JULGAMENTO DAS CONTAS DOS PREFEITOS PELAS CÂMARAS MUNICIPAIS: UM HABEAS CORPUS PARA IMPUNIDADE

19/06/2018 às 22:13
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Buscamos com o presente artigo, apontar por meio da análise do artigo 71 da Constituição Federal de 1988, bem como, de outros dispositivos normativos correlatos, a competência de julgamento das contas de gestão prestadas pelos Prefeitos Municipais.

JULGAMENTO DAS CONTAS DOS PREFEITOS PELAS CÂMARAS MUNICIPAIS: UM HABEAS CORPUS PARA IMPUNIDADE

Palavras-chaves: Câmara de Vereadores. Julgamento de contas de gestão e de governo. Tribunal de Contas. Competência. Supremo Tribunal Federal.

1 INTRODUÇÃO

    A temática abordada no presente artigo ganhou destaque com as eleições de 2016, sobretudo, pela elevada quantidade de processos judiciais questionando a força dos Tribunais de Contas para provocar inelegibilidade nos moldes da alínea “g”, inciso I, do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/90, a conhecida “Lei da Ficha Limpa”. 

    Esse questionamento surgiu após os Tribunais de Contas encaminharem à Justiça Eleitoral uma lista com os nomes dos gestores públicos que tiveram suas contas de gestão rejeitadas por uma decisão irrecorrível da Corte, em virtude da previsão do artigo 11º, § 5º, da Lei Federal nº 9.504/97, o qual preceitua:

Art. 11. Os partidos e coligações solicitarão à Justiça Eleitoral o registro de seus candidatos até as dezenove horas do dia 15 de agosto do ano em que se realizarem as eleições. [...] § 5º Até a data a que se refere este artigo, os Tribunais e Conselhos de Contas deverão tornar disponíveis à Justiça Eleitoral relação dos que tiveram suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, ressalvados os casos em que a questão estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, ou que haja sentença judicial favorável ao interessado (grifo nosso).

    Com o recebimento da lista com os “fichas sujas”, a Justiça Eleitoral ao apreciar o pedido de registro de candidatura a um cargo eletivo, o rejeitava, com o fundamento na existência de uma decisão irrecorrível emitida pelos Tribunais de Contas. E por conseguinte, aplicava-se a hipótese de inelegibilidade prevista na Lei da Ficha Limpa, vejamos:

Art. 1º. São inelegíveis: I - para qualquer cargo: [...] g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição (grifo nosso).

    É justamente na definição do órgão competente, ora mencionado no dispositivo acima, que as discussões apresentadas são aprofundadas. De um lado, aqueles que tiveram as suas contas de gestão rejeitadas pelos Tribunais de Contas, defendendo que a competência para julgá-las é das Câmaras Municipais. Por outro lado, os defensores da probidade e moralidade argumentam que a competência de julgamento das contas de gestão é sim, dos Tribunais de Contas, com fundamento no dispositivo constitucional previsto no artigo 71, inciso II, da Constituição Federal de 1988 (CRFB). 

    Nesta discussão, defendemos a competência das Cortes de Contas para julgar as contas de gestão dos Chefes do Executivo, tudo isso com base na interpretação dos artigos da Constituição Federal, bem como, de dispositivos infraconstitucionais. Além disso, apontaremos a grande incoerência do STF no julgamento do Recurso Extraordinário nº 846.826, o qual, em decisão ainda não compreendida pelos juristas, fixou a competência de julgamento das contas de governo e de gestão nas Câmaras Municipais, em total contramão da busca pela probidade e moralidade na gestão pública. 

    Para chegar nessa conclusão, nos apoiamos no princípio da responsabilização do gestor público, elemento basilar do fundamento republicano, que em nosso entendimento, fica totalmente fragilizado com essa decisão nefasta do Supremo. É a legitimação da frase: “roubou, mas teve a maioria na Câmara”. 

2 CONTROLE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

    Doutrinariamente, não existe uma classificação homogênea sobre as formas de controle encontradas na Administração Pública. Contudo, o interno denominado como “autofiscalizador” é extraído dos artigos 70 e 74 da CRFB/88, tratando-se de claro poder-dever, tendo em vista que a própria administração tem a obrigação de fiscalizar as suas condutas, revogando os atos inoportunos ao interesse público e até mesmo, anulando aqueles praticados em desarmonia com o ordenamento jurídico. As finalidades do controle interno estão previstas na Carta da República de 1988, vejamos: 

Art. 74. Os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário manterão, de forma integrada, sistema de controle interno com a finalidade de:

I – avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União; 

II – comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos públicos por entidades de direito privado; 

III – exercer o controle das operações de crédito, avais e garantias, bem como dos direitos e haveres da União;

IV – apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional.
§ 1º - Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegalidade, dela darão ciência ao Tribunal de Contas da União, sob pena de responsabilidade solidária. 

