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O estupro de vulnerável e sua vulnerabilidade absoluta.

Repensando a súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça

06/07/2018 às 15:00
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O que aplicar quando dois adolescentes, entre 12 e 14, praticam sexo? E quando a relação sexual é consentida? Reflete-se sobre a aplicação da Súmula 593 do STJ num cenário em que a vida sexual do adolescente parece estar mais ativa que a dos adultos.

A coletividade humana é uma mutação permanente e, assim sendo, o Direito (que é o conjunto de regras com a finalidade de regular o comportamento humano) deve se adequar, cada vez mais, à evolução constante que a sociedade apresenta a cada dia.

Visando a um debate técnico acerca da questão que envolve a Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça, o presente esboço tem a finalidade de rediscutir a posição do STJ sobre a edição do verbete em comento, pois pacificou-se que a vulnerabilidade do menor de 14 anos, em se tratando de atos de conotação sexual, é absoluta.

Dessa forma, seguindo a posição do Superior Tribunal de Justiça, não se admite mais a relatividade sexual quando estiver envolvido um adolescente (12 a 18 anos incompletos – leia-se 17 anos) ou uma criança (12 anos incompletos – leia-se até 11 anos).

Assim, para que possamos entender o que será discutido no artigo, de suma importância fazermos algumas referências à letra da lei, com o fito de demonstrar que a nossa legislação é controversa no que tange ao assunto abordado. Comecemos pela leitura da Súmula 593 do STJ que foi editada com a seguinte redação:

Súmula 593 - O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

Pois bem, com a leitura do dispositivo citado é inequívoca a interpretação literal de que qualquer prática sexual com menor de 14 anos configurará o crime de estupro de vulnerável previsto no artigo 217-A do Código Penal, conforme podemos observar abaixo:

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

Questiona-se: acertou o Superior Tribunal de Justiça ao editar tal redação e pacificar o tema da forma que hoje está?

Ressalta-se que, mesmo antes da edição da Súmula discutida, os Tribunais de Justiça dos Estados já vinham se posicionando no sentido de optarem pela vulnerabilidade absoluta do menor de 14 anos quando da prática sexual, ainda que consentida, sendo, portanto, posicionamentos majoritários e não absolutos.

Apesar de figurarem em menor número do que as decisões que entendiam que a vulnerabilidade era absoluta, sem maiores esforços em doutrinas e jurisprudência, podemos encontrar posicionamentos doutrinários e julgados que optaram pela vulnerabilidade relativa em relação aos adolescentes menores de 14 e a partir de 12 anos. [1]

Importantíssimo destacar que a vulnerabilidade dos menores de 12 anos nem se discute, pois esta é (e sempre foi) absoluta.

Sabemos que nos tempos atuais muitos adolescentes possuem uma vida sexual ativa até mais do que muitos adultos e isso deve ser levado em consideração para que se discuta uma real aplicação da Súmula e, consequentemente, da sanção penal prevista no art. 217-A do diploma penal.

Vejamos o que diz o ECA quando diferencia a idade de uma criança e adolescente, pois no decorrer do esboço tal artigo será relevante para o debate e compreensão do tema que abordamos:

Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

O dispositivo reitera aquilo que escrevemos acima de uma forma mais didática para que não haja nenhum erro de interpretação.

Diferentemente do crime de estupro, que está previsto no art. 213 do Código Penal, o crime de estupro de vulnerável não requer a “violência ou grave ameaça” que, necessariamente devem estar presentes para a caracterização do delito. O simples fato de haver uma conjunção carnal ou a prática de outro ato libidinoso com menor de 14 anos, restará configurado o crime.

Para que possamos compreender a extensão do crime de estupro de vulnerável (e aplicação da Súmula 593 em casos que envolvam menores de 14 anos), mister fazermos algumas observações para melhor entendimento de algumas terminologias.

Conjunção carnal é, segundo a doutrina majoritária, a cópula pênis-vagina - ainda que exista uma corrente minoritária com pensamento e posicionamento contrário - ou seja, é a introdução do pênis na vagina.

Não é necessário, para a configuração do crime de estupro ou de estupro de vulnerável, que haja ejaculação, bastando, somente, a penetração mediante violência ou grave ameaça no caso de estupro ou, somente, a penetração em relação ao menor de 14 anos.

“Praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (coito anal, oral, toques, masturbação, beijos lascivos…), quando tais atos são praticados mediante violência ou grave ameaça, estará configurado o crime de estupro quando o fim específico for a satisfação da lascívia e em relação ao crime de estupro de vulnerável dispensa-se a violência e grave ameaça tendo a satisfação da lascívia como fator determinante para a caracterização do crime.

Uma pontuação importante é que o tipo penal não define o sexo da criança e/ou adolescente para que figure no polo passivo, sendo, portanto, irrelevante se a vítima é menino ou menina.

Um dos muitos – e reiterados - argumentos para a edição da Súmula 593 foi de que:

“(...) em crimes sexuais cometidos contra menores de 14 anos, a presunção de violência é absoluta, bastando, para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso contra a vítima.

