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Os Municípios, o ISS e os crimes contra a ordem tributária

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8.O término do processo administrativo e o oferecimento da peça acusatória.

A questão é tormentosa, muito embora o Supremo Tribunal Federal (31) tenha firmado posição a respeito do tema, em sede de habeas corpus, no sentido de que o término do processo administrativo é condição de procedibilidade da ação penal, posto que os crimes definidos no art. 1º da Lei 8.137/90 são materiais, somente se consumando com o lançamento definitivo. Ou seja: antes de constituído definitivamente o crédito tributário não haveria justa causa para a ação penal.

O Superior Tribunal de Justiça, em julgado recentíssimo (32), por outro lado, contrariando decisão do Supremo Tribunal Federal, continua entendendo que não há necessidade em se aguardar a finalização do processo administrativo para a deflagração da actio penal.

Pode parecer ousadia, já que se trata da palavra da Corte Constitucional, mas não se pode concordar com este fundamento simplista para afastar o contribuinte sonegador da ação penal. A decisão do STF, infelizmente, é um convite à prática de crimes contra a ordem tributária.

Um convite sim. Todos sabemos que o processo administrativo é moroso e todos temos ciência, também, que os Julgadores não são pessoas investidas no cargo, como ocorre com os membros do Ministério Público e da Magistratura, o que permite inferir, ao menos em tese, a garantia de independência e imparcialidade nos pareceres do primeiro e nos julgamentos proferidos pelo judiciário.

O condicionamento da ação penal ao julgamento da esfera administrativa constitui circunstância apta a chancelar a impunidade penal pela ocorrência da prescrição da pretensão punitiva. É que considerada a tradicional demora dos julgamentos perante os Conselhos de Contribuintes (33), sem dúvida alguma, o término do processo administrativo coincidirá ao menos com a fluência do prazo da prescrição da pretensão punitiva em concreto, tendo-se por base a pena mínima prevista para os crimes capitulados no artigo 1º da Lei 8.137/90.

A decisão em comento enfraquece o Judiciário como Poder da República e sugere o fortalecimento do setor empresarial brasileiro afeiçoado às práticas defraudatórias, além de fortalecer, sobremaneira, o corpo dos julgadores administrativos, que já desfrutam do poder de estabelecer a coisa julgada administrativa para a administração pública, já que esta está impossibilitada de recorrer ao Judiciário quando o contribuinte obtém, no mérito, decisão favorável.

Importante assinalar que na Itália, a prejudicial tributária foi abolida ao tempo da reforma de 1982, através da Lei n. 516, denominada "MANETTE AGLI EVASORI"(34). Essencial frisar, neste tocante, que quando da vigência de tal prejudicial tributária, a prescrição em relação aos crimes contra a ordem tributária praticados naquele País, ficava suspensa até o término do processo administrativo (35).

Perceba-se que em nosso País está ocorrendo exatamente o inverso; ou seja, a prejudicial não era acatada pelo Supremo Tribunal Federal, que reconhecia a independência do Ministério Público assim como a autonomia das instâncias. Atualmente, no entanto, por maioria de votos, a Corte Constitucional modifica o seu posicionamento, cuja resultante toma por norte, inegavelmente, o enfraquecimento do Poder Judiciário, restando evidenciada a trivialização do bem jurídico da ordem tributária.

Enfatize-se que a Lei nº 8.137/90, em nenhum momento condicionou a ação penal ao esgotamento prévio da instância administrativa. Inexiste na lei, portanto, qualquer condição de procedibilidade ou questão prejudicial ou, ainda, qualquer elementar do tipo penal, quanto ao encerramento do procedimento administrativo para efeito no Processo Penal.

Anote-se, ademais, que mesmo sem a instauração de qualquer procedimento administrativo-fiscal, o processo penal pode ser deflagrado sobre fato descoberto por qualquer do povo, que sabe das condutas delituosas fraudatórias praticadas e quer denunciar o contribuinte-fraudador.