§ 2º - Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União.

    Trata-se de uma condição sine qua non para garantia da transparência nas ações administrativas, e consequente observância dos propósitos da República. Tal status é reconhecido em inúmeros julgados do Supremo Tribunal Federal e se relaciona com a própria essência do Estado Democrático de Direito, sobretudo, a proteção da transparência. 

    Ao redor do mundo, cada país escolhe a sua própria estrutura de organização do controle externo da Adminstração. Essas estruturas se diferenciam por vários elementos, desde a estrutura dos órgãos às competências que lhes são conferidas por normas jurídicas internas. Há contudo, um aspecto comum entre eles: a relação de proximidade entre a Corte de Contas com as instituições que detém sua titularidade, os Poderes Legislativos. Desta forma, dois modelos servem de parâmetro para distinção quanto ao órgão técnico. O primeiro é pautado na existência de Tribunais ou Conselhos de Contas, já o segundo, nas controladorias ou auditorias-gerais de controle externo. 

    Assim, no sistema de controle externo com a presença dos Tribunais de Contas, esses órgãos detém a competência para realizar o julgamento, aplicar punições e emitir deliberações dotadas de caráter impositivo para aqueles que estão submetidos ao seu controle. O modelo com as controladorias-gerais não apresenta tais atributos, realizando apenas a examinação dos atos praticados pelos gestores públicos, para após emitir relatório técnico ao titular do controle externo. 

    A CRFB/88 reserva o controle externo, de natureza política, ao Poder Legislativo com o auxílio das Cortes de Contas, sendo no âmbito nacional, o Tribunal de Contas da União; e no regional, os Tribunais de Contas Estaduais e Municipais. Já o controle externo praticado pelo Judiciário se fundamenta no princípio da inafastabilidade da jurisdição extraído do art. 5º, inciso XXV, da CRFB/88, o qual prevê que nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída de apreciação dos órgãos judicantes. 

    Portanto, a fiscalização e o controle das ações praticadas pelo Poder Executivo são competências do Poder Legislativo. A extensão desse controle é extraída do art. 71, da Carta Magna, o qual preceitua: 

Art. 71. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.  

    Neste ponto, é muito importante mencionar a relevância do apoio dos Tribunais de Contas aos órgãos do Poder Legislativo, tendo em conta a colaboração dessas Cortes com dados técnicos, apreciando a qualidade e o cumprimento das diretrizes orçamentárias por parte da Administração Pública. 

    A discussão jurídica do presente artigo consiste na interpretação do art. 70 da CRFB/88, sobretudo, na definição da competência para o julgamento das contas de gestão e de governo dos Chefes do Poderes Executivos Municipais. Conquanto, esses pontos serão tratados alicerçados na análise do Recurso Extraordinário nº 848.826 (DF), julgado pelo Supremo Tribunal Federal com a relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso. 

3 Contas de Gestão x Contas de Governo

    Prestar contas é dever do agente público, principalmente para permitir a avaliação dos requisitos legais dos atos, assim como, efetivar o princípio da publicidade, sustentáculo basilar no Estado Democrático de Direito. Por este ângulo, aponta o Professor José Afonso da Silva:

A prestação de contas da administração é um princípio fundamental da ordem constitucional brasileira (art. 34, VII, d). Todos os administradores e demais responsáveis pelos dinheiros, bens e valores públicos estão sujeitos à prestação e tomadas de contas pelo sistema de controle interno, em primeiro lugar, e pelo sistema de controle externo, depois, através do Tribunal de Contas (arts. 70 e 71). Isso se aplica à administração direta e indireta, assim como às fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público.

    À vista disso, os Chefes do Executivo devem prestar contas a cada ano, cabendo ao Tribunal de Contas a emissão de parecer prévio para fundamentar a apreciação do Legislativo. A omissão na prestação de contas é uma afronta ao pacto federativo e à Constituição Federal de 1988, que reage de forma dura, considerando-se as gravíssimas sanções mencionadas nos art. 34º, inciso VII, alínea “a” e art. 35º, inciso II, CRFB/88, os quais legitimam a intervenção no ente omisso.

    Para compreender os argumentos aqui expostos, é imprescindível alcançar as diferenças existentes entre as contas de governo e contas de gestão. A controvérsia sobre quem detém a competência de julgamento das contas dos Chefes do Executivo será debatida em tópico próprio, contudo, não podemos avançar sem a percepção dos conceitos. 

