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Fragmentos de justiça nicomaqueia: como permanece vivo o pensamento aristotélico em decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

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17/07/2018 às 19:20
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2 Análise de decisões judiciais do TJRS

Realizada a pesquisa no repertório eletrônico de jurisprudência do Tribunal de Justiça gaúcho, verificou-se a existência de milhares de decisões que mencionavam algo relacionado a Aristóteles. A exiguidade do calendário para a realização da pesquisa não permitiu a análise de todas as decisões, mas mediante um recorte, foi possível extrair uma singela amostra.

Constata-se que na grande maioria dos acórdãos, a menção aos conceitos Aristotélicos é feita de passagem, sem maiores explicações ou contextualizações. É comum verificar a presença da repetição da mesma fundamentação, com a utilização de conceitos específicos, como a “justiça distributiva”, sem necessariamente incorrer na aplicação - em maior extensão - da própria filosofia aristotélica ou mesmo de sua refutação.

Isso gerou algumas situações incômodas, sobretudo porque ao utilizar o conceito aristotélico, esquecendo-se do pano de fundo filosófico, esbarra-se com a própria concepção de direito brasileiro, que tem em suas raízes o positivismo legalista (que remonta ao sistema jurídico de Pontes de Miranda) e hoje bebe num extremado subjetivismo, naquilo que é chamado de panprincipialismo (uma versão do realismo, que confere uma preponderância aos princípios jurídicos, num forte ativismo judicial).

Retomaremos essas questões. Passamos a analisar alguns casos, conforme seguem.

a) Em demanda que se discutiu a reparação por violação de direito autorais, por plágio em uma versão de uma música, a Quinta Câmara Cível[5] deu provimento a pedido de arbitramento de danos morais aviado em recurso de apelação, citando obra de Paulo de Tarso Vieira Sanseverino[6], a qual estabelece que o princípio da reparação integral e o modo de reparação constituem exigência da justiça comutativa:

PRINCÍPIO DA REPARAÇÃO INTEGRAL.

A reparação do dano injustamente sofrido causado constitui uma exigência de justiça comutativa, como já fora vislumbrado por Aristóteles na Ética a Nicômaco, devendo ser a mais completa possível, o que se chama modernamente, de princípio da reparação integral do dano. O seu exame será efetuado em duas grandes perspectivas, analisando-se, primeiramente, os modos de reparação do dano e seguindo-se com a sua configuração como princípio jurídico.

[...]

MODOS DE REPARAÇÃO

[...]

Com efeito constitui uma exigência natural de justiça comutativa restituir a vítima, o mais exatamente possível, ao estado em que se encontrava antes da ocorrência do ato ilícito (status quo ante), conforme já observara Aristóteles na Ética a Nicômaco.

Portanto, a doutrina aristotélica do justo particular corretivo foi apresentada como elemento da responsabilidade civil, na especificação da extensão da reparação, de modo a recompor a perda sofrida. A transposição do conceito apresenta-se sem qualquer prejuízo para a sua compreensão e coerência com o retratado pelo estagirita.

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b) Em recurso interposto de decisão que indeferiu antecipação de tutela[7], em ação anulatória de multa, a Vigésima Primeira Câmara não deu provimento ao Agravo de Instrumento. Num dos votos, reconheceu-se a proporcionalidade da medida de penalização derivada do artigo 87, IV, da Lei nº 8.666/93, a qual teve apoio argumentativo na ideia de justo como proporcional:

Na síntese perfeita do Estagirita, no Livro V da “Ética a Nicômaco”, “o justo é o proporcional, e o injusto é o que viola a proporção.”

Por isso, quando “um dos termos se torna grande demais e o outro muito pequeno, como efetivamente acontece na prática, pois o homem que age injustamente fica com uma parte muito grande daquilo que é bom, e o que é injustamente tratado fica com uma parte muito pequena.”

Já no “caso do mal, ocorre o inverso, pois o menor mal é considerado um bem em comparação com o mal maior, uma vez que o mal menor deve ser escolhido de preferência ao mal maior” (valho-me da tradução de Pietro Nassetti).

Este o princípio e sua aplicação na penalização. Havendo escolha, o bem, em suma, está no mal menor.

A doutrina do meio-termo aristotélico aparece, como argumento a justificar o que é o justo, porém ressente-se que a tese não tenha um maior desdobramento, sobretudo porque se trata de uma citação referente à justiça distributiva (referente a mediania na distribuição de distribuição de benefícios ou encargos) e de como este conceito enquadra-se no raciocínio da decisão.

