INTRODUÇÃO
O setor de Saúde esta se adaptando as novidades legais inseridas no sistema organizacional através dos programas de compliance, tendência mundial na busca pela integridade nos negócios baseado no cumprimento das leis e regulamentos e, principalmente, pela ética. O ideal é adotar uma cultura de compliance que tenha o mesmo peso que uma acreditação ou certificação de qualidade.
A normativa a qual está sujeita a área da saúde é bastante complexa, baseada em vários instrumentos legais esparsos que regulam dezenas de relações relacionadas. Por este motivo, nas breves linhas que seguem, abordaremos o tema de forma superficial.
O COMPLIANCE NA AREA DA SAUDE
Um exemplo inicial do compliance na área da saúde é a gestão profissional dos hospitais, que atuam geralmente como empresas e por isso precisam adotar e exigir uma postura de integridade baseada no compliance tanto de seus colaboradores como de terceiros envolvidos.
O “Tone at the Top”, um dos pilares dos programas de integridade terá que ser incorporado pelos gestores, médicos e funcionários que serão atingidos pela mudança cultural da organização. Como resultado, a credibilidade é retomada junto aos pacientes, que saberão que não estão sendo enganados, por exemplo, com pedidos de exames ou indicação de remédios sem necessidade.
Outras medidas importantes indicadas por um programa eficiente de integridade são a seleção dos fornecedores, identificando parceiros idôneos comprometidos com as boas praticas do mercado, e o monitoramento continuo para que as incorreções ou desvios sejam identificados e corrigidos antes de produzir efeitos negativos.
Apesar de algumas áreas serem frequentemente ligadas a casos de corrupção, nenhuma esta imune ao problema. Analisar o setor em que a entidade esta inserida e todos os riscos associados a atividade naquela localidade, cumprindo à risca o risk assestment, é um estrategia importante para identificar e precaver subornos, irregularidades e ilegalidades, fiscalizando com maior rigor os processos e operações que representem maior risco.
Talvez à maioria das pessoas pareça que os profissionais da saúde estão insertos num ambiente muito distante da criminalidade, mas isto não é verdade. Nos últimos anos, diversas foram as denúncias públicas de empresas e médicos praticantes de fraude.
O triângulo da fraude de Donald Cressey pode explicar, em tese, os caminhos que levam os profissionais da área da saúde a se envolverem em atividades imorais e /ou ilegais. São elas: Pressão ou incentivo, Racionalização e Oportunidade.
1- Pressão ou Incentivo: redução dos valores pagos pelos convênios de saúde, falta de tempo com a família devido aos longos períodos de plantão, vantagens oferecidas pelas grandes industrias, entre outras.
2- Oportunidade: enorme procura de pacientes, cultura do uso indiscriminado de remédios, desconhecimento técnico por parte dos pacientes.
3- Racionalização: já existe uma cultura do uso indiscriminado de remédios; opção ou maior aceitação dos pacientes pela prescrição de tratamentos mais sofisticados e caros; os médicos atuam dessa forma há muito tempo.
Dessa forma, o triangulo da fraude pode ter grande influencia na area da saúde diante das peculiaridades superficialmente expostas.
O compliance aplicado aos profissionais da área num grande programa de conscientização e comprometimento poderia ter inclusive reflexos econômicos no ambiente abrangido pois, segundo a Organização Mundial da Saude (OMS) [1], entre 20% e 40% do gasto em saúde é desperdiçado com ineficiência. Esse gasto envolve alem de tratamentos desnecessários e ineficientes, investimentos em equipamentos e produtos equivocados.
Inclusive uma característica do mercado da saúde e que é marcante nos programas de compliance baseado inclusive nos mandamentos da Lei Anticorrupção, é a preocupação com os presentes e brindes trocados nas relações comerciais, sendo essa uma questão a ser avaliada como de risco pelas empresas em sua analise periódica, sob pena de incidir em ilícitos ou, ao menos, em atitudes imorais e desabonadoras.
No Brasil, estes temas foram rigorosamente explorados no Acordo Setorial de Ética e Saúde, onde estão regulamentadas desde práticas técnicas até costumeiras, como remunerações por palestras, patrocínios de eventos e concessão de brindes, entre outros.
Quanto aos brindes, destaca o texto:
“Ocasionalmente, brindes podem ser fornecidos a profissionais da saúde, desde que sejam modestos e permitidos por leis e regulamentos locais vigentes. Os brindes devem ter valor genuinamente educacional e/ou científico, beneficiar os pacientes e possuir relevância a prática médica do profissional. Eles não podem ser oferecidos na forma de dinheiro ou equivalente. Devem ser oferecidos em conexão com um objetivo de negócio legítimo e de boa-fé, não devem ser motivados por um desejo de exercer influência imprópria ou por expectativa de reciprocidade.” [2]
Fica clara assim a preocupação com alguns princípios inerentes a área, quais sejam o respeito pelas praticas da medicina, pelos princípios médicos, bem como a integridade e o respeito na relação medico-paciente, que devem nortear não só as relações diretas medico-paciente, mas também as grandes empresas no trato com os profissionais da saúde e com o poder publico.
