I. Apresentação.
O presente trabalho pretende apreciar, de forma perfunctória, a teoria geral de inconstitucionalidade das leis, assim como a dupla função da reclamação nesta mesma seara, evidenciando doutrina e jurisprudência da Corte Constitucional.
Este primeiro enfoque abarcará tão apenas os aspectos relevantes para a construção da segunda parte, que enfocará a reclamação no âmbito das ações de controle concentrado e, mais especificamente, àquelas manejadas em virtude da ADIN 2797, proposta pela CONAMP (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), contra a inclusão dos parágrafos 1º e 2º no art. 84 do CPP pela Lei 10.628/02, que conferiu natureza criminal às ações de improbidade administrativa.
Por fim, se abordará, de maneira crítica, as implicações que tais mudanças podem trazer no quadro geral de controle de constitucionalidade.
II. Teoria Geral do Controle de Constitucionalidade. Considerações.
Todo sistema constitucional moderno baseia-se na organização normativa estratificada, elaborada pela teoria kelseniana, como imperativo estrutural de qualquer ordenamento jurídico. Em seu âmago está a adoção do princípio da supremacia constitucional, através do qual estabelece-se uma hierarquia de normas, com o fito de se permitir a avaliação de validade daquelas que se põem abaixo daquela tida por Fundamental, provendo-se, para tanto, um juízo de compatibilidade entre gênero e espécie.
Esta avaliação pode ser feita ou por órgão criado especificamente para tanto (idéia que ganhou corpo graças ao jusfilósofo acima mencionado, com base em cujo ideário foi instalado o Tribunal Constitucional da Áustria) ou ser empreendida no bojo da atividade jurisdicional, quer com exclusividade, pela mais alta Corte Estatal – em controle concentrado –, quer por meio do rito da judicial review norte-americana, que reconhece a todo membro do Judiciário a possibilidade de constituição da inconstitucionalidade, com eficácia limitada aos contendores particulares.
Nosso país adotou ambas as alternativas, que convivem sistêmicamente. José Afonso da Silva esboça, com propriedade, as múltiplas formas pelas quais estes lexemas podem ser inferidos:
"(...) à vista da Constituição vigente, temos a inconstitucionalidade por ação ou por omissão, e o controle de constitucionalidade é o jurisdicional, combinando os critérios difuso e concentrado, este de competência do Supremo Tribunal Federal. Portanto, temos o exercício do controle por via de exceção e por ação direta de inconstitucionalidade e ainda a referida ação declaratória de constitucionalidade. De acordo com o controle por exceção, qualquer interessado poderá suscitar a questão de inconstitucionalidade, em qualquer processo, seja de que natureza for, qualquer que seja o juízo." [1]
O que importa para o presente trabalho é o controle por ação direta de inconstitucionalidade e o controle difuso, tão somente. Estas modalidades, embora distintas, convivem em relativa harmonia, visto que possuem âmbitos de aplicação distintos. Para que isto possa ocorrer, são estipuladas duas regras salientes de calibração, quais sejam: (i) o controle concentrado tem esfera de legitimados restrita e vale contra todos – eficácia erga omnes –, vinculando uma dada conclusão interpretativa que se possa extrair de um texto, abstraído de qualquer aplicação factual, impondo tal resultado cognitivo por meio de norma geral e abstrata (cuja composição mais tarde se verá), que submete à obediência todo e qualquer juiz ou Tribunal do país, em efeito compatível com o stare decisis norte-americano; enquanto isto, o controle difuso (ii), instaurado pela parte ou pelo próprio magistrado, ex officio [2], julgando a aplicação da lei a casos concretos, faz com que o âmbito eficacial do decisum restrinja-se às partes, em pertinência a uma dada relação de direito material e processual. Tal prerrogativa, não obstante, deve ser manejada com parcimônia, cabendo ao juiz dela lançar mão apenas na hipótese de tal questão ser essencial para o desate da lide visto que, como pondera Lúcio Bittencourt, "o juiz deve abster-se de se manifestar sobre a inconstitucionalidade, toda vez que, sem isso, possa julgar a causa e restaurar o direito violado." [3]
Das duas sub-conclusões acima indicadas infere-se que esta teoria está profundamente assentada na necessidade diuturna da interpretação, como instância necessária de descobrimento dos significados propostos pelo Direito Positivo. A incidência, que constrói uma ponte entre o mundo ideal-normativo e o mundo-do-ser, não se dá por operação jurídica automática e infalível, carecendo, sempre, da atividade cognoscente de um sujeito que, para fazê-lo, deve dominar, previamente, o sentido do extrato textual que lhe é submetido. Por isto, estritamente sob a perspectiva lingüística, temos que não existem ações ou juízos exclusivamente declaratórios, visto que, para que estes sejam introduzidos na esfera da realidade jurídica, devem ser precedidos de ato criador: a razão.
