Responsabilidade objetiva em processo administrativo sancionador

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A Lei Anticorrupção previu de maneira expressa a responsabilização objetiva da pessoa juridica que praticar ilícito previsto na lei. O tema é controverso pela natureza da norma e da sanção aplicada.

INTRODUÇÃO

A definição de Compliance provém da Economia e foi introduzida no Direito Empresarial para representar a observância e o cumprimento de normas de governança, pautadas pela ética e pelas boas práticas.

De forma pioneira, em 1977, foi editado nos Estados Unidos o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), com a finalidade de aplicar sanções a pessoas físicas e jurídicas norte-americanas que praticassem atos considerados de corrupção, tanto em território americano quanto fora dele. Dessa forma, os Estados Unidos tornaram-se o berço dos programas de compliance por meio de uma corregulação estatal e privada, que Sieber 1 denominava como “sistemas autorreferenciais de autorregulação”.

Segundo Petrelluzzi e Rizek Junior, na obra Lei Anticorrupção: origens, comentários e análise da legislação correlata 2, a edição da legislação mencionada decorreu da preocupação norte-americana de que o pagamento de propinas a agentes públicos desvirtuaria a concorrência e violaria as leis do mercado, comprometendo os fundamentos do regime capitalista.

O Brasil, embora influenciado pela legislação e pelas orientações internacionais, em parte incorporadas ao ordenamento jurídico nacional, apenas em 2014 conseguiu consolidar o que Juliano Heinen 3 denominou de “sistema nacional de combate à corrupção ou sistema legal de defesa da moralidade”, com a promulgação da Lei 12.846/13, que se somou à Lei 8.429/92, além de outras normas de menor relevância para o tema.

Para mensurar a importância da Lei 12.846/13, em 2007 foi realizada uma avaliação no ordenamento jurídico brasileiro, baseada na Convenção da OCDE, na qual os examinadores recomendaram que o Brasil aumentasse os esforços na prevenção do suborno estrangeiro, bem como na responsabilização de pessoas jurídicas. Já em maio de 2014, representantes da OCDE estiveram novamente no Brasil e concluíram que o país havia evoluído positivamente, destacando a aprovação da Lei 12.846/13.

Com destaque para a imposição de graves sanções administrativas às empresas infratoras — que podem alcançar 20% do faturamento bruto, sem prejuízo do ressarcimento do dano apurado —, a normativa anticorrupção é considerada um marco no combate a esse tipo de conduta.

Marco Vinício Petrelluzzi e Rubens Rizek Junior 2 destacam que, na Lei 12.846/13, a responsabilidade civil e a responsabilidade administrativa são complementares, atingindo tanto a conduta que implica dano quanto aquela que afronta princípios da administração pública.

O professor Modesto Carvalhosa 4 é rígido em sua análise da lei ao destacar seu caráter sancionador:

“A presente lei tem nítida natureza penal. Com efeito, as condutas ilícitas tipificadas e os seus efeitos delituosos tem substancia penal, na medida em que se justapõem na esfera propriamente penal (...) Assim, a presente lei somente se distingue da Lei Penal quanto ao processo e não quanto a sua substancia. Em consequência, devem rigorosamente ser observadas as garantias penais, como tem sido reconhecido pelo STJ ao tratar dos processos administrativos sancionatórios.”.


PROCESSO ADMINISTRATIVO: RESPONSABILIDADE OBJETIVA

Destaca-se, na legislação em voga, a forma como serão conduzidos os processos administrativos sancionadores, principalmente no que se refere à controversa responsabilidade objetiva da empresa pela conduta corrupta de seus funcionários. Esse ponto é de suma importância para garantir uma aplicação justa e incontestável.

Contextualização: o ordenamento jurídico nacional tem, por regra, a responsabilidade subjetiva, ou seja, aquela que depende da apuração de culpa por imprudência, negligência ou imperícia. Por outro lado, a responsabilidade objetiva, apesar de prevista em lei, decorre da Teoria do Risco, bastando que exista a ação do agente, o dano e o nexo causal para configurar a responsabilização.

A responsabilidade objetiva foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pela própria Constituição Federal, sendo regra para relações que envolvam pessoas jurídicas de direito público, bem como pessoas jurídicas de direito privado que sejam prestadoras de serviços públicos, entre outras situações específicas previstas em lei.

O art. 2º da Lei nº 12.846/2013, portanto, inovou ao introduzir no ordenamento jurídico, de forma expressa, a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica por atos que caracterizem ilícitos administrativos.

É importante destacar que o processo administrativo é independente do judicial, sendo conduzido diretamente pelos órgãos da Administração Pública, com as garantias legais inerentes a todos os processos de finalidade sancionatória. Apesar dessa independência ser a regra, o art. 18. da Lei Anticorrupção ressalta que a responsabilidade administrativa não afasta a responsabilização judicial quando cabível.

No plano do Direito Administrativo Sancionador, a culpabilidade da pessoa jurídica remete à evitabilidade do fato e aos deveres de cuidado objetivo, os quais se apresentam encadeados na relação causal. Assim, para a configuração da responsabilidade objetiva, basta que alguém pratique o ato lesivo no interesse ou em benefício da pessoa jurídica, podendo esse "alguém" ser dirigente, gestor, preposto, empregado ou até mesmo um terceiro que a represente.

