O muro entre Israel e Palestina.

Entre direito internacional e segurança israelense

30/06/2018 às 22:57
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O artigo pretende contribuir ao esclarecimento do conflito de interpretações prolatadas, de um lado, pela Corte Internacional de Justiça da ONU e, do outro, pela Suprema Corte Israelense a respeito da edificação do muro entre Israel e a Palestina.

Introdução

Nosso artigo busca analisar o posicionamento jurídico israelense em conflito com o parecer consultivo (advisory opinion) da Corte Internacional de Justiça da ONU, publicado em nove de julho de 2004, contrário à construção do denominado muro de Israel. Buscar um entendimento acerca dos motivos fundamentadores dos tribunais nacionais israelenses aos seus julgamentos, questionando aparentes contradições com normas internacionais tornou-se essencial para compreender a amplitude de tal discussão, que extrapola as fronteiras do oriente médio.

O método inicialmente planejado era o dialético, em razão da oposição entre o parecer consultivo emanado da Corte Internacional de Justiça a respeito da edificação do muro israelense e os julgados da Suprema Corte de Israel. Embora não tenha havido forte mudança quanto a isso, entendeu-se que melhor foi aplicar o método bibliográfico, em razão de um problema aparentemente singular, como o conflito de entendimentos jurídicos aqui retratado, ser algo muito mais comum à normatividade do que se imaginou no começo.

A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas decidiu que o seguinte assunto, estabelecido em resolução prévia, devia ser submetido à jurisdição da Corte Internacional de Justiça:

“Quais são as consequências jurídicas advindas da construção do muro que está sendo erguido por Israel, a Potência Ocupante, no Território Palestino Ocupado, incluindo o interior e os arredores de Jerusalém Oriental, tal como descrito no relatório do Secretário-Geral, considerando-se as regras e os princípios do direito internacional, incluindo a Quarta Convenção de Genebra de 1949, e as resoluções relevantes do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral?”

Após uma análise a respeito do histórico de Jerusalém, com destaque para a sua formação e suas guerras, em especial as posteriores à formação do Estado de Israel, a Corte Internacional de Justiça parte ao julgamento de mérito, entendendo que não cabe ao Estado de Israel o direito à construção do muro, uma vez que a mesma se dá em território ocupado, situação que advém de 1967, quando territórios limítrofes, em sua maioria árabes, foram anexados pela Potência Ocupante na então denominada Guerra dos Seis Dias.

O julgamento da Corte Internacional de Justiça propugna, com fundamento inclusive na Quarta Convenção de Haia, que a construção do muro israelense incorre em violação ao Direito Internacional Humanitário, porquanto a maioria da cerca defensiva passa pelo território jordaniano. São impostas a Israel, consequentemente, a cessação imediata da edificação do muro e a reparação pelos danos causados às comunidades locais.


O muro

Cabe destacar alguns dados técnicos da edificação do muro: a construção começou emv2002, quando o Estado de Israel estava sob presidência de Moshe Katsav, embora a ideia date de muito tempo antes. O plano era de que a cerca defensiva tivesse 708 km de extensão, 85% cortando o interior da Cisjordânia. Até julho de 2014, mesmo com o parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça, 62% do muro já estavam completos, 8% estavam em construção e os 30% restantes, embora planejados, não tinham data para começar as obras. Após o parecer consultivo, 200 km do muro foram construídos1.

O muro em si vai muito além de uma mera parede. Ele abrange várias cercas, valascpara impedir o avanço de tanques, arames farpados de ambos os lados, estradas para circulação dos grupos de patrulha e um sistema eletrônico de monitoramento bem avançado; além, é claro, do paredão, que possui, na maioria de sua extensão, oito metros de altura. Toda essa área de “proteção” se estende por cerca de 60 metros ao redor de toda a muralha2.

Em áreas urbanas, como Belém, Jerusalém e Tulkarm – que compreendem cerca de 70 km da barreira – o muro pode alcançar cerca de nove metros de concreto somente de largura, o que forma lajes e possibilita a existência de uma muralha. Existem, além dos portões de acesso, 81 portões especiais no muro, os quais servem para o acesso às áreas agriculturáveis. Muitos seguem regras duras, em que o acesso se dá em determinadas horas do dia e alguns outros portões, inclusive, só abrem em certos períodos do ano3.


A Suprema Corte Israelense

Paralelamente ao parecer consultivo, o pretório excelso de Israel, em julgamento do habeas corpus 2056/04, mais conhecido como Caso Beit Sourik (Beit Sourik Village Council vs. The Government of Israel and the Commander of the IDF Forces in the West Bank), chega a conclusão diferente daquela tomada no parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça4.

A Suprema Corte israelense, no caso ora tratado, conclui seu julgamento assentando que uma decisão a respeito da edificação do muro superficialmente, sob o paradigma do Direito Internacional Público, não apresenta relevância. A solução da celeuma jurídica deveria passar por uma análise de cada segmento da cerca.