O tema é importante, e para que dele tratemos, é adequado inaugurar novo tópico.
III. Texto e norma
Sob a ótica lingüística através da qual partimos agora para analisar o tema, o texto comporia a instância empírica da experiência jurídica, densificado, geralmente, num substrato físico, enquanto que a norma, por sua vez, seria formada por um comando prescritivo constituído por hipótese e conseqüência. Esta não é algo dado, mas construído, tomando por base os primeiros elementos. Tal qual na lingüística, onde o sentido não está no texto, mas se constrói a partir dele, no curso de uma interação [4], a norma é o resultado da interpretação dos textos. A interpretação é, portanto, atividade que se presta a transformar textos – disposições, preceitos, enunciados – em normas. [5] Ou, ainda, atribuir sentido ou significado a um texto normativo.
Não por outra razão salienta Arthur José Faveret Cavalcanti que "as normas são juízos, ou seja, entidades que só têm existência no interior de nossas mentes. Nas leis não estão normas, mas as palavras que formam as proposições mediante as quais as normas são expressas. Os textos de lei são, pois, os símbolos que exprimem as normas, mas não são as próprias normas. Interpretar nada mais é do que captar as normas a partir desses símbolos. Portanto, mesmo as leis claras precisam ser interpretadas. Aliás, para saber se uma lei é clara é preciso já tê-la interpretado. A clareza não é senão a facilidade de interpretação." [6]
A racionalidade do Direito, assim entendida, não comporta apenas uma operação unívoca. Para que se possa aplicar uma regra ou princípio jurídico, faz-se necessário um desdobramento cognitivo que, não obstante possa parecer até mesmo automático no dia-a-dia dos seus operadores, pode ser dividido didaticamente em duas fases: em primeiro lugar, tenderá o sujeito a aferir as interpretações possíveis dos objetos lingüísticos que lhe são fornecidos, de maneira abstrata, obedecendo a primados estruturais e a vetores axiológicos valorizados no sistema, razão pela qual sempre será possível distinguir entre interpretações possíveis e aquelas que não são admissíveis ante estes mesmos critérios. É o que Requena López chama de "condicionantes" de toda atividade de apreensão de sentido [7]. Num segundo momento, comparar-se-á o produto de tais indagações com a interpretação da realidade que nos é fornecida por meio de provas (documentos, testemunhos, perícias etc.) que se contém no processo – judicial ou administrativo – verificando-se uma manobra lógica de inclusão ou exclusão, tal qual se dá na teoria matemática dos conjuntos.
A estas duas fases, complementares, indica Faveret as alcunhas de interpretação e aplicação, que se distinguiriam da seguinte maneira: "a interpretação trata da relação entre a norma e as palavras que a expressam, e o seu objetivo é o de identificar o conteúdo da norma. A aplicação trata, porém, da relação entre a norma e o mundo exterior a ela, sendo o seu objetivo determinar aquilo que se subsume nos conceitos que formam a norma." [8]
Pelo exposto, e aplicando a visão da teoria da interpretação aqui sustentada à teoria do controle de constitucionalidade em nosso país, temos que na ação direta o Supremo Tribunal Federal se limita a aferir as condições prévias à aplicação da norma aos casos concretos, burilando e lapidando, por meio da argumentação jurídica, a riqueza sintática, semântica e pragmática dos termos legais, aferindo sua compatibilidade com as instâncias hierarquicamente superiores, abstraindo-se de qualquer incidência específica. Esta fase de cognição (termo entendido como algo mais amplo que interpretação e aplicação, isoladamente tratados), como já se viu, não é exclusiva daquela Corte, mas antecedente lógico de qualquer processo de apreensão.
