INTRODUÇÃO
O alto protagonismo judicial em matéria de proteção e garantia dos direitos humanos no Brasil, assim como no contexto regional da América Latina, faz-se, ao menos no recorte histórico-social do tempo presente, necessário e fundamental, pois “[a] região ainda convive com as reminiscências do legado dos regimes autoritários ditatoriais, com uma cultura de violência e de impunidade, com a baixa densidade de Estados de Direito e com a precária tradição de respeito aos direitos humanos [...]” (PIOVESAN, 2017, p.143). Assim sendo, a atuação de mecanismos judiciais regionais de proteção dos direitos humanos, como o interamericano, revela-se importante na construção de uma consciência regional acerca da importância da adequação das normas e das práticas do direito interno às recomendações advindas das instituições de direito internacional, que objetivam a contemplação integral dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais dentre outros, no âmbito dos países que, de boa-fé, aceitaram e prometeram acatar as decisões jurisprudenciais de seus órgãos, em matéria consultiva e contenciosa.
No entanto, apesar dos notáveis avanços jurisprudenciais que o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos tem alcançado, desde sua expansão, a partir da formalização da Convenção Americana de Direitos Humanos, em 1969 (PIOVESAN, 2015), o sistema tem falhado em corresponder com certas demandas jurídicas acerca da tutela de determinados direitos, nos quais têm sido violados constantemente, principalmente no âmbito da sociedade brasileira contemporânea, como por exemplo, as violações que o Brasil tem perpetrado em desrespeito ao princípio da intervenção penal mínima no tratamento das condutas criminosas de menores de idade[1], o princípio da intervenção mínima fora internacionalmente reconhecido principalmente, conforme afirma Roig (2017), a partir dos Princípios Básicos da ONU (Organização das Nações Unidas) para o Tratamento dos Reclusos, que estabelece em seu sétimo princípio, que esforços devem ser perseguidos para abolir ou restringir o regime de isolamento enquanto medida punitiva e nacionalmente protegido por meio da Lei nº 7.210, a Lei de Execução Penal (LEP), de 1984.
Não obstante, quando se fala do tratamento das condutas de menores em conflito com a Lei no Brasil, é necessário levar em conta que o país possui (no plano nacional) uma legislação geral, a Constituição Federal (CF) de 1988 e outra específica, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, responsáveis por guiar as diretrizes elaboradas pelos poderes públicos acerca deste tema. De acordo com a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED) (2007), o principal avanço do ECA foi introduzir ao direito interno brasileiro a ideia de que a criança e o adolescente são sujeitos de direito e que não devem ser considerados enquanto pessoas incompletas, mas enquanto ‘pessoas em condição peculiar de desenvolvimento’. E, no plano internacional, o Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e das Regras Mínimas das Nações para Administração da Justiça Juvenil - Regras de Beijing e Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens privados de Liberdade (ANCED, 2007).
Porém, apesar da existência de um vasto aparato legal que institui a intervenção penal mínima enquanto princípio norteador das práticas de execução penal e regras mínimas acerca da proteção dos direitos dos menores de idade que perpetuaram condutas criminosas, “o Sistema de Justiça Juvenil Brasileiro tem uma formatação legal [...] e uma prática não formal que, na realidade, se contrapõe à legal” (ANCED, 2007, p.79), que na verdade se inclina à estabelecer um programa de controle social baseado em práticas que violam diretamente os direitos fundamentais elencados nas declarações de direito interno e nos mecanismos convencionais e extraconvencionais nos quais o Estado brasileiro é parte. Tal inclinação, em certos casos, se dá também por um caráter implícito nos documentos legais, como o ECA, que é pouco discutido, consoante à Martins (2011, p. 380-382):
O Estatuto é a primeira lei, em nosso país, voltada às crianças e adolescentes de maneira universal. Porém, por trás de um discurso universal há uma sociedade desigual. Sendo a lei supostamente igual para todos, mas tendo atrás de si uma complexa teia de estigmatização, seletividade e criminalização, a sua seção dedicada ao ato infracional não é universal, pois, em sua prática, é voltada a uma classe social [...] O que nos parece evidente é que a Justiça Juvenil nem é tão somente tutelar e nem é uma cópia penal. O que seria possível afirmar é que a Justiça Juvenil mantém uma característica que perpassa os dois modelos: é um instrumento de controle da população pobre e, infelizmente, não é eminentemente pedagógica.
