1 Introdução
Muito se tem discutido nos últimos anos acerca da incidência ou não da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras, no tocante às operações simbólicas de câmbio, também conhecidas como operações de cambio simbólico, ou ainda, operações simultâneas de câmbio.
Os tribunais pátrios ainda não têm um posicionamento sólido sobre a questão. O número de processos já julgados em definitivo pelos Tribunais Regionais Federais é irrisório e a questão não chegou ainda ao Superior Tribunal de Justiça. Por esta razão, muitas empresas ainda não ingressaram em juízo para afastar a incidência.
Com o presente trabalho, o que pretendemos é tão-somente demonstrar, por meio da correta interpretação da legislação tributária, a não-incidência da CPMF sobre a dita operação, bem como as ilegalidades e inconstitucionalidades de mais esta absurda exigência fiscal.
2 Operação de Câmbio Simbólico
O câmbio simbólico, também chamado de operações simultâneas de câmbio, é uma transação fictícia de saída e entrada de dinheiro no país.
Dois casos clássicos que caracterizam esse tipo de operação. Um deles ocorre quando uma empresa situada no Brasil faz um empréstimo fora do país e o pagamento do credor ocorre com a emissão de quotas ou ações do empreendimento em favor desse credor. Neste caso, o credor transforma o pagamento que receberia em investimento na empresa brasileira. A outra situação ocorre, por exemplo, na conversão de dividendos também em investimento na empresa. Percebe-se, claramente, que são dois casos de investimentos estrangeiros no país, plenamente legais.
Contudo, em nenhuma das operações há saída pecuniária do país. O que há é tão-somente um mecanismo de que dispõe o Banco Central para controlar a entrada e a saída de divisas do território nacional, ou seja, uma medida de fiscalização.
Em tais operações não há que se falar em incidência de CPMF, uma vez inexistirem quaisquer operações financeiras.
Em outras palavras, não ocorre o fato gerador da obrigação tributária.
Todavia, como é de se esperar em um país onde impera a fúria arrecadatória do Estado, a Receita Federal, mesmo diante do cunho eminentemente fiscalizatório da operação, tenta impor ilegalmente a incidência da CPMF nas operações de cambio simbólico.
3 Incidência Tributária
Para uma melhor demonstração da inexistência do fato apto a gerar a incidência do tributo no caso em comento, mister uma singela análise do fenômeno da incidência tributária e conseqüentemente, da não-incidência.
Sabido é que a norma de incidência tributária tem estrutura dual, ou seja, há uma hipótese previamente descrita em lei e uma conseqüência, cujos efeitos são gerados com a subsunção do fato ocorrido no mundo fenomênico à hipótese abstratamente descrita na lei.
Dentre nós, quem começou a estudar a teoria da norma tributária, com afinco e primor, foi o Professor Paulo de Barros Carvalho, cuja tese resultou em obra magistral [1].
Todavia, ao nosso ver, que mais se aproximou da perfeição ao descrever o desenho normativo da incidência tributária foi o Professor Sacha Calmon Navarro Coelho, em sua tese de doutoramento perante a Universidade Federal de Minas Gerais [2].
Aperfeiçoando a tese de Paulo de Barros Carvalho, Sacha Calmon descreve, com todo o seu brilhantismo, os aspectos da hipótese e os critérios do conseqüente normativo, com algumas modificações à teoria do Professor Paulo de Barros.
Para o Professor Sacha Calmon [3], a hipótese de incidência se compõe de quatro aspectos, quais sejam: (1) aspecto material – o fato em si (o núcleo da hipótese); (2) aspecto temporal – as condições de tempo; (3) aspecto espacial – as condições de lugar e (4) aspecto pessoal – as condições e qualificações relativas às pessoas envolvidas no fato.