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Sidney Bittencourt 5, em seus Comentários à Lei Anticorrupção, destaca:

“(...) Para que a pessoa jurídica seja responsabilizada, não será necessário que tenha agido com culpa. Bastará que fique evidenciado que seus administradores ou dirigentes praticaram, no interesse ou benefício da mesma, as condutas ilícitas elencadas na lei e que delas decorreram danos ao erário. (...) Evidentemente, a responsabilização da pessoa jurídica dar-se-á, quase sempre, após a identificação dos prepostos envolvidos (pessoas físicas). (...) Para fins de responsabilização, é suficiente, portanto, a comprovação do ato de corrupção e o nexo de causalidade entre ele e a pessoa jurídica.”

Caso esse nexo causal não fique comprovado — seja porque não há qualquer vínculo de representação do agente acusado com a pessoa jurídica, seja porque o agente agiu em interesse próprio, distinto das finalidades da pessoa jurídica — restará descaracterizada a responsabilidade. Isso ocorre porque, nesse caso, ficará demonstrado tratar-se de um ato de vontade exclusiva do agente, praticado em seu próprio interesse e benefício.

“Essas circunstâncias demonstram, no entanto, que a instituição de responsabilidade objetiva para a pessoa jurídica não implica uma ‘absolutização’ de sua culpabilidade. Em verdade, ocorre uma ‘objetivização’ do elemento subjetivo da culpabilidade em favor da ideia de causalidade entre conduta e dano, o que se revela como a proposta mais adequada de responsabilização desses entes fictícios, destituídos de consciência e vontade própria.” 6

Por outro lado, Fábio Medina Osório 7 manifestou-se contrário à responsabilidade objetiva prevista na Lei Anticorrupção, advertindo que a lei possui natureza punitiva e, por isso, deve submeter-se ao regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador. Nesse sentido, ele sustenta que não seria cabível falar em responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas para fins de imposição de penalidades administrativas, cabendo ao acusador o ônus da prova, que não pode ser invertido.

Para atender aos requisitos legais, especialmente a exigência de que os atos sejam praticados no interesse ou benefício da pessoa jurídica, o processo administrativo com o objetivo de apurar a responsabilidade objetiva deve ser sobrestado até que se comprove a efetiva ocorrência dessa e de outras exigências legais. Assim, só será configurada a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica se seu preposto tiver efetivamente cometido alguma infração e desde que a infração tenha revertido favoravelmente em seu interesse ou benefício.

Nesse mesmo sentido, o professor Modesto Carvalhosa 4 destaca com propriedade:

“Deve, assim, ser pressuposto da condenação o interesse da pessoa jurídica no resultado de tais ilícitos. (...) Tanto assim que deve ficar demonstrado que a pessoa jurídica: (i) conduziu proativamente a produção de tais delitos de corrupção, mesmo que esses tenham sido praticados por terceiros que não integrem seus quadros; ou que (ii) instigada à prática do delito corruptivo por iniciativa dos agentes públicos, nada fez para coibi-los, estabelecendo o concurso na prática de ato corruptivo, tal como ocorre na hipótese de concussão.”

Finalizando, e preparando o tema para um artigo específico, pode-se deduzir, da análise dos elementos do art. 7º da Lei nº 12.846/2013, que a aplicação efetiva de mecanismos internos de integridade e compliance pode produzir a ruptura do nexo de causalidade da responsabilização, desde que comprovada sua efetividade.


Notas

1 SIEBER, Ulrich. Programas de Compliance no direito penal empresarial: u novo conceito para o controle de criminalidade econômica. Tradução por Eduardo Saad-Diniz, São Paulo: LiberAs, 2013

2 PETRELLUZZI, M. V.; RIZEK JUNIOR, R. N. Lei Anticorrupção: origens, comentários e análise da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014.

3 Heinen, Juliano. COMENTÁRIOS À LEI ANTICORRUPÇÃO LEI NQ 12.846/2013. Editora Forum. 2015

4 CARVALHOSA, Modesto (Org.). Considerações sobre a lei anticorrupção das pessoas jurídicas: lei nº 12.846 de 2013. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015

5 BITTENCOURT, Sidney. Comentários à Lei Anticorrupção: Lei n° 12.846/2013, 2 ed. rev. atua. ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015:

6 Ortolan, Marcelo. Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 8, n. 14, p. 151-166, jan./jun. 2016

7 MEDINA OSÓRIO, Fábio. Direito Administrativo Sancionador. 4. ed. São Paulo: RT, 2011; MEDINA OSÓRIO, Fábio. Direitos imanentes ao devido processo legal sancionador na constituição de 1988. In: MARTINS, Ives Gandra; REZEK, Francisco (Org.). Constituição Federal: avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 149-166; MEDINA OSÓRIO, Fábio. Conceito e tipologia dos atos de improbidade administrativa. In: Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 50, out. 2012. Disponível em: https://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao050/Fabio_Osorio.html

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Sobre o autor
Leonardo Henrique de Carvalho Ventura

Advogado. Especialista em Direito Ambiental e em Gestão Ambiental Municipal. Especialização em Direito Corporativo e Compliance. Extensão em Compliance na Lei Anticorrupção.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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