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c) Uma decisão interessante da Nova Câmara Cível[8], envolveu o direito à indenização pretendido por produtores de fumo pela interrupção do fornecimento de energia elétrica. A fumicultura possui peculiaridades, pois quando o processo de secagem é forçado, o desabastecimento de energia elétrica acarreta grande perdas. Mas, como a instalação de um gerador pelos fumicultores não teria um custo elevador, a Câmara decidiu pela repartição dos riscos entre o fornecedor e o consumidor (produtor rural). Para tanto, uma das análises se deu pelas óticas da justiça corretiva e da justiça distributiva, como segue:

6.    A questão em tela não pode ser analisada exclusivamente do ponto de vista individual (justiça corretiva), já que ela necessariamente tem implicações sociais (justiça distributiva), pois o repasse dos custos dos danos do fumicultor individual para a concessionária de energia elétrica, num primeiro momento, acaba repercutindo sobre toda a sociedade, já que no regime capitalista todo e qualquer custo ou prejuízo transforma-se em preço ou tarifa. Consequentemente, cedo ou tarde, o valor das indenizações redundará em aumento da tarifa a ser paga por toda a sociedade.

Quando se qualificou como “interessante” a decisão, porque ela conjuga as duas espécies de justiça particular, num construto que certamente não fora pensado por Aristóteles.

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d) A concessão da gratuidade da justiça deve ser deferida a quem realmente dela necessitar, sendo uma maneira de realização da justiça distributiva, tendo o Centro de Estudos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, firmado Enunciado de nº 49, quanto ao critério da demonstração dessa necessidade.[9]

Como afirmado acima, na relação Estado – cidadão, o acesso à justiça gratuito é conferido aos necessitados, distribuindo-se esta benesse segundo uma determinada renda, no qual se presume a necessidade.

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e) O pré-tarifamento da pensão alimentícia - em caso de desemprego - seria uma forma de promover maior “justiça distributiva”.[10] Tal argumento constou na justificativa do parecer do Ministério Público, incorporado ao corpo do acórdão.

Houve um equívoco, pois se trata de um caso de aplicação da justiça corretiva, na medida em que a relação se dá entre particulares. Além disso, novamente, o conceito de “justiça distributiva” é invocado, sem que se decline as razões para a sua compreensão.

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f) Em decisão proferida pela Décima Segunda Câmara Cível[11], a regra processual referente a abandono de processo pela parte autoral foi interpretada segundo uma exigência de justiça, anulando a sentença de extinção do processo. Segue excerto do acórdão:

Juarez Freitas, em sua obra Grandes Linhas da Filosofia do Direito, 2ª edição, refere sobre justiça comutativa: “o direito de dar a cada um o seu direito”, enunciado por Ulpiano nas institutas (p. 24). Aristóteles introduziu “a noção de epieikeia ou eqüidade, que teria a função de corrigir a generalidade das leis quando excepcionalmente não contemplarem o caso individual nas suas minúcias” (p. 26)

Ao ver de Santo Agostinho “o que não é justo não é lei” (p. 30). “O Direito, por conseguinte, só pode ser admitido enquanto embricado na idéia de Justiça” (p. 30).

Santo Tomás de Aquino: justiça é “dar a cada um o que é seu, na conformidade com o bem-comum” e possui três aspectos: distributiva, comutativa e legal (p. 33)

Pois bem, as correntes instrumentalistas do processo atribuem ao processo a finalidade de realização do direito material (não apenas este, mas outros, como o político e o social), em que o mero formalismo recebe uma superação, por meio de uma interpretação criativa, onde a equidade, isto é, a correção da lei com vistas ao caso concreto, acaba tendo um amplo espaço para aplicação.

Indagar sobre a equidade, sobretudo a aristotélica, no sistema jurídico é realizar indagações mais complexas, que envolvem superabilidade de regras, fontes do direito etc. A doutrina Aristotélicas ou de outros filósofos não pode ser utilizada tão somente como argumento de autoridade.

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g) No mais, a citação de Aristóteles nas decisões analisadas não se resume à justiça, mas abrange uma variedade de temas, como separação de poderes[12], vontade e tempo[13], interesse público[14] etc.

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Depreende-se que a concepção de justiça aristotélica atua como um bom argumento moral, demonstrando-se que o positivismo adotado pelas cortes brasileiras muito longe está de ser meramente um exemplar da tradição metaética do construtivismo.

Veja-se que Aristóteles remonta a uma tradição metaética do realismo (FERREIRA NETO, 2015, p. 189) ou realismo tradicional (REALE, 2002, p. 117), no qual há a preeminência do objeto, isto é, se conhecem coisas. Os fatos são o ponto de partida, sobre os quais haverá um raciocínio ético.