Destacando outro risco inerente ao meio, temos o risco de comissão e/ou benefícios pela prescrição ou uso. É muito usual o oferecimento de comissões ou benefícios para os médicos indicarem ou prescreverem o uso de um determinado medicamento ou tratamento. Quando se trata de prescrição de remédio análogo a outro do mercado, que não terá influencia maléfica no tratamento ou mesmo na saúde do paciente, pode ser um risco tolerado, porem, tendo em vista o crescente numero de profissionais no mercado, aliado a baixa remuneração paga pelos planos de saúde, ou mesmo os atrasos de pagamento nas redes publicas, temos potencializado o risco de prescrição de medicação desnecessária, ou mesmo errada, agravando a situação da relação medico paciente, colocando em risco a coletividade. Novamente voltamos a pirâmide da fraude.
Em janeiro de 2015 o programa “Fantástico” denunciou um esquema de corrupção chamada de “Máfia das Próteses” dando inicio a uma grande investigação policial na área. Dentre as descobertas, foi apurado que médicos usavam artifícios para “esquentar” dinheiro obtido irregularmente em fraudes junto a planos de saúde, ao Instituto de Previdência do Estado (IPE) e a pacientes, que eram levados a realizar cirurgias desnecessárias para o uso de próteses.
Segundo o Relatorio Final da CPI da Mafia das Proteses [3], “a máfia (...) existe, é organizada, recorrente, onipresente e por movimentar cifras milionárias, mais poderosa do que se pode imaginar.”.
Com base nessa nova realidade que desmistificou uma área que até então era considerada exemplo de lisura, a aplicação de medidas de compliance passou a ser de extrema importância para a recuperação da credibilidade do mercado. A regulamentação aliada a conscientização dos profissionais e terceiros envolvidos passa a ser a base da estrutura do resgate dessa credibilidade.
O Código de Ética Médica do CFM - Conselho Federal de Medicina prevê que é vedado ao médico:
Art. 68. Exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia, indústria farmacêutica, óptica ou qualquer organização destinada à fabricação, manipulação, promoção ou comercialização de produtos de prescrição médica, qualquer que seja sua natureza.”
Apesar da normatização, reza a boa pratica de compliance que as normas escrita devem ser complementadas por treinamentos e incentivos, buscando o comprometimento dos envolvidos.
Como visto, as circunstâncias são favoráveis a pratica dos atos ilegais ou imorais, dentre elas algumas que destacaremos na sequencia.
Quanto as praticas promocionais, usando como parâmetro as regras aplicadas as industrias de bem de consumo onde basta que essas cumpram as normas do Codigo de Defesa do Consumidor e é possível o uso indiscriminado de promoções e parceria para conquistar os clientes, na indústria de medicamentos, alem das garantias previstas pelo Codigo de Defesa do Consumidor, devem atentar às demais regras especificas, com destaque, por exemplo, para a RDC nº 96 da Anvisa que trata especificamente as propagandas e promoções de medicamento e que restringe, e em alguns casos proíbe, essas promoções e demais formas agressivas de conquista e fidelização de clientes/pacientes
Art. 1º Este Regulamento se aplica à propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos de produção nacional ou estrangeira, quaisquer que sejam as formas e meios de sua veiculação, incluindo as transmitidas no decorrer da programação normal das emissoras de rádio e televisão.
Art. 10 Os programas de fidelização realizados em farmácias e drogarias, dirigidos ao consumidor, não podem ter medicamentos como objeto de pontuação, troca, sorteios ou prêmios.
Parágrafo único - Todo o material publicitário de divulgação e o regulamento dos programas de fidelização devem informar sobre a restrição prevista no caput deste artigo.
Essa regulamentação é ainda mais rigorosa quando trata da distribuição de amostras grátis como medida promocional de medicamentos. Regulada especificamente pela ANVISA pela RDC 96 e adicionalmente pela Resolução de nº. 60, de 26 de novembro de 2009, as normas são bastante restritivas:
Art. 4º Somente é permitida a distribuição de amostras grátis de medicamentos registrados na Anvisa e de apresentações comercializadas pela empresa.
Art. 10 A entrega da amostra grátis pelo profissional prescritor ao paciente deve ser realizada de forma a garantir o uso racional do medicamento.