Esclareça-se, também, que no ISS, com exceção do recolhimento pelo regime fixo anual, o lançamento se dá por homologação – contribuinte antecipa o pagamento para o Fisco homologá-lo – o sujeito passivo, assim, tem a obrigação de efetuar corretamente o pagamento. Se possuir alguma dúvida quanto à interpretação da lei, portanto, deve pronunciar-se através de uma consulta. É muito cômodo agir erroneamente (com dolo) suprimindo e reduzindo tributo e ter a certeza de que sairá impune, já que para a deflagração da ação penal, deve-se aguardar o final do procedimento administrativo e até lá, com toda a certeza, o crime já fora alcançado pela prescrição.

Retornando ao Direito Comparado, conforme se escreveu acima, na Itália, mesmo na vigência da antiga prejudicial tributária, a prescrição em relação aos crimes de sonegação fiscal, ficava suspensa até o término do processo administrativo. Tal não ocorre no Brasil, o que nos faz concluir que, atualmente, ao menos em relação às condutas mais graves e descritas no art. 1º, da Lei n. 8.137/90, os delitos contra a ordem tributária já não podem ser punidos, se considerarmos todas as modalidades de prescrição existentes em nosso sistema penal.

Nesse sentido, há que se admitir que

as condutas descritas na Lei nº 8.137/90, assim, longe de constituírem meras sonegações fiscais, representam uma violação à normalidade da ordem tributária com reflexos em toda a coletividade, dada a natureza do interesse juridicamente tutelado. Assim, a prática de qualquer ação típica e ilícita contra a ordem tributária provoca um dano ou lesão, que se difunde por toda a sociedade e de difícil quantificação(36).

Não se pode esquecer, igualmente, do contido nas disposições do art. 93 e do art. 94, do Código de Processo Penal, in verbis:

"Art.93. Se o reconhecimento da existência da infração penal depender de decisão sobre questão diversa da prevista no artigo anterior, da competência do juízo cível, e se neste houver sido proposta ação para resolvê-la, o juiz criminal poderá, desde que essa questão seja de difícil solução e não verse sobre direito cuja prova a lei civil limite, suspender o curso do processo, após a inquirição das testemunhas e realização das outras provas de natureza urgente.

§1º O juiz marcará o prazo da suspensão, que poderá ser razoavelmente prorrogado, se a demora não for imputável à parte. Expirado o prazo, sem que o juiz cível tenha proferido decisão, o juiz criminal fará prosseguir o processo, retomando sua competência para resolver, de fato e de direito, toda a matéria da acusação ou da defesa.

§2º Do despacho que denegar a suspensão não caberá recurso.

§3º Suspenso o processo, e tratando-se de crime de ação pública, incumbirá ao Ministério Público intervir imediatamente na causa cível, para o fim de promover-lhe o rápido andamento".

Art.94. A suspensão do curso da ação penal, nos casos dos artigos anteriores, será decretada pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes".

Sobre a matéria, aliás, escreve Eduardo Reale Ferrari, nos seguintes termos:

"(...) pragmaticamente, parece-nos que a solução a ser conferida para tormentosa discussão já presente na nossa atual legislação penal e processual penal, bastando reconhecer-se a dúvida tributária como verdadeira questão prejudicial heterogênea do procedimento criminal-fiscal (...) a controvérsia, portanto, quanto à existência ou não do tributo, conduz à instauração de uma prejudicial ao mérito da ação penal, cabendo ao julgador, suspender o processo criminal, enquanto não decidida a questão tributária, nos termos do Art. 93, do Código de Processo Penal. Concomitante à suspensão condicional do processo criminal, razoável será a suspensão da prescrição procedimental, nos termos do art. 116 do Código Penal, não fazendo sentido possibilitar-se o andamento da prescrição penal quando presente uma prejudicial. A suspensão da prescrição, nesse aspecto, configura-se como ponto de equilíbrio e justiça à instauração da prejudicial". (37).