“O projeto ético desenvolvido por ARISTÓTELES é, sabidamente, o melhor exemplo de um esquema teórico que visa a esclarecer os elementos essenciais da ação humana partindo de considerações que estariam fundadas em uma dimensão ontológica da realidade. Assim, para ARISTÓTELES, são centrais para a compreensão do que determina e direciona a ação humana os conceitos de fim (telos) e de bem (agathon) [...]” (FERREIRA NETO, 2015, p. 189)

Nas tradições metaéticas, há um pano de fundo acerca da separação entre direito e moral, em que há um problema de demarcação, seja de separação (positivismo), com uma independência radical; uma conexão forte, com uma submissão do direito à moral; e, uma conexão fraca, em que há uma espécie de direito natural mínimo.[15]

Por um lado, temos tradições não cognitivistas e cognitivistas, aquelas em que não há sentido de se falar em fatos morais ou verdades relevantes ao campo da ação humana e nestas, é possível reconhecer, pela racionalidade, de maneira objetiva, juízos de verdade referentes à ação humana. Aristóteles é um cognitivista e, como um defensor do direito natural isso acarreta implicações quando a sua doutrina é invocada na ordem prática, isto é, na dimensão da realidade humana em que são emitidas as decisões judiciais.

Por isso, quando afirmamos que se gera uma situação de constrangimento, é de que Aristóteles está numa tradição filosófica diversa da supostamente adotada no positivismo, isso sem contar algumas implicações filosóficas outras, como adotar (de Aristóteles) uma teoria da verdade como correspondência. Aqui paramos. Seguir adiante foge da proposta aqui delineada, por isso, passamos a analisar outro ponto, que envolve a teoria da decisão judicial.

Aristóteles é importante, mas a sua invocação deve ser sempre contextualizada. Isto não quer dizer que se advogada contra a filosofia aristotélica, pelo contrário, mostra que é necessário de que os operadores do Direito, sobretudo o Judiciário, atentem-se para isso, pois deixar de contextualizar, se levado ao extremo, correr-se-ia o risco de se legitimar inclusive a escravidão (!)[16].

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Outra questão importante, deveras, é contextualizar os conceitos aristotélicos e, por conseguinte, a sua compreensão de mundo, que nem sempre sobreviveriam a um constrangimento epistêmico proporcionado pelo ordenamento jurídico levado a sério.

A doutrina aristotélica não deve apenas servir como “justificativa” de uma decisão, pois a sua “autoridade” não basta. Temos um sistema jurídico que tem por base o princípio da legalidade (artigo 5, inciso II, da Constituição Federal) e no respeito ao dever de fundamentação das decisões judiciais, que está expressamente previsto no inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal, em que a argumentação deve ser realizada neste horizonte.

Sobre a decisão judicial, STRECK (2013, p. 322- 348) formula cinco princípios fundamentais para a adoção de uma hermenêutica adequada: preservação da autonomia do direito, controle hermenêutico da interpretação constitucional, efetivo respeito à integridade e à coerência do direito, dever fundamental de justificar as decisões ou de como motivação não é igual a justificação, e, direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada.

Nessa imbricação entre filosofia e direito, os argumentos com base em Aristóteles têm de ser articulados sistematicamente, revelando, sempre que possível, o pensamento conceitual que está por trás da enunciação, permitindo a controlabilidade das decisões.

Na argumentação jurídica levada a efeito para a obtenção de uma decisão judicial, que atenda aos reclamos de ser racionalmente articulada, coerente com o sistema jurídico (válida, portanto). Justificar não é o mesmo que fundamentar.

“No Estado Democrático de Direito, a pretensão jurídica moderna de garantir certeza nas relações, através de padrões normativos, a um só tempo, dotados de caráter coercitivo e intersubjetivamente estabelecidos, manifesta-se no exercício da jurisdição como a pretensão de que a um só tempo as decisões judiciais sejam coerentes com o Direito vigente, e adequadas aos casos submetidos à apreciação judicial.” (OLIVEIRA, 2016, p. 116)

Nas decisões mencionadas acima, nalgumas houve o bom uso do argumento, mas noutras restou um déficit argumentativo, especialmente pela perspectiva do usuário da prestação jurisdicional. Quando, por exemplo, o conceito de justiça distributiva é utilizado numa decisão sem qualquer pertinência com aquilo que Aristóteles propugnava, de justiça que se observava na distribuição de bens, honrarias, impostos etc pelo Estado, em razão do mérito do cidadão, acarreta-se um empobrecimento na qualidade da fundamentação, pois se invoca uma preciosa lição sem que os argumentos tenham qualquer correspondência com o caso.

Observa-se aquilo que RODRIGUEZ (2013) denunciou em sua obra sobre “Como decidem as cortes”, de que a invocação de autoridades e uma justiça opinativa, com um manancial de argumentos, não vinculados de maneira racional e unificada, caracterizam a argumentação jurídica praticada nos dias atuais. Não deixa de permear nisso um elemento ideológico (WARAT, 1994, p. 101) que deve ser levado em conta.

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Sobre o autor
Fabiano Tacachi Matte

Advogado. Mestre em Direitos Humanos pela UNIRITTER. Acadêmico da especialização em Filosofia – UNISINOS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTE, Fabiano Tacachi. Fragmentos de justiça nicomaqueia: como permanece vivo o pensamento aristotélico em decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5494, 17 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67646. Acesso em: 26 abr. 2024.

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