A modernidade, a evolução moral dos costumes sociais e o acesso à informação não podem ser vistos como fatores que se contrapõem à natural tendência civilizatória de proteger certos segmentos dapopulação física, biológica, social ou psiquicamente fragilizados.

No caso de crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos, oreconhecimento de que são pessoas ainda imaturas - em menor ou maiorgrau - legitima a proteção penal contra todo e qualquer tipo deiniciação sexual precoce a que sejam submetidas por um adulto, dados osriscos imprevisíveis sobre o desenvolvimento futuro de sua personalidadee a impossibilidade de dimensionar as cicatrizes físicas e psíquicasdecorrentes de uma decisão que um adolescente ou uma criança de tenraidade ainda não é capaz de livremente tomar(...)". [2]

Certo é que o “normal” não é uma criança ou adolescente começarem sua vida sexual ativa cedo, porém, existem as exceções e, como exceções, tais situações devem ser tratadas.

Necessário fazer um alerta de que no Brasil o casamento se dá a partir dos 16 anos, porém, não existe previsão em nosso ordenamento pátrio sobre a idade mínima para a união estável e, assim sendo, como o direito é uma mutação permanente e os costumes e comportamentos sociais mudam na velocidade da luz, importante o debate da questão por nós abordada, onde utilizaremos a expressão “união estável” em sentido amplo.

Existem diversas adolescentes que são mães com 13, 14 anos e que tiveram relações sexuais bem antes dessa idade e vivem em “união estável” com o pai da criança (geralmente mais velho).

Se formos levar a Súmula ao pé da letra, o pai da criança, que muitas vezes mora com a mãe (da criança) e que cumpre com suas obrigações financeiras (por trabalhar, com ajuda dos pais, de terceiros...) será processado por ato infracional equiparado ao crime de estupro de vulnerável, onde, certamente, vai ser “condenado pela prática delituosa” e cumprirá a medida socioeducativa – possivelmente de internação - na Fundação Casa, pois o crime fora cometido enquanto menor de idade.

Não vamos adentrar nas questões processuais e procedimentais da ação por não ser o objetivo do presente esboço, mas, a grosso modo, e pela letra fria do que temos hoje, a situação seria (é) essa.

Ainda no contexto do exemplo citado, vem o mais absurdo ainda. A Lei n° 12.594/2012, que trata do SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), que regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional, tem em seu artigo 68 a seguinte redação:

Art. 68. É assegurado ao adolescente casado ou que viva, comprovadamente,em união estável o direito à visita íntima. (g.n)

No exemplo que acima citamos, supostamente, o ato que levou o pai da criança a uma internação na FUNDAÇÃO CASA, sendo fichado como estuprador de vulnerável, é o ato que a lei protege e resguarda o direito dele fazer (legalmente) a mesma coisa, agora internado.

Completamente fora de qualquer entendimento lógico a questão acima abordada.

Obviamente que estamos tratando do tema quando há o consentimento do(a) adolescente, caso contrário nem se discute a pauta que abordamos.

Apenas para deixar claro o nosso posicionamento, pensamos que a união estável deve ser reconhecida – em casos específicos - a partir dos 12 anos de idade e como regra geral a partir dos 14, pois, como já dissemos, não há impedimento legal para que isso ocorra.

Dessa forma, há de se repensar seriamente o posicionamento - agora sumulado - do STJ, no que concerne em atribuir a todos os casos envolvendo adolescentes entre 12 anos completos e menores de 14 anos, como sendo vulnerabilidade absoluta.

Certamente que a lei visou proteger a dignidade sexual do adolescente menor de 14 anos e assim deve ser, porém, como em toda regra há exceção, nesta também deve existir.

Outra situação que não é alienígena de ocorrer é a prática sexual entre dois adolescentes entre 12 anos completos e menores de 14 anos, entre si. Se a súmula for levada ao pé da literalidade de sua criação, ambos os adolescentes responderão por ato infracional equiparado ao crime de estupro de vulnerável.

Tal afirmação se respalda no ECA em seu art. 103:

Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.

Partindo da teoria tripartida do crime, onde este é um fato típico, antijurídico e culpável, a criança ou o adolescente não preenchem o requisito da culpabilidade (imputabilidade) e, dessa forma, não podem ser penalmente responsabilizados como se adultos fossem, pois a imputabilidade penal inicia-se aos 18 anos, ficando o adolescente que comete infração penal sujeito à aplicação de medida socioeducativa.

Assim, a conduta delituosa da criança e do adolescente é denominada tecnicamente de ato infracional, abrangendo tanto o crime quanto a contravenção penal (infrações penais). Ressalta-se, oportunamente, que aos menores de 12 anos são aplicadas as medidas protetivas do art. 101 do ECA, e não as medidas socioeducativas do mesmo estatuto.