Isso reflete no número de apreensão de menores, que tem aumentado de maneira súbita nos últimos anos no Brasil. De acordo com Coissi (2015), de 2008 a 2013, aumentou em 37,6% o número de menores privados de liberdade, sendo que o roubo e o tráfico de drogas foram as razões principais, durante este período, para o cerceamento da liberdade destes sujeitos. Sem embargo, em números recolhidos pelo G1 do Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei (disponível apenas para magistrados), no ano de 2016 existiam 189 mil adolescentes cumprindo medidas socioeducativas no país, e, do total das medidas aplicadas, 29.794 são de internação sem atividades externas (REIS, 2016), representando um número alto de casos em que o isolamento completo é adotado enquanto medida “socioeducativa”.
Assim sendo, reconhece-se que o Brasil, claramente, viola as normativas tanto nacionais, quanto internacionais, acerca do tratamento das condutas de menores de idade em conflito com a Lei, o que é facilmente visto a partir das estatísticas supracitadas, a partir do aumento brusco na apreensão de menores e na aplicação de penas privativas de liberdade a estes, pois como reitera Roig (2017, p.67) “[...] a intervenção penal e o próprio encarceramento se reservam tão somente aos casos de extrema necessidade [...] também o isolamento disciplinar – se não acertadamente abolido como forma de sanção – deve ao menos ser considerado a ultima ratio da execução penal”.
Portanto, este artigo tem por objetivos identificar como se dão as violações ao princípio da intervenção penal mínima nos casos de cerceamento de liberdade de menores de idade e de que maneira o Brasil pode ser responsabilizado frente ao sistema interamericano devido a essas violações, o método utilizado fora o descritivo-explicativo e o marco teórico em que o estudo se baseia transpassa a doutrina do direito internacional público, dos direitos humanos e da criminologia crítica aplicados à execução penal, em uma abordagem essencialmente interdisciplinar, tendo como mecanismos de pesquisa a pesquisa bibliográfica e documental.
1. O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO PENAL MÍNIMA E O ISOLAMENTO/INTERNAÇÃO DE MENORES DE IDADE NO BRASIL:
Esta seção tem por objetivo identificar o posicionamento e importância do princípio de intervenção penal mínima dentro do ordenamento jurídico e da sociedade brasileira contemporânea, assim como identificar suas possíveis violações no que tange as restrições à liberdade impostas a pessoas menores de idade em conflito com a Lei no Brasil, identificando não apenas o posicionamento dos teóricos (principalmente aqueles que possuem uma visão crítica acerca da criminologia e da execução penal) mas também os próprios mecanismos legais elaborados pelos poderes constituintes originário e derivado mas também as convenções das quais o Estado brasileiro é parte e as normas de cunho extraconvencional, que dissertam acerca da execução penal e seus procedimentos.
Não é possível discorrer acerca da minimização do protagonismo penal enquanto mecanismo de controle social, sem falar dos estudos relativos à criminologia crítica. Assim como afirmou Lopes (2002), a criminologia crítica representa um turning point no estudo das ciências penais, ela veio para romper com o paradigma dominante da criminologia liberal-positivista que reproduzia a construção de rótulos acerca da figura do “criminoso” (o famoso labelling approach), denunciando que a promoção de tal perspectiva servia para algo e para alguém, neste caso, para a aceleração dos processos de criminalização das classes subalternas.
