e às aspirações que formam o substrato de uma sociedade, sob pena de ser cunhada pela ilegitimidade, sobretudo, no Estado Democrático de Direito em que vivemos.

Depois de se arrastar no Congresso nacional por décadas, o texto que agora a nós é imposto para o devido cumprimento, é um desconhecido para a grande maioria de seus destinatários.

Nenhuma das partes do processo de elaboração, aprovação e promulgação do novo Código Civil foi objeto de discussão com a sociedade que ele se destinaria a regular.

O que é de causar espanto é que dentre as diretrizes fundamentais da comissão elaboradora, elencou-se a "consulta" de entidades públicas e privadas, representativas dos diversos círculos de atividades e interesses, objeto da disciplina normativa, a fim de que a nova lei, além de se apoiar nos entendimentos legislativos, doutrinários e jurisprudenciais, tanto nacionais como alienígenas, "refletisse os anseios legítimos da experiência social brasileira, em função de nossas peculiares circunstâncias".

Infelizmente tal diretriz não foi cumprida. Ausente a discursividade, que deveria envolver um projeto desta envergadura, nos resta estudar, entender e procurar adequar a lei - que nos fora friamente imposta - à realidade atual, na maior medida possível.

Ademais, já sabemos como a codificação limita e restringe. Os valores postos são apenas aqueles válidos para um determinado momento histórico, que não podem se transportar através do tempo e se adaptar às mutações sociais que se operam.

Por esta razão, severas são as críticas de nossa doutrina em relação à codificação, sobretudo, na contemporaneidade, que nos apresenta uma sociedade complexa e plural: "...[ ] o momento histórico e sócio-jurídico que vivenciamos, às vésperas do Terceiro Milênio, não comporta o engessamento, a própria petrificação de instituições tão importantes, em plena ebulição". (FRANÇA, 1999, p. 19)

Em sua esteira, o Prof. Gustavo Tepedino complementa:

... [ ] uma codificação não surge por acaso. Expressa momento de unificação política e ideológica de um povo, fazendo prevalecer o conjunto de regras que o sintetiza. Assim foi o século XIX, após a revolução Francesa, assim se deu na Europa do pós-guerra, com a derrubada dos governos totalitários.

Tais circunstâncias históricas não mais existem: deram lugar a cenário inteiramente diverso, pluralista e multifacetado, onde os grupos políticos emergentes manifestam-se através do robusto conjunto de leis especiais, que regula de maneira setorial a atividade privada e parece insuscetível de unificação no plano das leis ordinárias. (TEPEDINO, 2004, p.499-500)

Cabe a nós, operadores do Direito, a assunção de um pensamento crítico perante o caminho traçado por nosso legislador, pois somente a partir dele será possível reformular o Direito Civil brasileiro de modo que satisfaça às reais necessidades de seus destinatários, tendo em vista a irrelevante função do Direito Civil na vida humana, por ser aquele que rege a vida do homem comum e suas relações jurídicas cotidianas, desde as mais simples até as mais intrincadas e complexas.

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Sobre a autora
Renata de Lima Rodrigues

advogada em Belo Horizonte (MG),professora da PUC/MG, especialista em Direito Civil pelo Instituto de Educação Continuada da PUC/MG, mestranda em Direito Privado pela PUC/MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Renata Lima. As tendências do Direito Civil brasileiro na pós-modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 655, 23 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6617. Acesso em: 28 mar. 2024.

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