    As Contas de Governo se referem ao conteúdo global de todo o ente federativo, olhando-se em aspecto macro, o que permite a compreensão da sua situação financeira. Nelas não se investiga, nem atribui responsabilidades individuais, mas sim, se realiza uma análise global sobre a gestão do Chefe do Executivo, que no Brasil, em plano nacional, acumula as funções de Chefe de Estado e Governo. Nessa perspectiva, é possível verificar o cumprimento das leis orçamentárias e o respeito aos limites de gastos mínimos e máximos estabelecidos na Constituição para as áreas de educação, saúde, bem como, com a despesa de pessoal. De forma bem sucedida, definiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 11060, quando estabeleceu que as contas de governo:

“(…) demonstram o retrato da situação das finanças da unidade federativa (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). Revelam o cumprir do orçamento, dos planos de governo, dos programas governamentais, demonstram os níveis de endividamento, o atender aos limites de gasto mínimo e máximo previstos no ordenamento jurídico para saúde, educação, gastos com pessoal. Consubstanciam-se, enfim, nos Balanços Gerais prescritos pela Lei no 4.320/64. Por isso, é que se submetem ao parecer prévio do Tribunal de Contas e ao julgamento pelo Parlamento (art. 71, I c./c. 49, IX da CF/88)”

    Já as Contas de Gestão, também denominadas contas dos ordenadores de despesa, estão previstas no art. 71º, inciso II, da CRFB/88. Segundo o art. 80º, §1º, do Decreto-Lei nº 200/67, ordenador de despesa é:

Toda e qualquer autoridade de cujos atos resultarem emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos da administração pública”. Desta forma, elas revelam as ações de uso e administração dos recursos públicos, a exemplo de arrecadação de receitas, determinação de despesas, contratações, liquidações, empenhos, pagamentos, dentre outras. 

    Logo, os Tribunais de Contas quando analisam as contas de gestão verificam de forma aprofundada se o gestor público ao agir na condição de ordenador de despesa, cometeu algum ato lesivo aos cofres públicos, em próprio benefício ou a favor de outrem, além de buscar, quaisquer atos de improbidade administrativa. Não obstante, por interpretação do art. 71º, inciso II, da Carta da República, em face das contas de gestão exercidas quando o agente público é ordenador de despesa, em nosso entendimento, cabe o julgamento aos Tribunais de Contas.

    O tema não é pacífico na doutrina, tampouco na jurisprudência, contudo a discussão ganhou força em 2016 com o período eleitoral, tendo em vista a aplicação das restrições previstas na Lei da Ficha Limpa. 

4. Modelo de Tribunais de Contas no Brasil

    Conforme já consignado no tópico anterior, em todo mundo, cada Estado adota uma estrutura própria de organização do controle externo realizado perante à Administração Pública. O Brasil adotou o modelo no qual um órgão concentra duas competências: apreciar e julgar a regularidade das condutas praticadas pelos gestores públicos; e elaborar um parecer técnico sobre os atos executados.

    A Constituição Federal de 1988 representa um importante marco para a consolidação dos Tribunais de Contas, conexos com os fundamentos democráticos e republicanos. Para chegar no atual modelo, muitos embates foram travados, principalmente na vigência do Brasil Imperial, quando várias propostas de criação das Cortes de Contas entraram na pauta de votação do Legislativo, mas não tiveram aprovação do parlamento. 

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    Justamente por isso, não podemos deixar de destacar a contribuição indispensável do Jurista Ruy Barbosa para criação dos Tribunais de Contas no aparato estatal Brasileiro. A Carta Magna de 1988 ampliou de forma considerável as competências e atribuições das Cortes de Contas, atribuindo-lhes as tarefas de fiscalização nos âmbitos contábil, orçamentária e patrimonial. As decisões desses tribunais também foram reforçadas, passando-lhes a deter os poderes sancionatórios, o que permitiu consequentemente a aplicação de multas.

    Atualmente, no Brasil, existem três modalidades de Tribunais de Contas: Tribunal de Contas da União; Tribunal de Contas dos Estados; e Tribunal de Contas dos Municípios. Tudo isso, em consequência da forma federativa adotada, no qual, há a plena divisão de tarefas entre os entes, tendo como modelo, o adotado pelo ente central.  

    Cumpre inicialmente, ressaltar, que entre eles não há qualquer tipo de subordinação, muito menos interdependência. Cada um atua conforme as suas atribuições e competências que estão mencionadas na CRFB/88. Pela própria denominação das Cortes, fica claro que os poderes de cada órgão são diretamente vinculados aos espaços territoriais do ente. 

    O Controle Externo da Administração Pública, no Brasil, está inserido no campo do Poder Legislativo. Assim, em âmbito nacional, segundo a Constituição Federal, é realizado pelo Congresso Nacional com o auxílio do Tribunal de Contas da União (TCU), órgão responsável pela fiscalização dos recursos federais. Compete mencionar que as funções do TCU extrapolam as fronteiras do país, alcançando inclusive a gestão de recursos nos consulados e embaixadas. Fruto do Poder Constituinte Derivado Decorrente, que autoriza aos Estados-Membros da Federação, a elaboração de suas próprias constituições, surgiram os Tribunais de Contas nos Estados que acumulam tanto as funções de fiscalização dos órgãos do Estado, quanto dos municípios.