A conseqüência, por sua vez, impõe seis mandamentos: (1) a quem pagar – sujeito ativo; (2) quem deve pagar – sujeito passivo; (3) quanto pagar – base de cálculo e alíquotas ou valor fixo, adições e subtrações; (4) como pagar; (5) quando pagar e (6) onde pagar.
Assim sendo, para que aconteça a incidência, ou seja, para que seja gerada a obrigação de pagar o tributo, é necessário que o fato acontecido se subsuma totalmente nos aspectos da hipótese descrita na lei.
Geraldo Ataliba diz-nos que "se costuma designar por incidência, o fenômeno especificamente jurídico da subsunção de um fato a uma hipótese legal". Nosso publicista maior ainda conclui que "a norma tributária, como qualquer outra norma jurídica, tem sua incidência condicionada ao acontecimento de um fato previsto na hipótese legal, fato este que cuja verificação acarreta automaticamente a incidência do mandamento". [4]
Sacha Calmon ainda nos premia com mais uma brilhante lição:
"A incidência é dinâmica. O fenômeno se dá como a seguir.
Acontecido o fato previsto na hipótese legal (hipótese de incidência), o mandamento, que era abstrato, virtual in potentia, torna-se atuante e incide. Demiúrgico, ao incidir produz efeitos no mundo real, instaurando relações jurídicas (direitos e deveres). A incidência, em Direito Tributário, é para imputar a determinadas pessoas o dever de pagar somas de dinheiro ao Estado, a título de tributo. Esse, precisamente, é o comportamento desejado pela ordem jurídica". [5]
Souto Maior Borges, trata o assunto como poucos:
"Analisada sob o prisma de uma estrutura lógica, toda norma jurídica, inclusive a tributária, se decompõe em uma hipótese de incidência ou previsão hipotética (suporte fático, fato gerador, fattispecie, tatbestand) e uma regra ou um preceito (regra de conduta). Como se acentuou, a incidência da regra jurídica é infalível, mas somente ocorre depois de realizada a sua hipótese de incidência". [6]
Também Lourival Vilanova [7], nos chama a atenção para esta dualidade do fenômeno jurídico ao salientar, que num plano, temos um antecedente e um conseqüente e em outro plano, temos os dados-de-fato, as contrapartes empíricas do antecedente e do conseqüente da hipótese normativa.
Diz ele a respeito do suporte fático que corresponde a nossa fattispecie:
"O conceito de suporte fáctico é auxiliar. É um conceito relativo. A fração do suporte fáctico, prefixada na hipótese, é o fato jurídico. Se o suporte fáctico tem as propriedades a, b, c, d e a hipótese os tem como referências de sua conotação A, B, C, D então o suporte fáctico é elevado, esgotantemente, ao nível de fato jurídico. Ordinariamente, o suporte fáctico é mais rico em propriedades que a conotação hipótese".
Para finalizarmos a questão da incidência, nada melhor que a lição de Alfredo Augusto Becker:
"Toda e qualquer regra jurídica (independentemente de sua natureza tributária, civil, comercial etc.) tem a mesma estrutura lógica: a hipótese de incidência (fato gerador, suporte fático etc.) e a regra (norma, preceito, regra de conduta) cuja incidência fica condicionada à realização dessa hipótese de incidência". [8]
Demonstrado o fenômeno da incidência tributária, passemos à análise da outra face da moeda, a não-incidência tributária.
4 Não-incidência
No presente trabalho, não pretendemos de forma alguma adentrar a discussão sobre as diferenças existentes entre as imunidades, isenções e não-incidência pura e simples.
Faremos, a título de ilustração, tão-somente uma brevíssima distinção.
Tanto a imunidade quanto a isenção, tal qual a não-incidência, impedem o nascimento da obrigação tributária, mas por diferentes razões.
A imunidade e a isenção estão positivadas. A imunidade é limitação do exercício da competência tributária prevista na Constituição, de cunho axiológico ou por política fiscal. Quanto à isenção, também impede o nascimento da obrigação tributária, pela supressão, feita pelo legislador infraconstitucional, de um dos aspectos da sua hipótese de incidência.