Essa divergência interpretativa põe em xeque a unidade normativa, tão aspirada pela corrente monista do Direito Internacional Público. Entretanto, mesmo com os tribunais nacionais chegando a decisões divergentes daquelas adotadas pelos tribunais internacionais, os melhores meios para o desenvolvimento de um corpo normativo internacional ainda passa por aqueles. Conforme ensinou Lewis Powell: “[…] until international tribunals command a wider constituency, the courts of the various countries afford the best means for the development of a respected body of international law”5. Entender, consequentemente, os motivos determinantes dessa divergência interpretativa é a chave para transformar as cortes dos países em elementos ressoantes da Lei Internacional.


Conflito de normas

É inegável que atualmente as cortes nacionais, especialmente as supremas cortes, são responsáveis por validar o Direito Internacional Público nos territórios nacionais, havendo pouquíssimas ocasiões em que o acordado internacionalmente terá preferência frente à norma local6. Além de ratificadores, os tribunais de cada Estado podem desempenhar um outro papel muito relevante: garantir a aplicação da Lei Internacional em ambientes recalcitrantes.

De inquestionável relevância, portanto, ao Direito Internacional Público, os tribunais nacionais possuem o poder de interpretar a Lei Internacional de acordo com a normatividade nacional; e melhor é a interpretação quanto maior é a independência e a imparcialidade dos juízes, em uma relação direta de proporcionalidade. Um judiciário apartidário, que adota formas técnicas de interpretação, obtém decisões mais eficazes e eficientes.

No entanto, quando os tribunais nacionais estão comprometidos não com a normatividade, mas sim com os seus respectivos governos, a interpretação da Lei Internacional é corrompida, gerando incerteza e injustiça. De acordo com Eyal Benvenisti7, professor da Universidade de Tel Aviv, existem três causas principais responsáveis por isso: a) as cortes nacionais interpretam de maneira restritiva os seus artigos constitucionais que possuem relação com o Direito Internacional Público; b) os tribunais nacionais buscam interpretar a lei de forma a não contradizer os governos locais; c) o uso de doutrinas minoritárias e divergentes, também denominadas doutrinas de evasão, para servir como escudo judicial para os governantes. 

A primeira forma de interpretação corrupta da Lei Internacional, que diz respeito à aplicação restritiva dos artigos constitucionais os quais remetem ao Direito Internacional, tornou-se muito comum com o conflito de normas. Esta é a hipótese em que a interpretação judicial é feita da maneira que menos faça menção à Lei Internacional. Em algumas situações, devido a deficiências no processo de ratificação daquilo que foi acordado internacionalmente, surgem conflitos entre a lei local e a norma internacional. Nessas hipóteses, as cortes nacionais que não estão comprometidas com a normatividade mas sim com seus executivos dão prevalência à legislação de seu países, sem a justa averiguação jurídica do conflito. 

Embora seja raro, algumas cortes nacionais atribuem, em mais uma tentativa de tomar decisões que favoreçam seus governos, hierarquia às fontes de Direito Internacional Público. A Holanda, por exemplo, tem expresso em seu texto constitucional a referência a tratados internacionais, mas sua corte suprema já defendeu que o costume internacional não é aceito como fonte da Lei Internacional. 

Outra forma de má aplicação do Direito Internacional se dá através do teleologismo, quando os juízes, deliberadamente, pretendem não enfrentar os governos locais, na busca de uma solução mais utilitária aos seus Executivos. As causas são as mais variadas, sendo impossível listar todas elas. Algumas, contudo, merecem destaque: 1) o partidarismo do judiciário, situação em que a própria imparcialidade do magistrado é comprometida por vinculações com programas de governo; e 2) terrorismo ao judiciário, situação em que os juízes são ameaçados institucionalmente a fim de proferirem sentenças em determinado sentido. 

Nessas hipóteses, os tribunais nacionais ficam presos a uma visão utilitarista da norma. A interpretação é feita de modo a causar o maior benefício aos governos locais, ignorando noções de justiça e abrindo mão de um paradigma kantista, isto é, de fazer aquilo que é certo não por ser bom, mas simplesmente por ser o certo a se fazer8. 

O uso de doutrinas minoritárias ou divergentes desvirtua igualmente a Lei Internacional. Esta prática tornou-se comum em países violadores do Direito Internacional, sobretudo nos Estados Unidos da América9. Tornou-se comum, também, a influência da diplomacia na interpretação dos tratados. Alguns países adotam ou deixam de adotar determinado tratado internacional a depender de como é a relação com o outro Estado signatário. 