    Por conseguinte, em homenagem ao princípio da simetria, o art. 75º da CRFB/88 estendeu, naquilo que foi adequado, as regras de organização, composição e fiscalização do TCU aos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal. É importante realçar a impossibilidade de criação das Cortes Municipais, por força do impeditivo normativo presente no art. 31º, §4º, da CRFB/88.     

    A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica nesse sentido, vejamos:

A Constituição da República impede que os Municípios criem os seus próprios Tribunais, Conselhos ou órgãos de contas municipais (CF, art. 31, § 4º), mas permite que os Estados-membros, mediante autônoma deliberação, instituam órgão estadual denominado Conselho ou Tribunal de Contas dos Municípios (RTJ 135/457, rel. min. Octavio Gallotti – ADI 445/DF, rel. min. Néri da Silveira), incumbido de auxiliar as Câmaras Municipais no exercício de seu poder de controle externo (CF, art. 31, § 1º). Esses Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios – embora qualificados como órgãos estaduais (CF, art. 31, § 1º) – atuam, onde tenham sido instituídos, como órgãos auxiliares e de cooperação técnica das Câmaras de Vereadores. A prestação de contas desses Tribunais de Contas dos Municípios, que são órgãos estaduais (CF, art. 31, § 1º), há de se fazer, por isso mesmo, perante o Tribunal de Contas do próprio Estado, e não perante a Assembleia Legislativa do Estado-membro. Prevalência, na espécie, da competência genérica do Tribunal de Contas do Estado (CF, art. 71, II, c/c o art. 75).

    Portanto, mesmo com a proibição, os Estados podem criar um Tribunal de natureza estadual com atributos de auxiliar os Poderes Legislativos Municipais, corroborando e reforçando com os fundamentos da República. Afinal de contas, a fiscalização dos atos públicos é elemento indispensável de um Estado Democrático e Republicano. 

    É pertinente frisar que apesar do impeditivo, os municípios do Rio de Janeiro e de São Paulo criaram, respectivamente, em 23 de outubro de 1980 e em 20 de novembro de 1968, as suas Cortes de Contas de âmbito municipal. Hoje, são os únicos exemplos de Tribunais Municipais existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Isso decorre da impossibilidade de declaração da inconstitucionalidade superveniente, afinal, no momento em que foram instituídos, os atos administrativos detinham permissão legal e a entrada em vigência de uma nova Constituição não pode tornar uma norma jurídica invalida, apenas por conflitar no plano formal. 

    Essa é a posição majoritária do Supremo Tribunal Federal, no qual, o momento de confirmação da constitucionalidade ou inconstitucionalidade, em que se verifica o plano da validade de uma norma, deve ser realizado na gênese, tendo como base, a Constituição vigente à época de sua elaboração. Desta forma, uma norma constitucional não se torna inconstitucional pelo mero surgimento de uma nova Carta Constitucional. 

    Nesse mesmo sentido, aponta o Ministro Paulo Brossard, ao destacar o entendimento majoritário do STF:

É cediço na doutrina, quanto na jurisprudência, que a inconstitucionalidade se afere em relação à Constituição contemporânea ao ato impugnado. A nova ordem constitucional revoga a norma por ela não ser recebida por motivo de incompatibilidade. Não torna, evidentemente, inconstitucional, o que antes nascera sem esse vício.

    Ratifica esse posicionamento, o Ministro Luís Roberto Barroso em sua obra “O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro”, vejamos: 

A inconstitucionalidade será superveniente quando resultar do conflito entre uma norma infraconstitucional e o texto constitucional, decorrente de uma nova Constituição ou de uma emenda. Como já assinalado, não existe no direito brasileiro inconstitucionalidade formal superveniente: a lei anterior subsistirá validamente e passará a ter o status da espécie normativa reserva pela nova norma constitucional para aquela matéria. Já a inconstitucionalidade material superveniente resolve-se em revogação em norma anterior, consoante orientação consolidada do Supremo Tribunal Federal.  

5. Contas de Governo e competência de julgamento

    No Ordenamento Jurídico Brasileiro, existem dois regimes jurídicos diferentes relacionados às contas públicas que são prestadas pelos Gestores Públicos. Há portanto, as Contas de Governo e de Gestão. Inicialmente, é preciso pontuar que as distinções existentes entre elas, são realizadas em face não apenas da Lei da Ficha Limpa, como também à luz da Constituição Federal. 

    Desta forma, as Contas de Governo que só podem e devem ser prestadas pelos Chefes do Executivo, apresentam a realidade financeira dos entes federativos, mostrando assim, os resultados das ações governamentais realizadas naquele exercício financeiro, em que as contas foram prestadas.

