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Evolução constitucional do município brasileiro

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29/05/2005 às 00:00
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6. O Município na Constituição de 1891

            A Constituição Republicana de 1891 reservou o título n.º III, com apenas um artigo, exclusivamente ao Município, prevendo, ali, expressamente a autonomia municipal: "Art. 68. Os Estados organizar-se-hão de fórma que fique assegurada a autonomia dos municipios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse."(CAMPANHOLE e CAMPANHOLE, 1985, p. 586).

            A nova ordem, imposta pela Constituição de 1891, foi inspirada no figurino norte-americano. Operou tríplice transformação: "a forma de governo, de monárquica passa a republicana; o sistema de governo, de parlamentar transmuda-se em presidencial; a forma de estado, de unitária converte-se em federal". (BARROSO, 1993, p. 11).

            Apesar da previsão constitucional sobre autonomia municipal, esta, na verdade, foi apenas simbólica.

            Durante os 40 anos em que vigorou a Constituição de 1891 não houve autonomia municipal no Brasil. O hábito do centralismo, a opressão do coronelismo e a incultura do povo transformaram os Municípios em feudos de políticos truculentos, que mandavam e desmandavam nos ´´seus´´ distritos de influência, como se o Município fosse propriedade particular e o eleitorado um rebanho dócil ao seu poder. (MEIRELLES, 1996, p. 37).

            José Afonso da Silva (1991, p. 71) afirma que "o sistema constitucional implantado enfraquecera o poder central e reacendera os poderes regionais e locais, adormecidos sob o guante do mecanismo unitário e centralizador do império". Afonso da Silva referiu-se, na verdade, ao afloramento dos movimentos regionais e locais, mas não que tais movimentos tivessem redundado em progresso imediato e efetivo aos interesses municipais. Nessa novel federação, as Províncias passaram a ser denominadas de Estados, elevando, assim, sua influência política e administrativa. O mesmo não ocorreu com os Municípios.

            No tocante à autonomia municipal, o texto constitucional foi notoriamente impreciso. Limitou-se em estabelecer que os Estados-membros deveriam assegurar a autonomia dos Municípios, em tudo quanto respeitasse ao seu peculiar interesse (art. 68). Para Paulino Jacques (1970, p. 150), essa expressão representou algo indeterminado – "nada mais vago" – em suas próprias palavras.

            Nessa época, a Lei Orgânica dos Municípios era elaborada pelas Assembléias Legislativas em quase todos os Estados. Alguns, porém, agindo mais democraticamente, atribuíam essa prerrogativa aos Municípios. Eram eles: Rio Grande do Sul, Pará e Goiás.

            Surgiam, ainda, outras questões em relação à autonomia dos Municípios. No projeto que serviu de base aos trabalhos da constituinte, elaborado por Rui Barbosa, constava, juntamente com a autonomia das administrações locais, a eletividade dos seus administradores; contudo, após várias emendas, tal previsão foi suprimida (MONTORO, 1975, p. 40).

            Duas discussões afloraram em razão desses fatos. A primeira era para saber se a eletividade dos administradores municipais já estava imbricada na previsão de autonomia e, a segunda, se a autonomia municipal era inerente ao sistema federativo. Ambas as interpretações vieram em favor do Estado e em prejuízo dos Municípios. A eletividade restou facultada aos Estados através de lei. Seguindo o mesmo vetor, passou-se a considerar que a autonomia municipal não é inerente ao sistema federal, calcando-se nos exemplos de federações como os Estados Unidos, Suíça, e Argentina (MONTORO, 1975, p. 38-41).

            Para Franco Montoro (1975, p. 38-41),

            do ponto de vista estritamente jurídico, a autonomia dos Estados e dos Municípios deveria ser respeitada. No entanto, o modelo adotado pela Constituição era criação engenhosa de juristas e dos militares, afastados da realidade política e social então existente.

            Segundo o mesmo autor, durante a chamada Primeira República, os Estados e Municípios foram transformados em verdadeiros feudos dos poderosos. "Nessa atmosfera de opressão, as instituições locais não puderam encontrar campo para o seu desenvolvimento." (p. 41)

            Para Victor Nunes Leal (1975, p. 101), "o próprio poder central se consolidou através de um sistema de concentração do poder provincial", processando-se através do enfraquecimento do Município.

            Em razão desse grande poder adquirido pelos Governadores de Estados, instalou-se a "política dos governadores", notadamente porque a eleição não se dava mais por simples indicação do poder central como no Império. Criou-se, assim, o que Victor Nunes Leal (1975, p. 101) chamou de "um sistema de compromissos". Vale transcrever a explicação de Leal:

            Assim como nas relações estaduais-federais imperava a ´´política dos governadores´´, também nas relações estaduais-municipais imperava a ´´política dos coronéis´´. Através do compromisso típico do sistema, os chefes locais prestigiavam a política eleitoral dos governadores e deles recebiam o necessário apoio para a montagem das oligarquias municipais. Para que aos governadores, e não aos ´´coronéis´´, tocasse a posição mais vantajosa nessa troca de serviços, o meio técnico-jurídico mais adequado foi justamente as limitações à autonomia das comunas.