Dessa forma, são principios básicos da atuação da indústria de medicamentos, alem do respeito as normas técnicas e controles, a independência na atuação dos profissionais da saúde, a limitação a promoção ostensiva e o estimulo ao uso consciente.
Destaca-se assim a preocupação com promoções que associem vantagens no caso de compra de medicamento, como brindes que estimulem a compra, e com o controle na distribuição de amostras grátis que possam incentivar o prolongamento desnecessário de um tratamento ou mesmo reservas para automedição futura, entre outras precauções importantes.
Grande parte dos medicamentos são prescritos, dispensados ou vendidos inadequadamente e uma parcela significativa dos pacientes não utilizam corretamente seus medicamentos. Há uma falta de racionalidade na utilização dos medicamentos.
Entre os desafios lançados pela OMS no ano de 2004 destacam-se como metas a “definição, difusão e promoção de informações sobre medicamentos independentes e confiáveis” e o “fomento da publicidade ética e responsável de medicamentos dirigida para profissionais de saúde e consumidores”
Fica clara assim a preocupação do órgão com a conscientização e envolvimento tanto das empresas, como dos profissionais e dos consumidores, num grande programa de compliance.
Segundo a Anvisa [4], em estudo cientifico, “a propaganda de medicamentos tem como objetivo principal persuadir e incentivar o consumo do produto em toda a cadeia do medicamento desde o prescritor, passando pelo dispensador, até o usuário, incentivando a compra de um determinado produto, mesmo que para isso tenha que criar uma nova necessidade.”
As questões éticas nesse ponto alcançam os medicamentos considerados usuais ou de pouca repercussão mas que também devem ser abrangidos pela ética promocional.
Jose Augusto Cabral de Barros [5] alerta em sua obra Estratégias Mercadológicas da Indústria Farmacêutica e o Consumo de Medicamentos:
“Enquanto persistir o predomínio do conceito e da prática acerca do medicamento como produto de consumo, ou mercadoria, em vez de ser considerado um instrumento a serviço da promoção da saúde, estão presentes as condições objetivas para a existência de produtos irracionais, de má qualidade e inadequadas às necessidades sanitárias”.
Cresce assim a importância de um risk assesstment minucioso na área para conhecer as estratégias adotadas pelas partes e os verdadeiros objetivos de cada um, levando em consideração a filosofia de algumas empresas investirem mais na promoção de seus produtos do que em pesquisa de desenvolvimento, o que é corroborado pelas recentes descobertas de casos de corrupção com o pagamento de comissão por procedimentos médicos desnecessários, favorecimento de determinadas terapias, compra desnecessária de medicamentos, entre outros.
Finalizando, outra questão que ganhou notariedade nos últimos anos com a Lei 12.846 e com a famosa Operação Lava Jato é a corrupção nas relações com o setor publico.
Numa industria de medicamentos por exemplo, alem das problemáticas comuns às outras industrias de bens de consumo, deve-se considerar as especificidades relacionadas às interações com os órgão reguladores da saúde, a exemplo da atividade de registro de produtos, cujo tempo de registro tem impacto violento nos lucros da empresa; e da inclusão de produto no SUS, que apesar das reclamações, é o sonho das industrias pois leva o produto para os hospitais em âmbito nacional, alcançando uma enormidade de pacientes. Nesses casos, há interesses financeiros das partes envolvidas, intermediados por agentes públicos e privados com as mais diversas formações intelectuais e de caráter, discutindo vultuosos valores e as formas de pagamento. Em uma analise de riscos, certamente essa situação seria classificada como “Red Flag” e seria monitorada de perto pelos profissionais de compliance.
CONCLUSÃO
O histórico de ilícitos praticados nesse tipo de negociação ao longo dos anos faz com que a importância de um grande programa de compliance seja ressaltado pelos especialistas como forma de garantir aos cidadãos o acesso a um sistema de saúde justo e eficiente.
REFERENCIA:
[1] Materia Entre 20 e 40% dos gastos com saúde no mundo são desperdiçados, diz OMS, Disponivel em https://veja.abril.com.br/saude/entre-20-e-40-dos-gastos-com-saude-no-mundo-sao-desperdicados-diz-oms/
[2]Ética Saúde - Acordo Setorial - Importadores, Distribuidores e Fabricantes de Dispositivos Médicos. Disponivel em http://www.cmsmedical.com.br/upload/files/Acordo_Setorial_Portugues2.pdf
[3] CPI da Máfia das Próteses, Relatório Final, pág. 409
[4]ANVISA. Disponivel em http://www.anvisa.gov.br/propaganda/apresenta_projeto_monitora.pdf
[5] BARROS, José Augusto Cabral de. Estratégias Mercadológicas da Indústria Farmacêutica e o Consumo de Medicamentos. Revista de Saúde Pública, São Paulo, 1983.