VII. O uso das reclamações perante o STF no caso da Lei 10.628/ 2001.
No caso da ADIN 2797, ajuizada pela CONAMP (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), que atacou a constitucionalidade do parágrafo 2º do art. 84 do CPP, introduzido pela Lei 10.628/2001, por razões que não cabem na singeleza do trabalho, o Presidente em exercício do STF, Min. Ilmar Galvão, este resolveu negar o pleito liminar, não sendo apresentado qualquer óbice pelo Relator ao exercício do controle difuso de constitucionalidade no bojo de sua sustentação, entendendo ele não haver relevância suficiente na assertiva de que aquela iria tumultuar a tramitação das ações ora em tramitação. Muito menos foi conferido juízo positivo cautelar de validade da norma atacada, o que foi expressamente deixado para o crivo do Plenário.
Após tal decisão, a Corte, em um primeiro momento, se dividiu, tendo por leading case favorável à tese de que, ainda que sem a liminar referida, não poderia ser contrariada a presunção de constitucionalidade da lei, a Reclamação 2381, Relatada pelo Min. Ayres Britto, nos seguintes termos: "até o julgamento final da ação direta, portanto, a lei sob referência integra o ordenamento jurídico pátrio, uma vez que o pedido de medida cautelar visando à suspensão da norma impugnada foi denegado. (...) Ante o exposto, já ressalvado que a lei em causa prossegue vigorando, e dela se depreende que é do Supremo Tribunal Federal a competência para processar e julgar ação de improbidade ajuizada em face de Senador da República, defiro a medida liminar postulada para sobrestar o andamento do procedimento objeto da presente reclamação."
Outros Ministros seguiram a mesma orientação, como Gilmar Mendes, na Reclamação 2819, havendo outros que, embora a adotassem, promoveram algumas variações tópicas, como o Min. Nélson Jobim, na Rcl 2538, que ressalvou que o parâmetro judicial somente é válido no caso de "competência especial por prerrogativa de função só se estende, após cassada a investidura determinante, se a imputação for relativa a atos administrativos do agente"; e do Ministros Cezar Peluso na Rcl 2645, que não ordenou a avocação dos autos investigatórios, limitando-se a ordenar a suspensão processual.
O Min. Celso de Mello, na Rcl 2657, muito embora assumisse a tese acima esboçada, em sua linha mais geral, valendo-se do que chamou de "princípio do colegiado", antecipou seu voto na Adin para, desde já, dizer-se prócere da inconstitucionalidade da Lei 10.628/02, em momento de incongruência e perplexidade para o mundo jurídico, sendo seguido pelo Min. Marco Aurélio que, na ocasião do julgamento do Habeas Corpus 85675, também antecipou o voto pela inconstitucionalidade do diploma legal, muito embora acabasse por ordenar a suspensão de investigação criminal contra o ex-governador do Rio de Janeiro, Sr. Garotinho, que estava sendo empreendida pelo TJRJ.
De outro lado, capitaneando os dissidentes, minoria na Corte, o Min. Carlos Velloso, no leading case oposto, Rcl 2702, negou seguimento à Reclamação aduzindo que "não tenho como ocorrente, no caso, os pressupostos constitucionais da reclamação: usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal ou desrespeito a sua decisão. É que a decisão do Ministro Galvão simplesmente indeferiu a medida cautelar. Não foi declarada, com tal decisão, a constitucionalidade da lei. Indeferida a cautelar, a lei tem vigência, é certo. Todavia, o fato de órgãos do judiciário deixarem de aplicá-la, sobre o fundamento de que é ela inconstitucional, não significa que estaria sendo descumprida a decisão do Supremo Tribunal Federal. O contrário, vale dizer, tivesse o Supremo Tribunal Federal deferido a cautelar, para o fim de suspender a eficácia da lei, e se fosse ela aplicada por órgão do Judiciário, aí, sim, estaria sendo descumprida a decisão do Supremo Tribunal, tendo em vista o seu efeito vinculante."