Os demais magistrados empreendam o mesmo labor, que é inerente ao desempenho da jurisdição, e podem chegar, ainda nesta primeira fase, a deliberar sobre a inconstitucionalidade da norma. [9] Não obstante, tal incompatibilidade pode somente exsurgir em instante ulterior, quando da sua aplicação a um dado caso concreto [10], sendo este segundo desdobramento exclusivo dos aplicadores em geral, o que confirma a importância de se delinearem as duas instâncias distintas do racionalismo judicial.
Assim postas as coisas, impõe-se dizer que, enquanto Tribunal de Controle da Constitucionalidade das leis, o STF limita-se à interpretação do direito posto. Aos demais magistrados toca desenvolver atividade mais extensa, visto que além do passo anterior também cabem-lhes aplicar tais dispositivos a casos concretos, não sendo esta ulterior atribuição redutível à anterior.
IV. Âmbitos de eficácia das declarações de inconstitucionalidade.
Prosseguindo na dilucidação dos aspectos mais relevantes do tema há que se apontar que, dada a dualidade dos planos (da interpretação e da aplicação) em que se pode empreender a discussão jurídica da validade normativa no Estado Brasileiro, também a eficácia das decisões no sistema misto se faz presente, já que o Acórdão da Suprema Corte, no desempenho de argüição de inconstitucionalidade por via direta, não tem o condão de desconstituir as operações de incidência previamente executadas com base na porção textual que fora expungida do sistema jurídico, como resultado do julgamento da primeira ação. Os casos concretos, por isso mesmo, somente poderão ser atacados por outros meios, igualmente específicos e aptos a tal desconfirmação. A respeito, vejam-se as palavras de Leonardo Greco:
"parece-me claro que a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade em controle concentrado de normas pelo Supremo Tribunal Federal não deve ter nenhuma influência sobre anteriores sentenças transitadas em julgado que tenham fundamento em entendimento contrário ao do STF sobre a questão constitucional.
A segurança jurídica, como direito fundamental, é limite que não permite a anulação do julgado com fundamento na decisão do STF. O único instrumento processual cabível para essa anulação, quanto aos efeitos já produzidos pela sentença transitada em julgado, é a ação rescisória, se ainda subsistir o prazo para a sua propositura." [11]
Da mesma forma expõem Eurico Diniz De Santi e Paulo Cesar Conrado, com as seguintes palavras:
"Por objetivar apenas a análise de direito, seu procedimento [do controle abstrato], diferentemente das ações individuais, (...) vem marcado por regras que ignoram a análise factual: i) os legitimados ativos nada têm a ver com os direitos que pudessem ser gerados pela lei; ii) a competência é exclusiva do STF que exerce, nesta ação, a função de guardião da Constituição ex vi do art. 102, caput da CF/88; iii) na inicial não se exige atribuição de valor à causa, indicação de provas, requerimento de citação nem identificação do réu; iv) não há defesa.
Não constitui direitos subjetivos, só produz o efeito jurídico de enunciar a inconstitucionalidade de determinada lei ou de parte dela com efeitos, em regra, ex tunc.