A criminologia crítica possui bases claramente marxistas, assim como a teoria crítica no geral (aquela que busca denunciar de forma abrangente a crise nas ciências humanas e sociais, principalmente a partir dos teóricos da Escola de Frankfurt, que tomou impulso no início da década de 1920). Os estudos críticos acerca da criminologia têm por objeto de análise “[...] o conjunto de relações sociais, compreendendo as estruturas econômicas e jurídico-políticas do controle social” (LOPES, 2002, p.71), tendo como um de seus principais expoentes o filósofo, sociólogo e jurista italiano Alessandro Baratta, que, por meio de sua principal obra: “Criminologia critica e critica del diritto penale: introduzione alla sociologia giuridico-penale”, de 1982, marca uma virada no pensamento criminológico ocidental da época.
Em sua obra, Baratta defende que esta nova criminologia voltaria sua atenção sobre os processos de criminalização, denunciando as relações sociais de desigualdade próprias da sociedade capitalista e buscando expandir a crítica do direito penal enquanto campo desigual, elaborando uma teoria materialista (econômico-política) dos desvios (de conduta), e dos comportamentos socialmente negativos e também da censura, traçando as linhas de uma política criminal alternativa, principalmente para o que ele chamada de classes subalternas (BARATTA, 2014).
Não obstante, o autor chama atenção para a ideia de que, qualquer um que pretenda utilizar a criminologia crítica enquanto lente teórica de análise para os fenômenos sociais, nos quais o direito penal é utilizado enquanto mecanismo de controle social, deve tomar cuidado para não utilizar apenas a descrição, pois ela é importante, à medida que penetra na lógica das contradições que a realidade social apresenta, no entanto, é necessário “subir mais um degrau”, em busca de uma explicação para tais fenômenos e possíveis superações para estas contradições (BARATTA, 2014). Assim sendo, é de maneira célebre que o autor irá, no último capítulo de sua principal obra (já citada), denominado “Criminologia crítica e política criminal alternativa”, discorrer acerca das alternativas às políticas criminais vigentes.
É a partir deste plano de fundo teórico que torna-se possível pensar em formas alternativas à pena de prisão, mais especificamente, da restrição parcial ou total da liberdade do indivíduo enquanto política penal, abrindo espaço para a introdução do princípio da intervenção penal mínima nas práticas de execução penal realizadas pelo Estado e por seus órgãos competentes. Roig (2017, p.65), entende que:
Na essência, o princípio da intervenção mínima estabelece que a punição criminal, em virtude de seus efeitos nefastos e estigmatizantes, deve ser reservada apenas aos casos de extrema necessidade, quando a defesa de certo interesse ou valor não pode ser viabilizada por instrumentos não penais (sanção civil, administrativa etc.). A “solução” penal é, portanto, a ultima ratio (última razão) do direito, somente devendo ser aplicada em virtude de graves violações aos interesses ou valores mais relevantes.
No plano internacional, o princípio fora incorporado pelas Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos, popularmente conhecidas como “Regras de Mandela”, segundo o ministro e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski (2016), o Governo Brasileiro participou ativamente das negociações para a elaboração das Regras Mínimas e sua aprovação na Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2015, mostrando a necessidade da sociedade civil organizada e dos entes estatais em estimularem a aplicação destas regras nas práticas que envolvem o sistema penitenciário brasileiro. Não obstante, como pode ser observado na regra de número 3:
O encarceramento e outras medidas que excluam uma pessoa do convívio com o mundo externo são aflitivas pelo próprio fato de ser retirado destas pessoas o direito à autodeterminação ao serem privadas de sua liberdade. Portanto, o sistema prisional não deverá agravar o sofrimento inerente a tal situação, exceto em casos incidentais, em que a separação seja justificável, ou nos casos de manutenção da disciplina (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2016, p. 19).