Esclareça-se, finalmente, que não obstante o fato da decisão do Supremo Tribunal Federal ter sido proferida em sede de habeas corpus, está havendo célere capilarização daquele entendimento sobre as instâncias inferiores da magistratura nacional, sendo que juízes de primeiro grau passaram a não receber denúncias oferecidas pelo Ministério Público lastreados na decisão da Corte Superior.

Deste modo, ainda que não estejamos sob o jugo da súmula vinculante, a vinculação já está se operando exatamente para privilégio dos sonegadores, a partir de uma decisão isolada do Supremo Tribunal Federal, não unânime (37).


9. A Crise da tutela penal do ISS.

No que toca à repressão à evasão do tributo, através de ação penal, especificamente em relação ao Imposto Sobre Serviços – ISS, pode-se dizer que tal prática se encontra em meio a sérias adversidades.

Uma delas é freqüentemente lembrada por Hugo De Brito Machado (38) e diz respeito ao conhecimento da matéria. O profissional atuante neste campo jurídico deve possuir conhecimentos em duas áreas específicas: direito penal e direito tributário. Nesse aspecto, considerando haver íntima relação entre as duas disciplinas mencionadas, revela-se insuficiente o amplo conhecimento em só uma delas, sob pena de não se conseguir enfrentar o tema com segurança.

A busca pela responsabilidade penal do contribuinte do ISS, por outro lado, nos Municípios brasileiros, ainda é muita tímida, seja em função de ideologias políticas diversas, que, às vezes, não manifestam interesse em deter o contribuinte sonegador, seja em relação à ausência de estrutura das administrações municipais em realizar a força tarefa de combate à sonegação fiscal, que exige ações conjuntas entre os Agentes Fazendários, Ministério Público e Procuradoria Geral dos Municípios.

Os municípios brasileiros têm tido um papel muito importante no desenvolvimento integrado dos locais, protagonizando várias mudanças estruturais na sociedade. Essas variações, entretanto, ainda se encontram em sua terna infância, considerando que por muito tempo prevalecera a tirania do coronelismo, consubstanciada na existência de políticos intoleráveis, que dominavam os municípios como se fossem de sua propriedade. Época de opressão, sem qualquer liberdade e progresso no âmbito municipal. Foi um período, enfim, em que o interesse local permanecera nas mãos do interesse individual, em face da vinculação dos Prefeitos ao Interventor.

Os prefeitos são pessoas mais ligadas diretamente aos munícipes, os quais, igualmente, têm ligação muito próxima com a Administração Pública Municipal. Assim, no que concerne ao primeiro ponto acima enfocado, e em se tratando de municipalidade, o problema surge justamente dessa maior proximidade entre o Administrador Público Municipal e o Cidadão-Contribuinte, cuja relação tem se mostrado resultante de verdadeiras trocas de favores políticos. Esses arranjos, por sua vez, que se estabelecem no seio dos administradores públicos, corporificam os anseios dos agentes públicos em não perderem a simpatia de seu eleitorado no momento do voto, tão sagrado para aqueles que exercem funções públicas eletivas.

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Aí está, portanto, a primeira barreira a ser enfrentada, a fim de se reprimir a evasão do ISS: a vontade política dos homens que estão à frente do Estado.

Em relação à estrutura, percebe-se que, diferentemente da União e dos Estados, os Municípios não tem base funcional suficiente para conter as fraudes fiscais, mormente, a título de responsabilidade penal. Os salários não são atrativos. Não há, igualmente, preparação adequada de pessoal. É raro existir nos municípios, a instituição de programas permanentes de combate à sonegação fiscal e à inadimplência, bem como de reaparelhamento da máquina fiscal e a respectiva valorização de todo o seu corpo técnico, que geralmente está composta por pessoas que demonstram resistência ao novo; ou seja, a procedimentos, a instrumentos e metodologias deferentes; agentes públicos, conformados, enfim, com as atividades habituais de seu ofício.

