2. O PAPEL DO SISTEMA REGIONAL INTERAMERICANO E A NECESSIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO:
Já fora demonstrado, na sessão anterior, de que maneira o Brasil viola diretamente as regras e princípios internacionais e, também, seus documentos normativos internos, relativos à administração da justiça de menores em matéria de execução penal, pretende-se então, nesta divisão do presente trabalho, identificar o papel do sistema interamericano na região a ele incumbida de monitorar e demonstrar a necessidade e possibilidade de punição do Estado brasileiro perante ao sistema, em matéria contenciosa, pelos abusos por ele perpetrados.
Além do sistema global de proteção dos direitos humanos, que se vê representado principalmente por meio da ONU e de seus órgãos competentes, recentemente na história, pôde ser visto o nascimento e fortalecimento dos chamados sistemas regionais de proteção, que, aliados ao sistema global, objetivam responder as necessidades de monitoramento da proteção dos direitos humanos e garantia destes à nível regional, agindo, teoricamente, de maneira mais efetiva e legítima (MAZZUOLI, 2016). No entanto, vale reforçar que, como reitera Piovesan (2015), o sistema global e os regionais não são incompatíveis e dicotômicos, mas sim complementares, compondo um só instrumento universal de proteção dos direitos humanos.
Dentre os sistemas regionais atualmente existentes, o sistema interamericano é aquele no qual o Brasil se encontra inserido, geograficamente e jurisdicionalmente falando. O sistema tem sua origem histórica com a formalização da Carta da Organização dos Estados Americanos, em 1948, e, consolidou seu arcabouço jurídico a partir da elaboração da Convenção Americana de 1969 (MAZZUOLI, 2016), que entrou em vigor em 1978 e reconhece, primordialmente, um rol de direitos similares aqueles já elencados pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIOVESAN, 2015). Posteriormente, em 1988, o sistema também incorpora outras categorias de direitos a partir do Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (MAZZUOLI, 2016).
No entanto, deve-se levar em conta que o sistema regional interamericano, apesar de ter aparato jurídico próprio, está longe de ser uma unidade jurisprudencial estanque, como afirma Piovesan (2017), o diálogo entre as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos tem sido patrocinado por permeabilidades e aberturas recíprocas, e, a partir dos processos de interlocução e “empréstimos” jurisprudenciais, cada um destes sistemas adquire a possibilidade de refinar e alargar suas jurisprudências, fortalecendo a capacidade de responder de maneira mais efetiva às mais diferentes violações aos direitos humanos (PIOVESAN, 2017).
O Brasil, consoante à Ramos (2017), aderiu à Convenção Americana em 1992, aceitando também sua cláusula facultativa de jurisdição obrigatória referente à Corte Interamericana, e promulgou a Convenção por meio do Decreto nº 678, do mesmo ano. Deve-se reforçar que, a jurisprudência do sistema interamericano é complementar à do Brasil, e de forma alguma estabelece uma proteção supletória à do Direito interno, pois como salienta Mazzuoli, isso significa que:
[...] Não se retira dos Estados a competência primária para amparar e proteger os direitos das pessoas sujeitas à sua jurisdição, mas que nos casos de falta de amparo [...] pode o sistema interamericano atuar concorrendo para o objetivo comum de proteger determinado direito [...]” (MAZZUOLI, 2016, p. 975).
No entanto, quando o Estado falha em garantir e proteger determinado direito, é competência expressa dos órgãos responsáveis, neste caso o sistema interamericano, em cobrar ações das entidades estatais para com a instituição do direito lesado e posterior reparação das vítimas. Atualmente, de acordo com Cretella Neto (2013), o sistema regional interamericano conta com dois órgãos responsáveis pelo monitoramento e implementação das normativas relativas aos direitos humanos nas Américas: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIADH), de 1960, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), de 1979[2].
Assim sendo, reconhece-se que, no momento em que o Estado brasileiro depositou seu comprometimento - a partir da ratificação da Convenção Americana e aceitação da cláusula facultativa de jurisdição obrigatória da CIDH - para com o respeito e promoção dos direitos humanos em seu território, o país se vê sujeito às recomendações e decisões do sistema interamericano, sendo este responsável pelo incentivo ao controle de convencionalidade das leis (no ordenamento jurídico interno) e por não se limitar apenas à observação dos direitos elencados pela Convenção, mas também devendo respeito aos princípios e normas gerais de direitos humanos no plano do direito internacional, pois como enuncia Piovesan (2017, p. 158), “[...] a Corte não efetua uma interpretação estática dos direitos humanos enunciados na Convenção Americana, mas, tal como a Corte Europeia, realiza interpretação dinâmica e evolutiva, considerando o contexto temporal e as transformações sociais, o que permite a expansão de direitos”.
Porém, críticas podem surgir, alegando o falso pretexto de que o Brasil só pode ser punido pela violação de tratados por ele acordados no cenário internacional, e que, normas de cunho não-vinculativas, ou extraconvencionais, como as Regras de Mandela e as Regras de Pequim não seriam, por si próprias capazes de invocar a responsabilidade internacional do Brasil perante uma corte internacional. No entanto, há vários exemplos de invocação de normas extraconvencionais na aplicação da proteção internacional dos direitos humanos em julgados do próprio Supremo Tribunal Federal (STF) e de outros órgãos jurisprudenciais internos:
[...] na ADIn 3.741, Rel. Min. Ricardo Lewandowski (Declaração Universal de Direitos do Homem); HC 81.158-2, Rel. Min. Ellen Gracie (Declaração Universal dos Direitos da Criança – 1959); HC 82.424-RS, Relator para o Acórdão Min. Maurício Corrêa (Declaração Universal dos Direitos Humanos); RE 86.297, Rel. Min. Thompson Flores (menção à Declaração Universal dos Direitos do Homem); ADIn 3.510, Rel. Min. Carlos Britto (no voto do Min. Ricardo Lewandowski menção à Declaração Universal sobre Bioética) [...] Chega-se ao ponto de existirem exemplos de invocação, como vinculantes, de diplomas internacionais da soft law, que, em tese, não vinculariam o Brasil [...] (RAMOS, 2016, p.236).