Interfere nos processos de positivação presentes (todos os processos administrativos ou judiciais em curso, ou seja, não atingidos pela coisa julgada) e futuros (não iniciados), servindo, em relação ao passado, apenas de fundamento jurídico para processos administrativos ou judiciais desde que ainda não consolidados pela decadência e pela prescrição." [12]
O STF, na Rcl 389-2/PR, também destacou tal distinção no voto do Relator, Min. Marco Aurélio, cujo trecho segue transcrito:
"O que deve ser tomado em linha de conta, como diretriz da questão, é que a ação direta de inconstitucionalidade, mediante a qual o controle concentrado é realizado, desenvolve-se num processo objetivo, sem partes, com vistas à proteção da ordem jurídica, no qual não há litígio que diga respeito a direitos individuais. Quando do julgamento da Rep. nº 1.016-SP, o Sr. Ministro Moreira Alves registrou que a representação de inconstitucionalidade, tem ‘caráter excepcional com acentuada feição política pelo fato de visar ao julgamento, não de uma relação jurídica concreta, mas da validade da lei em tese.’ E acrescentou S. Exa. Que não é ela ‘uma simples ação declaratória de nulidade, como qualquer outra, mas, ao contrário, um instrumento especialíssimo de defesa da ordem jurídica vigente estruturada com base no respeito aos princípios constitucionais vigentes’ (RTJ 95/993,999). (...) É que a decisão proferida no controle concentrado de constitucionalidade tem a natureza de norma, de norma em sentido negativo, porque ela afasta da ordem jurídica a norma incompatível com o ato normativo inicial. Destarte, a decisão ou ato praticado com base em norma inválida, porque assim declarada, em tese, pelo Supremo Tribunal Federal, também será inválido, mas a declaração dessa invalidez deverá ser buscada mediante a utilização das ações que integram o que Capelletti denomina de jurisdição constitucional das liberdades (‘La giurisdizione Constituzionale delle Libertà, Milano, 1955) – os remédios ou garantias constitucionais e que são, na Constituição vigente, o habeas corpus, o mandado de segurança individual e coletivo, o habeas data, o mandado de injunção e a ação popular – e as ações do processo ordinário." [13]
V. Conclusão parcial.
De todo o exposto até aqui, podemos sumariar as posições colhidas, estabelecendo critérios gerais e específicos pelos quais abordamos a matéria. Os primeiros seriam condensados em quatro, assim explicitados:
1. Para se aferir a validade das normas há que se conceber uma estrutura hierárquica com a qual o intérprete as organiza no sistema positivo de qualquer Estado.
2. Dentro deste contexto, a Constituição Federal é a norma-ápice, fundamento de validade de todos os demais textos pertinentes ao referido sistema.
3.Todas as normas gozam de presunção de constitucionalidade até que sejam extirpadas do ordenamento pela ação judicial, em exercício de poder sancionador.
4. A interpretação e a aplicação do Direito têm importante papel no controle constitucional, estipulando duas instâncias diferentes de aferição de validade normativa.
A respeito da distinção entre estas instâncias, extraímos os seguintes critérios específicos:
(i) o controle concentrado ou abstrato pode ser exclusivamente suscitado por aqueles legitimados pela Carta Política, enquanto que o difuso ou concreto pode sê-lo por qualquer parte, em demanda em curso, ou mesmo ex officio pelo magistrado.
(ii) no controle concentrado, o Tribunal Supremo não analisará fatos concretos, mas apenas a compatibilidade inerente aos sentidos textuais da lei impugnada, assim como o procedimento legislativo de sua formação, com os imperativos sistêmicos contidos no diploma constitucional. Neste caso, o pedido da ação direta implicará na constituição, em linguagem competente, da inconstitucionalidade da lei. Não haverá efeito condenatório direto deste julgamento.
(iii) o julgamento concentrado não implicará na desconstituição das decisões proferidas no controle inter partes, que deverão ser mantidas, ainda mais se já não houver possibilidade de manejar-se rescisória, por haver decaído o prazo para tanto.
(iv) no difuso, a invalidade será incidental, não fazendo coisa julgada, e limitando seus efeitos aos contendores da ação.
(v) em ambas as modalidades, estão em jogo importantes garantias fundamentais a balizar e influenciar nas decisões judiciais, em conflito principiológico.
