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Aborto: o custo da criminalização

15/06/2018 às 09:45
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Ao criminalizar ambas as práticas, o aborto e a adoção direta, o Estado brasileiro conseguiu alguns notáveis feitos, em um mix de ignorância e autoritarismo.

Uma sociedade que se pretende democrática não pode criminalizar um desejo legítimo de não ter filhos indesejáveis, até porque a simples proibição não possui a efetividade de evitar a prática, como bem demonstram os assustadores números envolvidos: apenas entre 2004 e 2013, cerca de 9 milhões de mulheres interromperam a gestação no Brasil, conforme dados da Organização Pan-Americana de Saúde.

Dados da Pesquisa Nacional de Aborto, PNA, também indicam que, no Brasil, uma em cada cinco mulheres com até quarenta anos já fizeram aborto, comumente realizado nas idades que compõem o centro do período reprodutivo feminino, isto é, entre 18 e 29 anos. A pesquisa aponta também que a religião não é um fator importante para a diferenciação das mulheres no que diz respeito à realização de tal prática, uma vez que reflete a composição religiosa do país: a maioria dos abortos foi feita por católicas, seguidas de protestantes e evangélicas e, finalmente, por mulheres de outras religiões ou sem religião, (DINIZ & MEDEIROS, 2014).

Na verdade, há no Brasil um quadro paradoxal, pois enquanto cerca de 800.000 mulheres, todos os anos, interrompem a gravidez, milhares de famílias aguardam nas intermináveis filas de adoção em busca da realização do sonho de ter um filho.

Ao criminalizar ambas as práticas, o aborto e a adoção direta, o Estado brasileiro conseguiu alguns notáveis feitos, em um mix de ignorância e autoritarismo: por um lado, gastar mais de 140 milhões de reais por ano em internações no SUS por conta de complicações médicas em decorrência de aborto clandestino e incentivar o abandono de recém-nascidos nas margens de rios (conforme noticiado constantemente) e, por outro, frustrar casais que se dividem entre gastar milhares de reais em clínicas de fertilização humana ou em morosos e cruéis procedimentos de adoção em que há muito mais candidatos do que crianças aptas para tanto.

O depoimento de “X”, de 30 anos, no Jornal O Globo (de 19 de set. de 2014): "O aborto ser ou não legal não teria mudado a minha decisão. Só teria permitido que eu não corresse risco de vida como corri”, bem como o de Sidney Ferreira, presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, CREMERJ, também ao jornal O Globo (de 25 de set. de 2014): “tenho a comentar sobre o número de mulheres que sofrem com o aborto, elas deveriam ter o direito de realizar este procedimento”, mostram que o assunto precisa ser debatido para muito além da esfera jurídica, pois os gastos com internação (sem falar das mortes e das seqüelas) indicam tratar-se de um problema de saúde pública.  

Nesse sentido, os dados da PNA indicam o uso de medicamentos para a indução do último aborto em mais da metade da amostra pesquisada e que a outra metade realizou o procedimento em condições precárias de saúde. Os números de internação pós-aborto contabilizados pela PNA são elevados, ocorrendo em quase a metade dos casos. Tal fenômeno com consequências de saúde tão importantes coloca o aborto em posição de prioridade na agenda de saúde pública do país. (DINIZ & MEDEIROS, 2014).

Registre-se que a atual proibição penaliza, sobretudo, a mulher de baixa renda e de baixa escolaridade, que realiza o procedimento em condições sanitárias péssimas, colocando sua vida e sua saúde em risco. Também é oportuno consignar que há apenas quatro mulheres presas por terem abortado, o que por si só revela o quanto resta ineficaz a tipificação penal da prática do aborto. E, ainda, que o CREMERJ de 2010 para cá abriu apenas 12 sindicâncias contra médicos acusados de praticar aborto no estado, sendo que a estimativa mais recente revela “que foram realizados no estado do Rio de Janeiro mais de 67 mil abortos somente no ano passado”. (O GLOBO, 25 de set de 2014).