    Verifica-se então que são contas voltadas a analisar à conduta dos gestores públicos no cumprimento de suas atribuições políticas de organização, planejamento, assim como, do controle das políticas públicas dos próprios entes federativos, tudo isso com base nas Leis Orçamentárias (Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária Anual), que foram apresentadas pelo Chefe do Executivo ao Poder Legislativo, aprovadas com ou sem ressalvas pelos representantes do povo. Aqui, além da gestão orçamentária, se analisa o desempenho das ações governamentais nos aspectos financeiros e patrimoniais. Via de regra, as Contas de Governo são realizadas anualmente, contudo, podem ser prestadas em face do fim da gestão, a exemplo da transmissão de cargos.

    De fato, independentemente do momento de sua realização, há de se pontuar claramente que as Contas de Governo revelam a situação financeira do ente federativo, mostrando o patamar de endividamento e certificando se no exercício financeiro houve a aplicação de recursos públicos nos patamares previstos na Constituição, sobretudo, na saúde e educação. É justamente por isso que também são denominadas por contas globais, haja vista, o cumprimento das exigências prevista na Lei nº 4.320/1964, a Lei de Orçamento Público. Antes de avançar, cumpre mencionar que nas Contas de Governo ainda se verifica se houve respeito às regras estabelecidas na Lei de Responsabilidade Fiscal. Busca-se portanto, constatar in loco se o ente federativo realizou a sua gestão orçamentária de maneira correta e adequada. 

De acordo com a natureza das contas: de governo ou de gestão, os Tribunais de Contas prestam atividades diferentes. No caso, das Contas de Governo, em face da sua natureza eminentemente política, as Cortes de Contas apenas detém a competência para emissão de parecer prévio, enviando-o para julgamento nas respectivas Casas Legislativas, estipuladas com base no ente federativo. Essa é a previsão do art. 71º, Inciso I, da CRFB/88: 

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento (grifamos e destacamos).

    O dispositivo acima mencionado, em nosso entendimento, legitima a competência do Poder Legislativo para julgar em definitivo as Contas de Governo, aquelas que conforme já pontuamos, apreciam a conduta do gestor na execução de suas funções políticas de planejamento, organização e controle das políticas públicas estabelecidas nas Leis Orçamentárias.

    Cabe portanto, a competência exclusiva definida no artigo 49, inciso IX, da CRFB/88: “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: IX - julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo”.

    A competência das Casas Legislativas é claramente justificada pela própria natureza das Contas de Governo, as quais buscam avaliar o desempenho do Administrador Público na condução da gestão orçamentária, patrimonial e financeira. Nela, o Chefe do Executivo atua na condição de agente político, e é por isso, que as Contas de Governo também são denominadas como contas de resultados ou de desempenho governamental. 

6. Contas de Gestão e competência de julgamento

    As contas de gestão, também denominadas por contas dos ordenadores de despesas, encontram gênese no art. 80º do Decreto-Lei nº 200/1967, bem como, no art. 71º, inciso II, da CRFB/88. Assim, considera-se ordenador de despesas, toda e qualquer autoridade cujos atos resultam na emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento ou dispêndio de recursos da União ou que pela qual ela responda. 

    O Ministro Luz Fux, em seu brilhante voto, refere-se as Contas de Gestão como:

Atos específicos e individualizáveis de administração de recursos públicos pelos seus administradores e responsáveis por geri-los, bem assim de órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, aí incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público.

     Contas de Gestão apresentam três modalidades. A primeira delas são as contas ordinárias, nas quais são apresentados dados gerenciais, financeiros e contábeis da gestão dos ordenadores de despesas, ou seja, que efetuaram compras, arrecadaram, contrataram, pagaram e consequentemente tinham o dever de proteger o patrimônio público. Elas são prestadas anualmente. A segunda refere-se as contas especiais, cujo momento de apresentação é marcado pela eventualidade, só se manifestando na hipótese de constatação de danos ao patrimônio público. Também são formadas por dados gerenciais, financeiros e contábeis, contudo, apontam sobre o período de gestão do gerador dos danos ao erário. A última são as contas extraordinárias, e como o próprio nome diz, só são apresentadas na ocorrência de um fato superveniente, a exemplo, da dissolução, fusão ou incorporação de unidades jurisdicionadas. 

    Assim sendo, os Tribunais de Contas na apreciação e julgamento das Contas de Gestão, ao contrário do que acontece nas Contas de Governo, analisam minuciosamente e individualmente, cada ato administrativo praticado dentro das gestões contábil, financeira, orçamentária e patrimonial do ente público. Tudo isso, para verificar se os atos foram praticados no estrito respeito à legalidade, legitimidade e economicidade. Antes de avançarmos, é necessário conceituar cada um desses pontos. 