Conclusão

Com base no princípio pacta sunt servanda, os Estados comprometem-se internacionalmente, delimitando, em seus textos constitucionais, o papel que desempenhará o Direito Internacional Público frente à normatividade nacional. Entretanto, paralelamente às análises jurídicas sobre a edificação do muro de Israel e sobre a própria Lei Internacional, várias comunidades locais, em especial grupos palestinos, são afetados rotineiramente pela construção do muro. 

Moradores da cidade de Beit Jala, vizinha de Belém, reúnem-se todas as sextas-feiras para manifestarem-se contra a ocupação daquele território por parte de Israel. Comunidades cristãs também são afetadas pela edificação do muro: o Vale de Cremisan, que abriga uma das mais importantes representações da Igreja Católica no Oriente Médio, é afetado pela edificação do muro e pela consequente perda de territórios. Além dos protestos contra a cerca defensiva, as comunidades locais também se reúnem para lembrar as prisões arbitrárias cometidas pelo Estado de Israel. 

A ordem jurídica internacional, em especial aquela que diz respeito às relações entre Estados, tende a sofrer influências das relações diplomáticas, bem como, consequentemente, da economia e da política. As cortes nacionais, que em um cenário ideal são essenciais à formação de um sólido corpo normativo internacional, perdem-se em interpretações jurídicas utilitaristas, que atendem aos interesses de seus governos locais, sendo a paixão partidária e o terrorismo ao judiciário suas principais causas. 

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A Suprema Corte Israelense, semelhantemente, adota, conforme as análises de seus julgados, em especial os habeas corpus, interpretações utilitaristas, à medida em que são avaliadas, de um lado, a segurança da população israelense, e, do outro, as violações aos povos dos territórios ocupados, em sua maioria árabes. 

É inegável o alinhamento das cortes nacionais com os seus governos locais, não sendo Israel uma exceção. Contudo, é fundamental avaliar criticamente os liames da interpretação judicial proferida pelas cortes dos Estados, uma vez que é cinza a fronteira entre a convencionalidade das decisões para os governos locais e a sua fundamentação.


Notas

[1] Dados indicados pelo Centro de Israelense de Informações para os Direitos Humanos nos Territórios Ocupados (B'Tselem). Informações disponíveis em: <http://www.btselem.org/>. Acesso em 06 de julho de 2017.

[2] Isseroff, Ami. Israel High Court Ruling Docket H.C.J. 7957/04. International Legality of the Security Fence and Sections near Alfei Menashe. Disponível em: <http://www.zionismisrael.com/hdoc/High_Court_Fence.htm>. Acesso em 07 de julho de 2017.

[3] Dados retirados da Procon, uma organização beneficente que atua pelo mundo todo. Mais informações em: <http://www.procon.org>. Acesso em 7 de julho de 2017.

[4] ISRAEL. High Court of Justice. HCJ 2056/04. Disponível em: <http://elyon1.court.gov.il/Files_ENG/04/560/020/A28/04020560.A28.pdf>. Acesso em 7 de julho de 2017.

[5] USA. Supreme Court. First National City Bank v. Banco Nacional de Cuba. 406 U.S. 759. Disponível em: <https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/462/611>. Acesso em 7 de julho de 2017.

[6] Luxemburgo e Bélgica são umas das poucas exceções.

[7] Benvenisti, Eyal. Judicial Misgivings Regarding the Application of International Law: An Analysis of Attitudes of National Courts. Disponível em: <http://ejil.org/pdfs/4/1/1197.pdf>. Acesso em 7 de julho de 2017.

[8] SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa. 6ª Edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, 349 páginas.

[9] Kiithi, Mauro. Os Norte-americanos Como Violadores do Direito Internacional: Análise da Condenação dos EUA pela Corte Internacional de Justiça


Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua. Tradução: Henrique Burigo. Belo Horizonte. Editora UFMG: 2002.

FROTA, H. A. da. O muro israelense. Reflexões e perspectivas jurídicas (visão multicultural). Anuario Mexicano de Derecho Internacional, v. 7, p. 433-480, 2007

HIGH COURT OF JUSTICE OF ISRAEL (HCJ), 2056/04 Beit Sourik Village Council v. The Government of Israel

HIGH COURT OF JUSTICE OF ISRAEL (HCJ), 7957/04 Mara’abe v. The Prime Minister of Israel

INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Legal Consequences Of The Construction Of A Wall In The Occcupied Palestinian Territory. Advisory Opinion OF 9 JULY 2004

PALESTINIAN GRASSROOTS ANTI APARTHEID CAMPAIGN. Another Step in the Bantustanization of the West Bank. The Case of Beit Jala: The Apartheid Wall in the Cremisan Valley. Disponível em: <http://www.stopthewall.org/another-step-bantustanizationwest-bank>. Acesso em 7 de julho de 2017.

SOCIETY OF ST. YVES, Catholic Center for Human Rights. The Last Nail in Bethlehem’s Coffin: The Annexation Wall in Cremisan. 2015. 90p.

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