Em necessária adição, cabe ressaltar a própria incoerência da legislação penal brasileira, que - partindo da premissa que a vida (e sua proteção) inicia-se na concepção - permite a interrupção da gravidez no caso de estupro, ao incompreensível argumento que, neste caso, a gestante não poderia ser compelida a conviver, no futuro, com alguém que foi fruto de um momento de terror; ou seja, ceifa-se uma vida por um fato que, embora terrível e lamentável, nada tem a ver com a preservação de outra vida, única hipótese admitida pelo verdadeiro direito penal (v.g., legítima defesa, estado de necessidade e a própria permissão do aborto no caso de risco de vida da gestante).

Faz-se urgente e imperativo, portanto, estabelecer a necessária conciliação do reconhecido direito da mulher em não ter filhos com o imperioso direito à preservação da vida do nascituro, o que jamais será alcançado com a simples criminalização da prática do aborto (a despeito de mais de 70 anos de vigência do art. 124 do CP), que apenas tem conduzido, todos os anos, milhares de mulheres ao recurso do abortamento clandestino e inseguro, às vezes em total desespero, e com graves riscos à sua saúde, quando não conduz à sua própria morte, devido ao enorme problema que significa uma gravidez indesejada.

No íntimo, não há qualquer dúvida de que todos compartilham dos mesmos valores de preservação da vida humana, seja fetal ou embrionária. A questão, portanto, é como atingir esta aspiração de forma realmente efetiva, considerando também o fato de que um número crescente de casais busca, por anos, a realização de um simples sonho de ter filhos, igualmente frustrados pelo elevadíssimo custo dos procedimentos de inseminação artificial ou pelo complexo e ineficiente sistema de adoção brasileiro, que condena os que nele se aventuram nas intermináveis e burocráticas listas do Cadastro Nacional de Adoção a uma longa e penosa - e quase sempre frustrante - espera por uma criança disponível (destituída de poder familiar).

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É fato que ninguém em sã consciência acredita que a melhor forma de evitar que nossos filhos, maiores e cursando uma universidade, gazeteiem as aulas seja através de castigos que impliquem no cerceamento de suas liberdades, posto que tal procedimento seria - a exemplo da criminalização da prática do aborto - igualmente ineficaz.

O que fazemos, com grande sucesso, é orientá-los e educá-los, o que igualmente pode ser feito com grande efetividade no caso do aborto, simplesmente afastando a nefasta ingerência do Estado, - com seus permanentes vícios criminalizadores de condutas -, permitindo que os milhares de casais interessados em ter filhos possam, por meio de instituições e/ou organizações não governamentais, "adotar" o nascituro diretamente das mulheres dispostas a abortar, financiando todos os custos envolvidos em uma gravidez, demovendo-as, sem ineficazes e cruéis ameaças de punição, deste desejo que, no íntimo, não é plenamente verdadeiro, considerando que nenhuma mulher deseja realmente encerrar a vida fetal, mas, sim, apenas exercer o legítimo direito de não ter filhos.


REFERÊNCIAS:

CASTRO, C. O.; TINOCO, D.; ARAUJO,Vera. Tabu nas campanhas, aborto é feito por 850 mil a cada ano. Rio de Janeiro: Jornal O Globo, de 19 de set. de 2014.

DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo. “Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna”. Rio de Janeiro: Ciência e Saúde Coletiva, vol.15  supl.1, june de 2010. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232010000700002&script=sci_arttext. Acesso: 23 de set de 2014.

TEIXEIRA, Fabio. “Cremerj: Só 12 casos de aborto em 4 anos”. Rio de Janeiro: Jornal  O globo, de 23 de set. de 2014.

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Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Aborto: o custo da criminalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5462, 15 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66913. Acesso em: 25 nov. 2024.

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