São, portanto, a imunidade e a isenção declarações de vontade do legislador, cuja função é delimitar negativamente a competência tributária.
Aqui, mister somente lembrarmos que a isenção não exclui a incidência, ela impede o seu nascimento.
Quanto à não-incidência pura e simples, esta é tão-somente a inocorrência da hipótese de incidência tributária, pelo fato da não-subsunção de um fato à hipótese abstrata prevista na lei. São fatos que não provocam a incidência. É um não-ser.
Isto é, "a não-incidência é um efeito. É tudo o-que-não-é. Composto o perfil da hipótese de incidência, já no plano da Ciência do Direito, pela conjunção das regras de imposição com as de imunidade e de isenção, tudo o que ficar de fora, à volta deste perfil, estará na área de não-incidência". [9]
Feita esta simples exposição, passemos então ao cerne deste ensaio, qual seja, a não-incidência da CPMF nas operações de cambio simbólico.
5 Da não-incidência pura e simples quanto à CPMF nas operações de câmbio simbólico
Conforme dito retro, nessas operações, a Receita Federal entende equivocadamente que a CPMF deve ser paga. Todavia, não o pode ser, pela simples razão de que o contrato de câmbio é apenas simbólico, uma vez que não há movimentação financeira, os valores não são movimentados porque já se encontram na empresa investida, só que sob a forma de empréstimo.
Nem se pense aqui que esta é uma situação que aflige somente empresas multinacionais. As pessoas físicas, também podem ser obrigadas a recolher a CPMF em determinadas situações. Já se noticiou caso de brasileiro, pessoa física, que passou a residir no exterior e possuía participação em uma empresa nacional. Para viabilizar o recebimento dos dividendos lá fora, como não-residente, a participação dele na empresa teve que ser transformada em investimento estrangeiro. Para atender a exigência, foi necessário realizar a operação de câmbio simbólico. No entanto, conforme relatado, a Receita cobrou a CPMF sobre o valor da participação do brasileiro na sociedade. [10]
Para melhor análise, vejamos a hipótese de incidência da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras, conforme a Lei 9.311/96:
Art. 2° O fato gerador da contribuição é:
I - o lançamento a débito, por instituição financeira, em contas correntes de depósito, em contas correntes de empréstimo, em contas de depósito de poupança, de depósito judicial e de depósitos em consignação de pagamento de que tratam os parágrafos do art. 890 da Lei n° 5.869, de 11 de janeiro de 1973, introduzidos pelo art. 1° da Lei n° 8.951, de 13 de dezembro de 1994, junto a ela mantidas;
II - o lançamento a crédito, por instituição financeira, em contas correntes que apresentem saldo negativo, até o limite de valor da redução do saldo devedor;
III - a liquidação ou pagamento, por instituição financeira, de quaisquer créditos, direitos ou valores, por conta e ordem de terceiros, que não tenham sido creditados, em nome do beneficiário, nas contas referidas nos incisos anteriores;
IV - o lançamento, e qualquer outra forma de movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira, não relacionados nos incisos anteriores, efetuados pelos bancos comerciais, bancos múltiplos com carteira comercial e caixas econômicas;
V - a liquidação de operação contratadas nos mercados organizados de liquidação futura;
VI - qualquer outra movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira que, por sua finalidade, reunindo características que permitam presumir a existência de sistema organizado para efetivá-la, produza os mesmos efeitos previstos nos incisos anteriores, independentemente da pessoa que a efetue, da denominação que possa ter e da forma jurídica ou dos instrumentos utilizados para realizá-la.
Ora, como haveria incidência do tributo, se não há movimentação financeira? Isto é impossível. A transação é meramente simbólica, o fato não se subsume a nenhuma das hipóteses abstratamente previstas em lei.