Estes argumentos geraram mudança de opinião de alguns Ministros, como Marco Aurélio, que na Rcl 2658 decidiu também por negar-lhe seguimento, marcando, nitidamente, a distinção entre o indeferimento da medida liminar em Adin e a declaração de constitucionalidade da lei atacada pela mesma Adin, dizendo que tais argumentos não são idênticos. Também a Min. Ellen Gracie, modificando sua posição anterior, também acabou por negar seguimento ao remédio constitucional na Rcl 3061.
O Min. Sepúlveda Pertence também negou o trânsito de tais medidas, ao fundamento de boa-fé processual, asserindo que estas somente deveriam ter cabimento quando as decisões que declararam incidentemente a inconstitucionalidade ou negaram vigência à alteração normativa, estivessem sendo atacadas por recursos. Alertou, textualmente, na Rcl 2748: "sequer há notícia nos autos de que tenha manifestado [o reclamante] recurso ao Tribunal paulista. A reclamação não substitui recursos previstos no Código de Processo Civil, nem se pode presumir que – se interposto o agravo da decisão reclamada – o juízo insistirá na orientação adotada."
O fato mais espantoso deu-se com a mudança do pensamento do Relator do leading case da corrente oposta, Min. Ayres Britto quando, na Rcl 2725, negando o que já houvera dito, ressalvou que "o Supremo Tribunal Federal, ao examinar o pedido de medida liminar na ADI 2.797, deliberou por indeferi-la. E da exegese do § 1º do art. 11 da Lei 9.868/99 infere-se que apenas as decisões concessivas das medidas acautelatórias formuladas nas ações diretas de inconstitucionalidade é que se dotam de efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração federal, estadual, distrital e municipal."
Como se vê, houve opiniões para todos os gostos e medidas. A situação somente veio a se pacificar, refletindo a posição majoritária do plenário da Corte quando do julgamento do Agravo Regimental na Reclamação 2381, vencedora a primeira tese, estando o julgado assim ementado: "enquanto não sobrevier o julgamento de mérito da ADI 2.797, é desta colenda Corte, nos termos do artigo 84, § 2º, do Código de Processo Penal (redação dada pela Lei nº 10.628/2002), a competência para processar e julgar ação de improbidade administrativa a ser ajuizada em face de Senador da República."
Não obstante, há que se ressalvar que a atual posição do Supremo impõe mudanças graves e sérias, não só à autoridade de seus julgamentos prévios, mas também às lições, consolidadas em mais de dois séculos da existência do Tribunal Constitucional.
A diretiva viola, frontalmente, a conclusão adotada no Agravo Regimental da Rcl 2810 que afirmou em sua súmula: "o indeferimento de liminar em ação direta de inconstitucionalidade, pouco importando o fundamento, não dá margem à apresentação de reclamação" tendo em vista que a Adin trabalha no plano interpretativo e a Rcl, no dos desvios da aplicação, voltada para regular uma relação processual inter partes.
Da mesma maneira, há que se destacar o teor do julgado no RE 22271, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, onde se afirmou que "medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade: indeferida – ao contrário do que sucede na hipótese de concessão (cf. RE 168.277 (QO), Galvão, 4.2.98) – não se suspende, em princípio, o julgamento dos processos em que incidentemente se haja de decidir a mesma questão de inconstitucionalidade."
Da mesma maneira, na Questão de Ordem levantada na Rcl 2.063, Relatora Min. Ellen Gracie, foi assentado que "o pedido, nos termos em que formulado, pretendia atribuir efeito vinculante à decisão que indefere medida liminar em ação direta de inconstitucionalidade, efeito esse que ela não tem."
VIII. Conclusão.
As posições instáveis, adotadas por alguns integrantes do STF, violando premissas consolidadas de Teoria Geral do Direito Constitucional, com enfoque no Controle de Constitucionalidade das Leis, geraram muito mais insegurança jurídica do que a estabilidade que os próprios Ministros alegaram defender com a avocação de uma série de ações e inquéritos envolvendo autoridades públicas investigadas ou acionados por atos de improbidade.