Ou seja, a própria jurisprudência nacional brasileira reconhece a obrigação do Brasil em observar as normas e princípios gerais acerca dos direitos humanos, sendo estas normas e princípios alocados ou não em instrumentos convencionais, abrindo espaço para a concretização efetiva das normas mais favoráveis à implementação da dignidade humana em níveis regionais e internacionais.
Não obstante, outra objeção possível contra a admissibilidade do caso, é a de que, conforme o artigo 46 da Convenção Americana, uma petição acerca da violação de direitos humanos só pode ser julgada como procedente caso tenham sido interpostos e esgotados todos os recursos da jurisdição interna, e, reconhece-se que no Brasil, ainda não há trâmite processual em curso acerca das violações aqui dispostas.
Porém, conforme bem pontuou Mazzuoli (2016), no parágrafo segundo do mesmo artigo (46) da Convenção, reconhece-se que a regra de esgotamento prévio da jurisdição interna não se aplica aos casos de: não existir na legislação interna o devido processo legal para a proteção do direito que alegue-se ter sido violado (grifo nosso); não se houver permitido o acesso aos recursos da jurisdição interna ou houver demora injustificada na decisão acerca dos recursos peticionados. Ou seja, reconhece que, o Estado brasileiro ao não oferecer as vias jurisprudenciais necessárias para a responsabilização do país pelas violações por ele cometidas em matéria de execução penal de medidas punitivas a menores de idade em conflito com a Lei, abre espaço para a atuação necessária do sistema interamericano para com a restituição dos direitos lesados na questão em análise. Assim sendo, entende-se que a responsabilidade internacional do Estado não depende exclusivamente do esgotamento dos recursos internos, como afirmara Trindade (2017, p. 280-281):
[...] O parecer de que o surgimento da responsabilidade internacional (distinto de sua implementação) não depende do esgotamento dos recursos internos – a teoria processual – foi em diversas ocasiões expressamente endossado por um número considerável de publicistas influentes.
Resta agora, o sistema interamericano movimentar seus mecanismos em busca da responsabilização do Estado brasileiro frente às violações ao princípio da intervenção penal mínima, reconhecido internacionalmente, no que tange à aplicação de medidas punitivas a menores de idade no país, buscando a adequação dos processos de administração da justiça brasileira às normas internacionais de direitos humanos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve por objetivos identificar como se dão as violações ao princípio da intervenção penal mínima nos casos de cerceamento de liberdade de menores de idade e de que maneira o Brasil pode ser responsabilizado frente ao sistema interamericano devido a essas violações.
Não obstante, foi possível reconhecer que os órgãos responsáveis pela administração da justiça em matéria de crimes perpetuados por menores de idade no Brasil, desrespeitam, de maneira explícita, o princípio de intervenção penal mínima, ignorando o fato de que a pena privativa de liberdade deve ser utilizada apenas em casos de extrema necessidade, o que mostra a inclinação das instituições penais brasileiras em direção ao controle social da pobreza, impedindo que medidas alternativas ao cerceamento da liberdade possam ser aplicadas ao tratamento das condutas de menores em conflito com a Lei no Brasil, de maneira a que o número de punições que comportam o isolamento/internação só tem aumentando no país nos últimos anos.
Fora identificado também que, ao violar os princípios supracitados, que se encontram em ambas as Regras de Pequim e de Mandela, o Brasil pode sim ser responsabilizado por seus atos, mesmo sendo estas regras de caráter extraconvencional, no entanto, o que pode se observar, é uma completa negligência ou inobservância jurisprudencial do sistema regional interamericano acerca da matéria em análise, tendo este dispendido poucos esforços em investigar as violações cometidas pelo Estado brasileiro na elaboração de medidas punitivas impostas à menores de idade em conflito com a Lei no país, o que traz à tona a necessidade da sociedade civil organizada, assim como de outros Estados-membros da OEA, em acionar a jurisdição da CIADH e da CIDH, para que possam analisar o caso aqui apresentado e, acertadamente, julgá-lo como sendo precedente.
REFERÊNCIAS
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Notas
[1] Menor é qualquer criança ou jovem que, em relação ao sistema jurídico considerado, pode ser punido por um delito, de forma diferente da de um adulto. No Brasil, são considerados menores aquelas e aqueles com menos de 18 anos de idade.
[2] Segundo Mazzuoli (2016), a CIADH, tem como principais objetivos estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América; formular recomendações aos Estados-membros da OEA; solicitar informações junto aos governos acerca das medidas adotadas em matéria de direitos humanos, assim como preparar estudos e relatórios convenientes ao desempenho de suas funções. Enquanto a CIDH é o órgão jurisdicional de competência consultiva e contenciosa, responsável pela resolução dos casos de violação de direitos humanos perpetradas pelos Estados-membros da OEA.