    A legalidade é uma norma diretamente relacionada com à Administração Pública, já que, deve sempre atuar em total e irrestrita observância às leis. Trata-se portanto, de uma norma-princípio, haja vista que norteia toda conduta do Estado. Dessa forma, uma conduta será considerada ilegal quando for praticada sem prévia disposição normativa ou contrária à lei. Não obstante, sabe-se que nenhum princípio é absoluto, e em conflito com outros princípios, deve-se aplicar os postulados da razoabilidade e proporcionalidade.

    Já os Tribunais de Contas, ao analisarem o respeito à legitimidade, buscam constatar se os atos administrativos foram produzidos de acordo com as finalidades previstas na lei. Verifica-se portanto, a regularidade da conduta. Defender a legitimidade é combater o desvio de finalidade.

    Por fim, definir a economicidade é uma tarefa bastante complexa, pois o termo apresenta significados diferentes em vários campos da ciências, contudo, no âmbito da nossa abordagem, deve ser entendida como um controle da eficiência na gestão financeira e orçamentária do ente. Isso quer dizer, uma diminuição dos custos e gastos públicos, com a consequente ampliação da receita e arrecadação.

    A decisão do Supremo Tribunal Federal que fixou a competência de julgamento das contas de governo e de gestão dos Prefeitos nas Câmaras Municipais representa um grande retrocesso jurídico, já que, impede a declaração de inelegibilidade nos moldes da alínea “g”, inciso I, do artigo 1º da Lei Complementar 64/1990, com base na rejeição das contas de gestão decididas pelos Tribunais de Contas. 

    Em brilhante voto, o Ministro Relator, Luís Roberto Barroso, pontuou que a competência de julgamento é determinada pela natureza das contas, ou seja, se de gestão ocorrerá nos Tribunais de Contas, em face do aspecto técnico; ou se de governo, será realizado pelas Câmaras Municipais, já que, são constituídas de elementos políticos. 

    Divergindo, o Ministro Ricardo Lewandowski, responsável pela lavratura do acordão, considerou, data máxima vênia, de forma equivocada, que os Tribunais de Contas são órgãos auxiliares do Poder Legislativo na tarefa de análise das contas apresentadas pelos Chefes do Executivos. Realizam apenas, a “mera” e “simples” apresentação de um parecer prévio. Desta forma, o julgamento em definitivo caberia aos Poderes Legislativos nos seus respectivos âmbitos. Para Lewandoski, a competência de julgamento é determinada exclusivamente pelo cargo de quem as prestou. Tudo isso, em homenagem ao equilíbrio entre os Poderes. Esse posicionamento foi acompanhado por mais cinco ministros, criando repercussão geral sobre o assunto. 

    Sem embargo, no voto proferido pelo Ministro Lewandoski há o reconhecimento da existência de diferenças entre as contas apresentadas. Afinal assim, ele pontuou: 

(…) verifico que a distinção entre as contas políticas e as contas de gestão passou a ser feita pela Lei Complementar 135/2010. No entanto, percebo que houve um exacerbamento hermenêutico em relação aos seus dispositivos, de modo a atribuir-se aos Tribunais de Contas, indevidamente, força vinculante aos seus pareceres, em se tratando de contas de gestão.

    Ainda discordando dos argumentos do Ministro, verificamos que não houve uma extrapolação no campo da interpretação jurídica, mas sim, a clara leitura do que está disposto no mencionado dispositivo. Fica muito claro que a Lei da Ficha Limpa, declarada pelo STF como constitucional, corroborou com o já previsto no artigo 71, inciso II, da CRFB/88, o qual, fixou a competência de julgamento, em definitivo, no que tange às contas de gestão, ao Tribunal de Contas da União. A conclusão é simples, vejamos.

    Assim, dispõe o artigo 71, inciso II, da CRFB/88:

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público (grifamos e destacamos).

    De igual modo, o artigo 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei da Ficha Limpa:

Art. 1º. São inelegíveis: I – Para qualquer cargo: g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição (grifamos e destacamos).

    Mais uma vez, com toda vênia, entendemos que os argumentos apresentados pelo Ministro Relator só favorecem a impunidade e são desprovidos de qualquer fundamento constitucional. Isso fica ainda mais evidente quando Lewandoski afirma que o “exacerbamento hermético" deve ser combatido:

Porque um número enorme de candidatos ou representantes, notadamente Prefeitos, que vem crescendo de maneira exponencial, tornaram-se inelegíveis por um pronunciamento do Tribunal de Contas, órgão de natureza eminentemente administrativa, ainda sujeito à apreciação do órgão legislativo (grifamos e destacamos).