Inexiste a incidência da CPMF sobre os contratos simbólicos de câmbio, registrados no Banco Central do Brasil, celebrados nas conversões de empréstimos em investimento de capital estrangeiro.
Ora, a operação simbólica imposta pelo Banco Central não representa uma movimentação, transmissão, lançamento, liquidação ou pagamento de quaisquer valores, escriturais ou físicos. É realizada tão-somente para cumprir exigência burocrática do BACEN, com o intuito de controlar e fiscalizar o ingresso e da saída de capital estrangeiro do território brasileiro.
Assim, como não há movimentação escritural de valores, porquanto esta pressuporia a movimentação ou transferência efetiva de valores, não ocorre nenhuma das hipóteses de incidência da CPMF, previstas na Lei nº 9.311/96, sendo sua cobrança totalmente ilegal.
Desta forma já decidiu o Juiz Federal Guilherme Calmon Nogueira da Gama, da 6ª Vara da seção Judiciária do Rio de Janeiro [11]. O magistrado observa, ainda, que se a sociedade mutuante fosse brasileira, e não estrangeira, e fosse acordada a transformação do mútuo em capital da empresa que recebeu o empréstimo, não seria necessário qualquer registro da conversão no BACEN, sendo clara a inexistência do fato gerador da CPMF. Assim, em face do princípio da igualdade tributária, também é incabível a cobrança da CPMF nos contratos de câmbio simbólico, eis que o investidor estrangeiro não pode ser tratado de forma mais gravosa do que o investidor nacional.
Ora, essa espécie de contrato constitui uma operação simbólica de entrada e saída de dólares, feita para preencher as exigências do Banco Central, que controla o ingresso e a remessa de divisas do país. Tal ingresso, na realidade, não gera movimentação financeira e, conseqüentemente, está fora do alcance da norma de incidência da CPMF, é um fato estranho à incidência, isto é, estamos diante de claríssima hipótese de não-incidência pura e simples.
6 Conclusão
Conclui-se, portanto, que os contratos simbólicos de câmbio não representam efetiva movimentação financeira. Representam exigências burocráticas do Banco Central do Brasil, com o claro objetivo de fiscalizar a entrada e saída de divisas no País.
Em decorrência desta operação, deste contrato, os valores envolvidos na conversão são simbolicamente enviados ao exterior, regressando, de forma também simbólica, para o Brasil.
Percebe-se, portanto, que o tal operação está fora do alcance da incidência do tributo em questão.
Ademais, a forma como vem agindo a Receita Federal, mais uma vez, afronta o princípio da não-discriminação, ponto fulcral do ordenamento tributário pátrio, disposto no art. 150, II, da Carta Política de 1988. Tal afronta se dá pelo tratamento discriminatório dado ao investidor estrangeiro, que, aliás, é protegido pela lei.
Assim cabe aos contribuintes que se sentirem lesados, provocar o Poder Judiciário na busca de afastar totalmente a absurda incidência, para que não se permita, cada vez mais, a fuga de investimentos seguros no Brasil em detrimento de outros países em desenvolvimento; e, conseqüentemente, não aumentem as mazelas de nossa economia e, principalmente, da nossa sociedade.
Notas
1 Teoria da Norma Tributária, São Paulo: Lael, 1974.
2 Teoria Geral do Tributo e da Exoneração Tributária.
3 Teoria Geral do Tributo, da Interpretação e da Exoneração Tributária, São Paulo: Dialética, 2003. Pagina 98.
4 Hipótese de Incidência Tributária. Pág. 41.
5 Teoria...p. 109.
6 Isenções Tributárias. Sugestões Literárias, 1969, p. 176.
7 Causalidade e relação no direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p.16
8 Teoria Geral do Direito Tributário, São Paulo, Lejus, 3ª edição, 1998, p. 289.
9 CALMON, Sacha. Teoria...p. 218.
10 Valor on-line, 30 de março de 2005.
11 Processo nº 2003.5101490312-9