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Mediante tal situação, o que fazer? Aplicar a súmula 593 e ambos responderem judicialmente por ato infracional equiparado a estupro de vulnerável ou relativizar a situação? Sem ficar em cima do muro, nossa posição é a de que cada caso envolvendo a questão deve ser analisado com suas peculiaridades e, havendo elementos suficientes para relativizar a vulnerabilidade, esta deverá ser relativizada.

O que ainda muito se discute, mesmo após a edição da súmula em comento, é a vulnerabilidade estipulada pelo ECA e a do Art. 217-A caput do Código Penal. No estatuto menorista a vulnerabilidade é abaixo dos 12 anos, enquanto no Código Penal é abaixo dos 14.

Para os que entendem que a vulnerabilidade do art. 217-A do CP é relativa, argumenta-se que se o adolescente pode ser punido por cometer alguma conduta delituosa (ato infracional) este tem o caráter de entender o que faz e, assim sendo, utilizando a mesma interpretação, teria totais condições de entender o contexto sexual a que se submetera em meio a uma relaçãosexual.

Embasa tal entendimento, entre outros, o julgado abaixo:

“O art. 217-A do CP deve ser interpretado sistematicamente com a Lei 8.069/90 (ECA), sendo desarrazoado que o adolescente menor de 14 anos, não obstante detenha maturidade reconhecida em lei para ser apenado com medida socioeducativa, caso venha a praticar ato infracional, seja presumido destituído de capacidade de autodeterminação sexual (...) a adolescente menor de 14 anos praticou a relação sexual de maneira espontânea, consciente e consentida, porquanto o Direito Penal, como última ratio da intervenção estatal da dignidade humana, objetiva tutelar a liberdade, e não a moralidade sexual (TJGO, 1º Câm. Crim., Ap. 365244-53.2011.8.09.0141, rel. Des. Jairo Ferreira Jr., j. 2.7.2013, public. 7.8.2013)”.

Por outro lado, em sentido contrário, argumenta-se que a questão criminal relacionada ao ato infracional é uma questão de política social/criminal, sendo de caráter objetivo enquanto a questão sexual é uma questão biológica/psicológica/subjetiva.

Na precisa observação (no ano de 2012, mas que ainda gera margem para debate) do ilustre Desembargador paulista Luis Soares de Mello Neto:

“a legislação vigente desconsidera quaisquer questionamentos acerca do comportamento da vítima, encerrando controvérsias suscitadas antes da reforma do capítulo do Código Penal dedicado aos crimes sexuais (...) a experiência sexual pretérita da vítima, bem como o histórico de abusos sexuais contra ela praticados pelo próprio pai – devidamente registrado nos autos -, não constituem óbice a que lhe seja reconhecida a condição de vítima em crimes contra a dignidade sexual. Ao contrário. Tal circunstância caracteriza, na verdade, uma dupla vulnerabilidade da vítima, decorrente, em primeiro lugar, da simples condição de menor de 14 anos à época dos fatos e, ainda, no abuso incestuoso que sofreu e das seqüelas psicológicas daí remanescentes – reconhecendo que ninguém passaria incólume por tal situação. De forma que não é possível, nem justo, negar o reconhecimento à dignidade sexual da vítima, estigmatizando-a ao decretar que não há dignidade sexual a ser protegida, com fundamento em situações pretéritas em que foi também vítima” (TJSP, 4ºCâmara, Ap. 0009073-16.2010.8.26.0270, j. 31.7.2012).

Como podemos observar não é, somente, pegar qualquer caso e aplicar a lei seca. As particularidades de cada caso devem ser consideradas para uma aplicação – justa – de qualquer sanção.

Por fim, podemos concluir que a aplicação objetiva da Súmula em todos os casos é uma questão temerosa e propícia a erros, muitas vezes, irreparáveis na vida do indivíduo, pois uma vez tendo alguma mácula criminal seja de que ordem for, esta perpetua no “prontuário social” do indivíduo.

Assim, longe de esgotarmos o debate sobre o assunto, ao que nos parece, a relativização de vulnerabilidade sexual do adolescente maior de 12 e menor de 14 anos é o caminho jurídico mais seguro a ser trilhado.


Notas

1 Curso de direito penal : parte especial : arts. 213 a 361 do Código Penal / Guilherme de Souza Nucci – Rio de Janeiro: Forense, 2017, p.59; AP 993.08.035868-0, 16ª C., rel. Newton Neves, 25.10.2011, v.u; Ap. 0500412-35.2011.8.01.0081/AC, C. Crim., rel. Francisco Djalma, 19.03.2015, v.u.

2 AgRg no REsp1427049TO, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgado em10/2015, DJe 16/11/2015.

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Sobre o autor
Denis Caramigo Ventura

Denis Caramigo Ventura: Advogado criminalista especialista em Crimes Sexuais; www.caramigoadvogados.com.br E-mail: [email protected] Facebook: Denis Caramigo Ventura Twitter: @deniscaramigo Instagram: @deniscaramigoventura

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARAMIGO VENTURA, Denis. O estupro de vulnerável e sua vulnerabilidade absoluta.: Repensando a súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5483, 6 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66599. Acesso em: 15 nov. 2024.

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