    Ora, se ficaram inelegíveis é porque na gestão de recursos públicos deixaram de respeitar à legalidade, legitimidade e economicidade. Apenas a título de exemplificação, no relatório divulgado pelo Tribunal de Contas dos Municípios da Bahia, no exercício financeiro de 2015, 152 contas prestadas pelas Prefeituras e julgadas pelo órgão foram rejeitadas, representando o percentual de 36,4%. Já em 2016, o número aumentou para 192, correspondendo a 47,1%. 

    Fica claro o maior causador da rejeição: o descumprimento do limite de despesa com pessoal previsto no art. 20º, inciso III, da Lei Complementar 101/00, a conhecida Lei de Responsabilidade Fiscal. Trata-se de um importante instrumento normativo que combate a transformação do Poder Público em uma verdadeira cabine de emprego, maculando sobretudo o acesso obrigatório de cargo público por meio de concurso público. Será que isso é pouco? Não! 

    Ainda com dados da pesquisa do TCM-BA, no período de 2014-2016, foram imputadas multas e ressarcimentos aos gestores públicos municipais, os quais ultrapassaram o valor de R$ 376 milhões. Isso por incorrerem na prática de sonegação de processo; reincidência no descumprimento de determinação do Tribunal; ato ilegal, ilegítimo, antieconômico do qual ocasione dano injustificado ao erário; ou praticado um ato de natureza grave às normas legais, bem como, aos elementos contábeis, fiscais e orçamentários. 

    Em um Estado Democrático de Direito, jamais podemos aceitar que a corriqueira frase “roubou, mas teve a maioria na Câmara” se torne realidade e seja aceita com naturalidade. É desnaturar a essência da República, “res publica”, a “coisa pública”. É muita incoerência! 

    Contrariando ainda o voto de Lewandoski, além de todo o exposto nos capítulos anteriores, entendemos e defendemos o reconhecimento da dicotomia nas contas prestadas pelos Prefeitos. É por meio dela, que conjugada com os artigos também já mencionados, fica clara a fixação da competência de julgamento. 

    De fato, concordamos com o Ministro, ao afirmar que os Prefeitos podem deixar paulatinamente de serem ordenadores de despesas, “passando a gestão, por exemplo, para os Secretários Municipais, Diretores de Departamentos e outros Servidores Subalternos”, tudo isso para “correr” do julgamento técnico nos Tribunais de Contas. Acontece que conforme já discorremos, mesmo que ocorra a delegação, ainda existirá o dever de prestação de contas e os riscos inerentes a essa gestão de recursos públicos, devem ser suportados por quem recebeu a atribuição de ordenador de despesas. Não muda nada! Não existe prerrogativa de foro funcional nas contas. Ou o fato do Prefeito não ser o ordenador reduz o grau da reprovabilidade do dano causado ao erário? 

    A natureza do cargo ocupado pelo prestador não deve, nem tampouco, pode influenciar a fixação da competência de julgamento das contas. Afinal de contas, se existisse a prerrogativa de foro funcional, teríamos uma grande e gravíssima “brecha” para fugir do “pente fino” realizado pelos Tribunais de Contas em suas análises técnicas. Esse alerta foi brilhante apontado pelo Ministro Luiz Fux em seu voto: 

(…) seria suficiente que os Prefeitos evocassem todas as ordenações de despesas de suas municipalidades, o que a fortiori subtrairia o exercício do controle externo exercido pelos Tribunais de Contas quando do julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por recursos públicos.

    O que muda é apenas a titularidade do prestador, haja vista que a competência de julgamento das contas não é definida com base no cargo ocupado por quem as presta, mas sim, pela natureza da despesa. Técnico (gestão) será julgado com quem detém a capacidade de análise técnica, ou seja, os Tribunais de Contas. Gestão (política) por quem tem a competência de verificar o desempenho político do Gestor, ou seja, as Câmaras Municipais.

    A análise conjunta dos incisos I e II do art. 71º da CRFB/88 é de fundamental importância para clara definição da competência aqui definida, além de apontar o papel dos Tribunais de Contas no cumprimento de duas funções distintas, em face das contas de governo e das contas de gestão. Apesar de já debatido anteriormente, consideramos essencial o aprofundamento. In verbis:

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento; II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.

   Cristalina, em nosso entendimento, é a autonomia apresentada pelo Poder Constituinte Originário aos Tribunais de Contas no mencionado dispositivo. Por isso, reconhecer as diferenças entre a função de fiscalização prevista no inciso I do artigo 71 e o julgamento constante no inciso II também do artigo 71, detém uma grande relevância constitucional. Deixar de reconhecer a competência de julgamento dos Tribunais de Contas sobre as contas de gestão dos Chefes dos Executivos atinge sobremaneira à República, além de favorecer a impunidade dos deletérios, violando ainda, o escopo indenizatório e restituidor do processo de contas. É a legitimação da prevalência do apoio político para afastar a responsabilização do gestor dilapidador do erário. 