VI. A reclamação – natureza jurídica, fundamentos de sua existência, rito e conseqüências processuais.
O primeiro tópico desta seção poderia levar um livro inteiro para ser esmiuçado, visto não se encontrar nenhuma unanimidade, quer na doutrina, quer na jurisprudência, a seu respeito.
Na reclamação 336, fixou o Min. Carlos Velloso um panorama a respeito de tal dissidência, manifestando que:
"a reclamação, qualquer que seja a qualificação que se lhe dê – ação (Pontes de Miranda, ‘Comentários ao Código de Processo Civil’, tomo V,/384, Forense), recurso ou sucedâneo recursal (Moacyr Amaral Santos, RTJ 56/546-548; Alcides de Mendonça Lima, ‘O Poder Judiciário e a Nova Constituição’, p. 80, 1989, Aide), remédio incomum (Orosimbo Nonato, apud Cordeiro de Mello, ‘O processo no Supremo Tribunal Federal’, vol. 1/280), incidente processual (Moniz de Aragão, ‘A correição parcial’, p. 118, 1969), medida de direito processual constitucional (José Frederico Marques, ‘Manual de Direito Processual Civil’, vol. 3°, 2ª parte, p. 199, item n. 653, 9ª ed., 1987, Saraiva) ou medida processual de caráter excepcional (Min. Djaci Falcão, RTJ 112/518-522) – configura, modernamente, instrumento de extração constitucional, inobstante a origem pretoriana de sua criação (RTJ 112/504), destinado a viabilizar, na concretização de sua dupla função de ordem político-jurídica, a preservação da competência e a garantia da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, ‘l’) e do Superior Tribunal de Justiça (CF, art. 105, I, ‘f’)." [14]
Cândido Rangel Dinamarco e Ada Pelegrini Grinover, em trabalhos relativamente recentes, engrossam as fileiras daqueles que a consideram "remédio processual" mediante o qual "se afasta a eficácia de um ato judicial viciado, se retifica o ato ou se produz sua adequação aos requisitos da conveniência ou da justiça" [15] ou "remédio processual constitucional", fundamentado no direito de petição (art. 5°, XXXIV, "a" da CF). [16]
Os testemunhos acima arrolados parecem demonstrar que a categorização precisa da reclamação, ainda que bosquejada exaustivamente, não tem sido alçada a status de grande importância, levando em conta que, ainda assim, vem ela agindo a contento para os fins que a nova Carta Política, em seus artigos 102, I, "l" e 105, I, "f", a positivou.
Trata-se de elemento que aglutina lenta criação pretoriana, em cabal demonstração de atividade de criação do direito pelos órgãos judiciais, respaldado na teoria dos poderes implícitos, segundo a qual "desde que um fim é reconhecido necessário, os meios são permitidos, todas as vezes que é atribuída uma competência geral para fazer alguma coisa, nela estão compreendidos todos os particulares poderes necessários para realizá-la", de acordo com lição de Madison. [17] Depois, veio a ser incorporado no Regimento Interno da Suprema Corte, até que chegasse a ser inserida na própria Carta Maior, com cunho processual-sancionatório, de molde a garantir o duplo fundamento para a qual foi concebida, quais sejam: a) preservar a competência da Corte Superior, do Supremo Tribunal Federal e ainda dos Tribunais Estaduais (art. 125, §1°); b) garantir a autoridade de suas decisões.
A distinção entre o plano da interpretação e o da aplicação já foi tratado no início deste trabalho, e deve ser recordado aqui para melhor conhecimento de nossa exposição, visto que, como afirmou o Min. Luiz Galotti, na Reclamação 22, há que se distinguir entre o desrespeito frontal à decisão da corte da mera interpretação em sede executiva.