Não obstante, conjuntamente com as regras gerais acerca do tratamento de reclusos, podem ser identificados outros instrumentos extraconvencionais que tratam de maneira específica do objeto de estudo desta pesquisa: a aplicação de medidas punitivas à menores de idade. Entre estes instrumentos, o mais importante no que cerne à administração da justiça de menores talvez sejam as “Regras de Pequim”, intituladas “Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores”, de 1985. Que reforçam, no seu ponto 18.1, a necessidade de os países assumirem o compromisso internacional de estimular a utilização de sanções alternativas no tratamento das “condutas desviantes” daqueles menores em conflito com a Lei, de maneira a que o isolamento seja a última opção:
A autoridade competente pode assegurar a execução do julgamento sob formas muito diversas, usando de uma grande maleabilidade a fim de evitar, tanto quanto possível, o internamento numa instituição. Tais medidas, algumas das quais podem ser aplicadas cumulativamente, incluem: a) Medidas de proteção, orientação e vigilância; b) Regime de prova; c) Medidas de prestação de serviços à comunidade; d) Multas, indenização e restituição; e) Tratamento intermédio e outras medidas de tratamento; f) Participação em grupos de "counselling" e outras atividades semelhantes; g) Colocação em família idônea, em centro comunitário ou outro estabelecimento; h) Outras medidas relevantes (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2016).
A doutrina reconhece também a necessidade de enxergar a pena privativa de liberdade com outros olhos, desmistificando a esperança otimista e maniqueísta, que tem berço na criminologia positivista do século XIX, de que o cerceamento da liberdade, por si só, é capaz de “ressocializar” e reinserir o indivíduo no meio social do qual que fora retirado, necessita-se:
“aperfeiçoar a pena privativa de liberdade, quando necessária, e substituí-la, quando possível e recomendável. Todas as reformas de nossos dias deixam patente o descrédito depositado [...] na pena de prisão, como forma quase que exclusiva de controle social formalizado” (BITENCOURT, 1995, p. 14-15).
O processo que deve ser seguido é aquele que Baratta (2014) chama de “despenalização”, ou seja, “a substituição das sanções penais por formas de controle não estigmatizantes (sanções administrativas ou civis), e, mais ainda, o encaminhamento de processos alternativos de socialização do controle do desvio [...]” (BARATTA, 2014, p. 202). E, além disso, esforços devem ser despendidos para sanar as próprias condições que empurram os indivíduos, neste caso, os menores de idade, para a criminalidade, fatores sociais muito mais profundos que necessitam da atenção que a eles é negada, preferindo o Poder Público brasileiro adotar medidas que maquiem os problemas ao invés de verdadeiramente solucioná-los, pois como afirmou Beccaria (1996, p. 125):
É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é se não a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (2012), retirados do Programa Justiça ao Jovem, que entrevistou 1.898 adolescentes em cumprimento de medida de privação de liberdade em todas as regiões do país, na maior parte das regiões do Brasil, os atos infracionais cometidos pela maioria dos entrevistados foram crimes contra o patrimônio (roubo, furto, entre outros). Sendo que, neste ano (2012), a população menor de idade isolada em detrimento de cumprimento de sentença era de cerca de 20 mil. Em 2013 (COISSI, 2015), o número de menores privados de liberdade era de pouco mais de 23 mil, e em 2016, esse número beirava a casa dos 30 mil (REIS, 2016). O que mostra que, as medidas de isolamento têm sido aplicadas de maneira discricionária, sem considerar alternativas à pena de restrição da liberdade, pois como afirma Martins (2011, p.388):
[...] Sendo a internação uma modalidade de privação à liberdade, deve ter caráter excepcional e, por isso, como já preconizado na Constituição e delimitado no ECA, sua aplicação deve obedecer a três princípios: brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, conforme dispõe o artigo 121. A medida de privação de liberdade deve ser a última opção, lógica inversa da que ainda prevalece no âmbito penal [...].
Portanto, deve-se procurar mudar a direção na qual as instituições penais brasileiras caminham no que cerne à administração da justiça de menores de idade, pois os atuais caminhos perseguidos além de serem ineficientes também violam a dignidade da pessoa humana do menor, dignidade esta reconhecida pela CF/88, pelo ECA e pelos instrumentos convencionais e extraconvencionais do ordenamento jurídico da sociedade internacional. Para tanto, necessita-se que os mecanismos jurisprudenciais interamericanos sejam movimentados a condenar as violações por parte do Brasil ao princípio da intervenção penal mínima na condução das medidas punitivas aplicadas à menores de idade no país, tópico que fora explorado na sessão posterior.