    Por todo o exposto, percebe-se que a decisão do Supremo Tribunal de Contas representa um verdadeiro “habeas corpus” da impunidade, atingindo a essência da Lei da Ficha Limpa e permitindo que deletérios continuem na vida pública, tudo isso, com a aprovação de um “forjado” julgamento político.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Em um Estado Democrático de Direito, o controle dos atos da Administração Pública é sem sombra de dúvidas, imprescíndivel, para se evitar o uso da máquina estatal com finalidade diversa daquela almejada pelo interesse público. Além disso, fiscalizar e controlar o aparato do Estado nos permite otimizar as ações governamentais, fazendo com que os princípios republicanos constantes na Constituição Federal de 1988 sejam realmente concretizados. Não se pode permitir que uma gestão, dentro do regime democrático, atue na contramão dos princípios da economicidade, legalidade e moralidade.

    Ademais, apesar do controle dos atos públicos ter sido ampliado por meio de várias ferramentas, sobretudo, com a atuação mais incisiva da população e do Ministério Público, percebe-se que os casos de improbidade administrativa e desvios do erário só aumentam. Os gestores públicos estão cada vez mais irresponsáveis e adotam posturas voltadas ao continuísmo do seu projeto político, e na verdade, utilizam a própria máquina pública para se perpetuarem no poder. 

    É dentro desse diapasão que os Tribunais de Contas exercem um papel importante na conjuntura da República. São eles que acertadamente, por força da própria Constituição Federal, analisam e julgam as contas de gestão dos Chefes dos Poderes Executivos, verificando in loco, se os atos dos administradores púbicos foram praticados no restrito respeito aos princípios e regras que norteiam a coisa pública. 

    Neste sentido, resta devidamente comprovado que as Cortes de Contas possuem sim, competência para julgar as contas de gestão dos Prefeitos. Essa afirmação decorre do próprio conteúdo técnico das referidas contas, diferentemente do que acontece com as contas de governo, em que é analisado o desempenho governamental na execução das leis orçamentárias. Conteúdo técnico, julgamento técnico. Conteúdo político, julgamento político. É bem simples. 

    À vista disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal que fixou a competência de julgamento nas Câmaras de Vereadores representa um gravíssimo erro e necessita ser revista o mais rápido possível, sob pena de servir como uma verdadeira nova forma de “habeas corpus preventivo”, só que desta vez, voltado para a impunidade.

    Atribuir aos Tribunais de Contas a competência para julgar em definitivo, as contas de gestão dos Prefeitos Municipais, além de preservar a essência da república, evita a ocorrência de lesões ao erário decorrentes de uma gestão irresponsável. Pensar de forma contrária, é caminhar contra o dever de probidade, tão importante para manutenção do Estado Democrático. 

    Portanto, é lamentável a decisão do Supremo Tribunal Federal no que tange ao não reconhecimento da competência dos Tribunais de Contas no julgamento das contas de gestão prestadas pelos Prefeitos Municipais, e por todo o exposto, resta comprovado o surgimento da prerrogativa de foro funcional que atinge diretamente a estrutura de controle externo cristalizada pelo Poder Constituinte Originário no artigo 71, inciso II da CRFB/88.

    Defender posição contrária é permitir que os Prefeitos pratiquem ilicitudes na gestão da coisa pública e as suas contas passem por um julgamento político, no qual, sabe-se bem, que valem mais os interesses pessoais do que o respeito aos princípios republicanos, entre eles, o da responsabilização dos governantes pelos atos praticados. 

    Resta agora, corrigir o erro cometido pelo Supremo Tribunal Federal. Para isso, a Procuradoria-Geral da República apresentou embargos de declaração contra o acordão proferido pelo STF, para suprir omissão da decisão em face de não ter abordado aspectos relevantes da controvérsia, a exemplo da distinção entre as contas aqui apresentadas. Além disso, a omissão se fundamenta na leitura não conjugada dos incisos I e II do artigo 71 da CRFB/88 que impede o aprofundamento do tema em seus reais contornos. Espera-se agora, que o Supremo reconheça o erro e modifique a sua decisão, cessando assim, o “habeas corpus preventivo” ora concedido aos políticos deletérios. 

REFERÊNCIAS 

 SANTOS, Afonso Mendes dos. Julgamento das Contas de Gestão dos Prefeitos pelas Câmaras Municipais em detrimento ao parecer técnico dos Tribunais de Contas: um habeas corpus para a impunidade. 2017. Monografia (Bacharelado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade do Estado da Bahia, Valença/BA, 2017.

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Sobre o autor
Afonso Mendes Santos

Advogado, Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Consultor Legislativo com extensão em Processo Legislativo Municipal, Lei Orgânica Municipal e Orçamento Público Avançado pelo Instituto Brasileiro Legislativo (ILB).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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