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O direito de propriedade e o advento da função social

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03/07/2018 às 13:30
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2. A Função Social da Propriedade

2.1. Histórico

A função social não se aplica apenas ao direito de propriedade, é um princípio que pode reger vários outros institutos jurídicos, como os contratos. Na Constituição Federal de 1988, no entanto, ela se presta quase que exclusivamente a tratar da propriedade. A primeira citação está no inciso XXIII do artigo 5º, quando estabelece que a propriedade atenderá a sua função social, sendo citada novamente nos artigos 170, III, 182, §2º, 185, parágrafo único, e 186, caput, todas tratando da propriedade. Trata-se de uma transição dos poderes proprietários para deveres-poderes proprietários (TEIZEN JR, 2004, p. 132).

A função social da propriedade ou de qualquer outro instituto jurídico é fruto do contexto histórico da virada do século XIX para o XX. Foi um período de revolta em boa parte do Ocidente, onde as mazelas da Revolução Industrial estavam no auge. A pobreza da classe da trabalhadora era vista como algo irreversível sem a intervenção estatal; não se entendia aquele momento como transitório para o progresso, mas definitivo se nada fosse feito de cima para baixo, ou seja, do poder estatal para a sociedade. Nasce nesse período a social democracia, uma tentativa de dar ao Estado obrigações sociais além das clássicas obtidas pelo liberalismo, quais sejam, manter a ordem, garantir o cumprimento dos contratos e dar igualdade perante a lei.

Pode-se ter como origem desse movimento a encíclica católica Rerum Novarum, lançada em 1891 pelo Papa Leão XIII, apesar de a propriedade privada não ser contestada nesse documento, o qual se preocupou mais em instigar o Estado a agir em prol do social. Sobre a origem da função social, Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 170) aduz que o princípio da função social da propriedade tem controvertida origem. Teria sido, segundo alguns, formulado por Augusto Comte e postulado por Léon Duguit, no começo do aludido XIX. Em virtude da influência que a sua obra exerceu nos autores latinos, Duguit é considerado o precursor da ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário deve comportar-se e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como um funcionário.

Para o mencionado autor, citado por Gonçalves (2014, p. 170), a propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder.

Nesse contexto, a propriedade é vista como fator central do sistema liberal, vez que era pelo poder dado ao proprietário que toda a cadeia de submissão da classe trabalhadora se mantinha. Já dito por Marx, no século XIX, a propriedade privada seria a primeira e maior alienação do homem. Assim, a burguesia manteria seu poder graças à proteção dada pelo Estado à propriedade privada. Desse entendimento histórico, nasce o movimento constitucional que buscou dar ao Estado obrigações sociais, ganhando destaque o que formulou a Constituição Alemã de Weimar, 1919. Sobre a influência desse documento no conceito de função social da propriedade, Fabrício Bertini Pasquot Polido (2006, p. 04) aduz que o artigo 153 da Constituição de Weimar primeiro estabeleceu a garantia e os efeitos vinculativos (Bindungseffekte) da propriedade privada, especialmente decorrentes da expressão “a propriedade obriga”(das Eigentum verpflicht).

O modelo ali adotado prevê que a propriedade possa ser objeto de desapropriação por meio de lei, sem eventualmente incluir direito de indenização. Na concepção de Weimar, a propriedade não admite uma abordagem individualista, inviolável ou sacralizada, pois submete o exercício pelo titular ao interesse da coletividade. No Brasil, influenciada por Weimar, a Constituição Federal de 1934 foi a primeira a atrelar expressamente a propriedade a uma função esperada, a qual teria como beneficiário a coletividade. Em seu artigo 113, ponto 17, vinha a seguinte disposição:

“É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito a indenização ulterior.”

Com o Estado Novo de Getúlio, a propriedade deixou de ser vinculada à função social, haja vista a falta de previsão na Constituição de 1937. No art. 147 da Constituição de 1946, todavia, volta-se a atribuir à propriedade uma obrigação, determinando que “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá com observância do disposto no artigo 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”. O termo função social seria usado pela primeira vez na Constituição de 1967, tendo-o como princípio da ordem econômica, conforme o art. 157, que trazia: “A Ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: III – a Função Social da Propriedade”. Em que pese essa previsão anterior, é apenas com a Constituição de 1988 que a função social da propriedade ganha relevância e aplicação. Como já dito acima, ela aparece no inciso XXIII do artigo 5º, quando estabelece que a propriedade atenderá a sua função social, sendo citada novamente nos artigos 170, III, como princípio da ordem econômica, 182, §2º, quando diz que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, 185, parágrafo único, onde estabelece que compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização (...), 184, parágrafo único, quando diz que a lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social, e 186, caput, que traz os requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural.

Adotando a imposição constitucional, o Código Civil 2002 estabelece normas baseadas na função social da propriedade, proclamando que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas” (art. 1.228, § 1º); e que “são defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem” (§ 2º). Ademais, referido código criou uma nova espécie de desapropriação, determinada pelo Poder Judiciário na hipótese de “o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante” (§ 4º).