Ademais, criou a corte perigoso precedente, que modifica inteiramente a informação doutrinária sobre a qual repousa o controle de constitucionalidade, dando a entender que a manifestação negativa acerca de liminar em Adin imporia a presunção, já agora indesconstituível, de conformidade constitucional, o demonstra não apenas uma violação de lógica jurídica mas mesma da lógica formal, na medida em que o nada, o vazio, estaria a gerar conseqüências, rompendo com o nexo imputacional encarecido pela tradicional escola kantiana.
Aplicável a tese a tributos, por exemplo, basta que se ajuíze uma ADC ou Adin, com reclamo de liminar, para que, não sendo esta deferida, tal conseqüência seja mais gravosa do que a própria análise positiva da matéria, visto que os contribuintes seriam obrigados ao pagamento da exação, sem que lhes fosse permitido o legítimo acesso ao judiciário para o questionamento da constitucionalidade do tema, em ofensa a garantia individual insculpida na Carta Maior.
Ademais, tal pensamento dá ensejo à deturpação do uso de tais ações que, ao invés de buscarem a defesa do Estado de Direito, passariam a representar, em boa parte, um "ganho de tempo" para a arrecadação fiscal, ou mesmo um estímulo à adoção de atos ímprobos, na medida em que a tramitação das ações perante o STF é muito mais morosa do que em outras instâncias, e poderia mesmo ensejar a prescrição das ações de repetição de indébito ou de reparação civil, respectivamente. Veja-se, à guisa de exemplo, o que ocorre com a Adin 2797 que, após mais de três anos de sua propositura, somente conseguiu, até hoje, colher a manifestação de seu Relator (noticiada no Informativo 362, 20 a 24 de setembro de 2004).
Com isto, concluímos o trabalho ressalvando que: a) inexiste qualquer decisão com efeito erga omnes do STF obstando o andamento de Ações Civis Públicas ou Inquérito Civis, sendo livres os magistrados de 1º e 2º graus de formarem o livre convencimento a respeito da constitucionalidade da Lei 10.628/2002; b) apenas as ações que foram impugnadas por meio de Reclamação, e que tiveram Medida Cautelar deferida em seu bojo, é que devem permanecer paralisadas, cabendo aplicação plena da lei em comento, visto ser a Reclamação processo subjetivo, que apenas vale inter partes; c) lamentar que a matéria, porque afeta à vida de políticos, possa ter levado a uma interpretação instável pelos membros da Corte, propiciando que a maioria de seus membros violentassem tão gravemente uma posição tranqüila da jurisprudência, em flagrante caso de casuísmo judiciário.
Notas
1 Curso de Direito Constitucional Positivo, 20ª ed., Malheiros, p. 51. Grifos do original.
2 Entendemos que o controle de constitucionalidade é inerente à função jurisdicional e que, assim como cabe ao juiz aplicar a lei ao caso concreto, ainda quando ausente a referência a dispositivo legal pela parte, ou quando esta indicação é equivocada, também é prerrogativa daquele selecionar os textos que entenda válidos e aptos a serem incluídos em seu silogismo sentencial, não estando obrigado a manipular elementos impertinentes ao sistema do Direito Positivo, quer por vício de forma ou conteúdo. De idêntica maneira, aponta Ronaldo Polletti que "o juiz singular, ao sentenciar, aplica a um caso concreto o comando abstrato contido na norma. Para isso, ele precisa escolher a norma, bem como, interpretá-la. Quando ele deixa de aplicar uma lei, por entendê-la contrária à Constituição, estará, pelo seu juízo, aplicando esta última e declarando a primeira inconstitucional. Não aplica a lei, formalmente válida, pois, contrária à Lei Maior, ela não é lei. A fundamentação de sua decisão, e ela própria, consubstanciam uma declaração de inconstitucionalidade." Controle de constitucionalidade das leis, 2ª ed., Forense, 1995, p. 198.