De outra parte, ao candidato que se submete a concurso público do gênero, não é exigido o diploma de bacharel em Direito, necessariamente, ou mesmo o conhecimento da legislação, o que significa dizer, que, muitas vezes, inicia a carreira, sem qualquer noção de direito penal. Geralmente, o profissional dessa área não tem contato com o Órgão Ministerial, desconhecendo, inclusive, as suas reais atividades.

No âmbito municipal, também não é corriqueira a prática na utilização de instrumentos para o cruzamento de dados com as fazendas públicas estaduais e federais, o que, da mesma forma, prejudica a função do Agente Fazendário Municipal, já que esses dados são necessários e imprescindíveis para a localização de indícios de sonegação fiscal propriamente dita.

O Ministério Público, em contrapartida, considerando a precariedade do sistema municipal e, considerando a amplitude dos delitos penais cometidos na esfera estadual, também acaba ficando inerte ao problema, enquanto os contribuintes do Imposto Sobre Serviços – ISS, passam os dias regozijando-se da impunidade que os cerca.

Mesmo entre os doutrinadores, que atentam para esta matéria em especial, ou seja, sobre os crimes contra a ordem tributária, o imposto municipal em análise, quase não é mencionado, trazendo os juristas do assunto, geralmente, hipóteses e exemplos a respeito dos impostos federais e estaduais, tão-somente. O ISS, na maioria das vezes, é relegado à última categoria, tendo sido tratado, por tributaristas e penalistas brasileiros, efetivamente, como o "patinho feio" do sistema tributário nacional, tanto que se tem uma escassez considerável de escritos a respeito do tema.

A jurisprudência dos Tribunais Superiores, também, pouco tem se manifestado em questões dessa natureza. Gratia argumentandi, mister salientar que o Superior Tribunal de Justiça (39), não obstante à míngua de julgados nesta matéria, fez, em data recente, a apreciação de um caso específico a respeito de crime contra a ordem tributária no que concerne ao Imposto Sobre Serviços – ISS.

Não obstante ao tratamento deficitário que a matéria vem merecendo em nível municipal, é conveniente ressaltar, que em Blumenau, após a implantação de várias medidas estruturais com a finalidade de se coibir a evasão fiscal do ISS e um esforço comum entre Procuradoria-Geral do Município, Fazenda Municipal, Fiscais de Tributos e Ministério Público Estadual, iniciou-se um circuito de tarefas conjuntas, as quais estão vindo efetivamente ao encontro da repressão dos crimes contra a ordem tributária, especificamente no que tange ao Imposto Sobre Serviços – ISS.

Tais atividades, além de elevar a importância e o respeito pelo ISS, fazem com que o contribuinte do município passe a respeitar com mais seriedade as suas obrigações tributárias, não esquecendo, igualmente, as melhorias que poderão advir a toda a sociedade local, com a recuperação do crédito tributário omitido ou suprimido, pois como enfatiza Márcia Aguiar Arend (40): "São os tributos que permitem a uniformidade do tecido social e a consolidação da civilização e da cidadania, cujo empreendimento e realização invejamos nos países ditos de primeiro mundo".

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Sobre a autora
Cleide Regina Furlani Pompermaier

Procuradora do Município de Blumenau; Especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal de Santa Catarina; Professora da Pós-Graduação da UNIDAVI em Rio do Sul, Santa Catarina, em nível de especialização, no curso de Planejamento Tributário, na disciplina de ISS; Professora de Direito Tributário do IBES SOCIESC – Instituto de Ensino Superior de Blumenau e FAE – Faculdade Franciscana em Blumenau, Santa Catarina, SC; membro do Conselho Municipal de Contribuintes do município; autora do livro O ISS nos Serviços Notariais e de Registros Públicos – Teoria e prática.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POMPERMAIER, Cleide Regina Furlani. Os Municípios, o ISS e os crimes contra a ordem tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 683, 19 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6744. Acesso em: 19 abr. 2024.

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