Não por outra razão, já sustentou o Min. Moreira Alves, Relator designado na Reclamação 208-0, que "contra ato judicial que aplica norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em representação de inconstitucionalidade não cabe reclamação, pela parte prejudicada naquela relação processual, sob o fundamento de, como terceiro interessado, visar a garantir a autoridade da decisão desta Corte" (DJ 06.12.91, p. 17.825). De igual maneira, o Min. Celso Mello no Agravo Regimental proferida na Reclamação 354, verberou: "a jurisprudência do STF firmou-se no sentido do não cabimento de reclamação na hipótese de descumprimento de decisão tomada em sede de controle de constitucionalidade, dada a natureza eminentemente objetiva do processo de ação direta" (DJ 28.05.91).
Em outro voto, a especificidade da Reclamação no bojo das ações de jurisdição constitucional fica ainda mais patente, como se extrai da seguinte passagem, abaixo transcrita, do mesmo Relator:
"O que deve ser tomado em linha de conta, como diretriz da questão, é que a ação direta de inconstitucionalidade, mediante a qual o controle concentrado é realizado, desenvolve-se num processo objetivo, sem partes, com vistas à proteção da ordem jurídica, no qual não há litígio que diga respeito a direitos individuais. Quando do julgamento da Rep. n° 1.016-SP, o Sr. Ministro Moreira Alves registrou que a representação de inconstitucionalidade, que é, hoje, a ação direta de inconstitucionalidade, tem ‘caráter excepcional com acentuada feição política pelo fato de visar ao julgamento, não de uma relação jurídica concreta, mas da validade da lei em tese.’ E acrescentou S. Exa. não é ela ‘uma simples ação declaratória de nulidade, como qualquer outra, mas, ao contrário, um instrumento especialíssimo de defesa da ordem jurídica vigente estruturada com base no respeito aos princípios constitucionais vigentes.’ (RTJ 95/993,999). Daí a inadmissibilidade da reclamação para o fim de garantir a autoridade da decisão proferida na ação direta de inconstitucionalidade. Dado que a reclamação é cabível em dois casos – para preservar a competência da Corte e para garantir a autoridade de suas decisões (C.F., art. 102, I, l) – estou em que ela poderá ser admitida, em princípio, no primeiro caso, vale dizer, para preservar a competência do Supremo Tribunal, não, entretanto, na segunda hipótese. É que a decisão proferida no controle concentrado de constitucionalidade tem a natureza de norma, de norma em sentido negativo, porque ela afasta da ordem jurídica a norma incompatível com o ato normativo inicial. Destarte, a decisão ou ato praticado com base em norma inválida, porque assim declarada, em tese, pelo Supremo Tribunal Federal, também será inválido, mas a declaração dessa invalidez deverá ser buscada mediante a utilização das ações que integram o que Cappelletti denomina de jurisdição constitucional das liberdades (‘La Giurisdizione Costituzionale delle Liberta, Milano, 1955) – os remédios ou garantias constitucionais e que são, na Constituição vigente, o hábeas corpus, o mandado de segurança individual e coletivo, o hábeas data, o mandado de injunção e a ação popular – e as ações do processo ordinário." [18]
É exatamente por esta ambivalência intrínseca em que se movimenta a reclamação que contribui para que não se alcance a univocidade quanto à sua natureza jurídica. De nossa parte, e sem querer pacificar o tema, vislumbramo-la como ação que instaura relação processual entre o prejudicado, a corte ou magistrado desobediente, e o STF, obedecendo a rito sumário, garantido o contraditório, e que tem por objetivo o exercício da jurisdição, que não se esgota no proferimento do julgado, mas se perpetua até o adimplemento do que poderíamos chamar de "direitos acessórios constitucionais" (para aproveitar teoria elaborada no Direito Privado Obrigacional/Contratual). [19]
A sua riqueza procedimental é tão grande, ainda que pouco se tenha escrito a respeito, que admite a concessão de medidas liminares (vide Rcl 208, Rel. para acórdão Min. Moreira Alves e Rcl 389, Rel. Min. Paulo Brossard), servindo também como legítima instância de reconsideração, pelo relator de Adin, acerca da necessidade de cautelar na ação principal (vide sobre este aspecto acessório a Rcl 2.063, Rel. Min. Ellen Gracie Northfleet).