Desta forma, a função social é vista atualmente como um dos principais mecanismos da chamada constitucionalização do direito, que inclui sua esfera privada, tendo como objetivo analisar a sociedade na sua historicidade, considerando suas dimensões local e universal, de modo a possibilitar a individualização do papel e do significado da juridicidade no entendimento do fenômeno social (PERLINGIERI, 1999, p. 1). Tem-se que, assim, buscou-se introduzir no Direito Civil diretrizes principiológicas previstas na Constituição, visando a atender aos fins socais determinados pela Carta Magna de 1988.

2.2. O Conceito de Função Social da Propriedade

Apresentados a origem e o histórico da função social da propriedade, é necessário entender o seu conteúdo. Como visto, a função social é tida como princípio, e de natureza constitucional, estando expresso na carga magna. Ademais, também é vista como princípio da ordem econômica (MORAIS, 1999, p. 64). Como tal, acaba sendo guia de interpretação e aplicação do direito. Assim, o direito de propriedade deve ser exercido considerando-se a sua função social. A Constituição Federal de 1988 expressa quando a propriedade cumpre a sua função. Quanto à urbana, o artigo 182, §2º, estabelece que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Já a propriedade rural cumpre sua função social, segundo artigo 186, quando atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

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Seria, assim, a função social uma limitação da propriedade? Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2017, p. 291), em capítulo sobre restrições ao direito de propriedade, reconhecem que este direito está submetido a um intenso processo de relativização, sendo interpretado, fundamentalmente, de acordo com parâmetros fixados pela legislação ordinária. As disposições legais relativas ao conteúdo têm, portanto, inconfundível caráter constitutivo.

Isso não significa, porém, que o legislador possa afastar os limites constitucionalmente estabelecidos. A definição desse conteúdo pelo legislador há de preservar o direito de propriedade na qualidade de garantia institucional. Ademais, continuam os autores, as limitações impostas ou as novas conformações emprestadas ao direito de propriedade hão de observar especialmente o princípio da proporcionalidade, que exige que as restrições legais sejam adequadas, necessárias e proporcionais. Como acentuado pela Corte Constitucional alemã, a faculdade confiada ao legislador de regular o direito de propriedade obriga-o a compatibilizar o espaço de liberdade do indivíduo no âmbito da ordem de propriedade com o interesse da comunidade. Ademais, para Celso Bandeira de Melo (2008, p. 795-796), a função social da propriedade é exceção entre as limitações administrativas, vez que, ao invés de apenas prever abstenções, também determinar ações positivas para os particulares, impondo aos proprietários de imóveis destinações sociais tanto para os bens urbanos quanto para os rurais.

Seguindo esse entendimento, poder-se-ia concluir que a função social da propriedade é uma limitação cujo interessado direto é a comunidade. Mas as limitações corriqueiras tradicionais do referido direito, como de qualquer outro, têm como causa primeira os interesses tutelados de terceiros. É máxima de que o direito de um acaba quando começa o de outrem. Desta forma, pode-se entender que foi dado à comunidade o status de sujeito de direito quando no uso da propriedade privada por particulares. Antes se limitava a propriedade de alguém pelas fronteiras dos imóveis vizinhos, já hoje, há um vizinho abstrato e soberano chamado coletividade.

Sobre esse novo aspecto do direito real, Marco Aurélio Bezerra de Melo (2011, p. 86) sustenta que a função social da propriedade transformou-se em exigência da vida em comunidade, porque da mesma forma que é imperiosa a defesa dos direitos individuais dos titulares da propriedade, é fundamental que se exija do proprietário a observância das potencialidades econômicas e sociais dos bens que deverão ser revertidos em benefício da coletividade. Isso tudo em consonância com a Constituição de 1988 que, como sabido, é de caráter social-programático, onde o Estado estabelece metas de ‘evolução’, visando sempre ao maior grau de justiça social. Desta forma, seus princípios estabelecidos são meios para cumprir esse objetivo, o que engloba a função social da propriedade. Nesse contexto, não se pode observar o aludido preceito apenas como garantia de uso regular da propriedade, a fim de atender suas funções esperadas. Mais que isso, a função social impõe uma ideia de propriedade artificial, baseada no modelo idealizado pelo Estado como justo.

Uma propriedade pode estar cumprindo sua função social histórica de reserva de valor, de bem negociável, de instituição econômica, mas pode não estar atendendo ao que o Estado entende pelo preceito constitucional por ele instituído, haja vista estar inserido nesse objetivo máximo de justiça social e distributiva. Tem-se, assim, que a função social não é tirada, de fato, da sociedade e positivada pelo Estado, mas, sim, determinada por este e imposta àquela. Era de esperar que o Estado observasse os resultados desejados e possíveis da propriedade e, então, os substabelecessem como meta para o exercício generalizado do direito em questão, mas não é esse o conteúdo do que se entende por função social.

 Assim, é possível definir função social como meio de alocar um recurso escasso, a propriedade, conforme as diretrizes estatais que se direcionam a fins sociais guiados pela noção de justiça distributiva.

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Sobre o autor
Max Parente

Graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e Estagiário do Ministério Público Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PARENTE, Max. O direito de propriedade e o advento da função social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5480, 3 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66589. Acesso em: 23 nov. 2024.

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