3 O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, 2ª ed., Forense, p. 118.
4O texto e a construção dos sentidos, Ingedore Villaça Koch, Ed. Contexto, 2001, p.25.
5Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, Eros R. Grau, 2ª ed., Ed. Malheiros, 2003, p. 23.
6 A estrutura lógica do direito, 2ª ed., Renovar, 2003, p. 71.
7 Sobre la función, los medios y los límites de la interpretación de la Constitución, Comares, 2001, p. 13.
8 Op. cit., p. 74.
9 Polletti, op. cit., p. 198: "Inexiste diferença ontológica entre declaração de inconstitucionalidade e sentença, onde não se aplicou lei formalmente válida por entendê-la inconstitucional seu prolator. A diferença é de eficácia, quanto aos efeitos, daquela decisão dos tribunais e daqueloutra pelos juízes singulares ou pelo Supremo Tribunal. A função da Suprema Corte é igual a dos tribunais e juízes, apenas o Supremo dá a última palavra."
10 Como exemplo de regras que podem não ser inconstitucionais em sentido amplo, mas apenas em determinadas aplicações particulares, temos o exemplo do art. 1º da Lei 9.494/97, que proibiu a concessão de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, caso esgotem o objeto da lide, cuja conformidade com a Carta Magna foi atestada, liminarmente, na ADC 4, acórdão publicado no DJ 21.05.99. Não obstante, mesmo após esta decisão, com eficácia vinculante, segundo consta da ementa do julgado, o STJ, por mais de uma vez, desconsiderou a proibição daquela corte, confirmando decisões de primeiro e segundo graus que: (i) deferiram tutela antecipada contra a União por considerar "líquido e certo o direito dos hospitais ao percebimento dos valores de repasse dos montantes de conversão em URVs, fixada pelo Banco Central" (Resp 441466/RS, DJ 09.06.2003, p. 179, Rel. Luiz Fux); (ii) que ordenou não fosse sustado tratamento médico "caracterizada a necessidade premente da continuidade de tratamento" de saúde (Resp 396815/RS, DJ 15.04.2002, p. 184, Rel. Garcia Vieira); (iii) para que "candidato, aprovado em concurso público, freqüente curso de formação" (Resp 505022/MG, DJ 23.08.2004, p. 264, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca); (iv) quando ordenada a reinclusão de "parcela remuneratória ilegalmente suprimida" (Resp 447192/RS, DJ 4.11.2002, p. 254, Rel. Félix Fischer); (v) nas "ações previdenciárias que visem benefício" rural (Resp 200686/PR, DJ 17.04.2000, p. 76, Rel. Gilson Dipp).
11 Eficácia da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior. In Problemas de processo judicial tributário, 5º v., Dialética, 2002, p. 205.
12 Controle Direto de Inconstitucionalidade e repetição do indébito tributário, Rev. Dialética de Direito Tributário, n. 86, 2002, p. 29/30.
13 Controle Direto de Inconstitucionalidade e repetição do indébito tributário, Rev. Dialética de Direito Tributário, n. 86, 2002, p. 29/30.
14 RTJ v. 134-03, p. 1033.
15 A reclamação no processo civil brasileiro, Revista Forense, v. 99, nº 366, p. 14.
16 A reclamação para a garantia da autoridade das decisões dos tribunais, Revista Consulex, 15 de junho de 2002.
17Apud José da Silva Pacheco, A "reclamação" no STF e no STJ de acordo com a nova Constituição, RT 646, p. 20.
18 Reclamação 389,
19 O Min. Amaral Santos, RTJ 56/546, estabeleceu como requisitos da reclamação: "existência de uma relação processual em curso" e "um ato que se ponha contra a competência do Supremo Tribunal ou que contrarie decisão deste proferida nessa relação processual", aos quais deve ser juntada a ausência de trânsito em julgado da decisão cujo descumprimento se alega, como se evidencia do Agravo Regimental na Reclamação 1.901/SP (atual súmula 734).