            Assim se vê como os nossos juristas-idealistas, que pretendiam limitar o poder dos municípios para impedir as oligarquias locais, acabaram dando aos governadores os meios de que se serviram eles para montar, em seu proveito, essas mesmas oligarquias locais, fundando, assim, as oligarquias estaduais que davam lugar, por sua vez, a esta outra forma de entendimento – entre os Estados e a União–, que se conhece em nossa história por ´´política dos governadores´´.

            Os governadores "conquistavam" o apoio político dos coronéis (6) através de nomeações, favores, empréstimos, obras públicas e outras formas. Mas, quando isso não era suficiente, um destacamento policial se encarregava de realizar o convencimento do líder recalcitrante, sob pena de o Estado colaborar com "outra corrente política municipal" (LEAL, 1975, p. 103). Obviamente, esses atos estavam impregnados de violência.

            Assim, a sistemática da recém-criada República Federal proporcionou o fortalecimento das oligarquias estaduais, através da troca de apoio aos chefes locais (coronéis) e em prejuízo das comunidades municipais.

            Nesse passo, os Municípios seguiram com prefeitos eleitos ou nomeados na forma disposta pela legislação Estadual. Afirma Hely Lopes (1996, p. 37) que "as eleições eram de antemão preparadas, arranjadas, falseadas ao desejo do ´´coronel´´. [...] E, nessa atmosfera de opressão, ignorância e mandonismo, o Município viveu quatro décadas, sem recurso, sem liberdade, sem progresso, sem autonomia."

            Victor Nunes Leal (1975, p. 30-36) retratou essa política municipalista vivenciada até 1946 com as seguintes palavras: "da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições federais e estaduais; da parte da situação estadual, carta branca ao chefe local governista em todos os assuntos relativos ao Município."

            Embora, em 1926, houvesse uma reforma constitucional, tendo a autonomia municipal sido elevada à categoria de princípio constitucional, a alteração foi insensível no plano fático.


7. O Município na Constituição de 1934

            Em razão da revolução de 1930 e a queda dos homens da Velha República, a corrente social-democrática influenciou sensivelmente a elaboração da Constituição de 1934. Esse período foi um Renascimento ao Municipalismo (MEIRELLES, 1996, p. 38).

            No período entre 1930 e 1934, foram criados Conselhos Municipais que analisavam as contas das administrações e opinavam sobre a conveniência de empréstimos externos. Essas novas exigências obrigaram os Municípios: a) à prestação periódica de contas; b) ao desenvolvimento de técnicas de contabilidade pública; e c) à elaboração de orçamentos municipais.

            Diante dessas obrigações,

            manifestou-se, de forma bastante clara, a necessidade de serem previstos maiores recursos para os Municípios, o que veio a ser reconhecido pela Constituição de 1934, e a necessidade de serem estabelecidos mecanismos de fiscalização financeira das administrações locais. (MONTORO, 1975, p. 47).

            Hely Lopes corrobora este pensamento, asseverando o seguinte: mais do que a necessidade de um governo próprio, o ente local carecia "de rendas próprias, que assegurassem a realização de seus serviços públicos e possibilitassem o progresso material do Município." (MEIRELLES, 1996, p. 38).

            O constituinte de 1934 consignou, enfim, de forma mais clara, os parâmetros da autonomia municipal. Além disso, constou expressamente no texto constitucional a eletividade de prefeitos e vereadores, podendo aqueles serem eleitos por estes. Ao Município foi, atribuída renda própria, podendo ele decretar os "seus impostos e taxas, e a arrecadação e aplicação de suas rendas" bem como "a organização de serviços de sua competência." (7)

            Hely Lopes (1986, p. 38) afirma que: "Pela primeira vez uma Constituição descia a tais minúcias, para resguardar um princípio tão decantado na teoria quanto esquecido na prática dos governos anteriores". Para José Nilo de Castro (1998, p. 41), a Constituição de 1934 "foi inovadora na organização municipal, pois propiciou o afastamento do mandonismo político dos Estados que, no regime anterior, pelas Constituições e por suas Leis de Organização Municipal, oprimiam os Municípios".

            Foi impossível aferir os resultados práticos de tais alterações, haja vista que a Carta de 1934 durou pouco mais de três anos, quando foi revogada pela Carta promulgada por Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937.


8. O Município na Constituição de 1937

            Com o Estado Novo, criado pelo golpe ditatorial de 1937, caracterizado por Hely Lopes (1996, p. 38) como um "misto de corporativismo e socialismo, temperado com algumas franquias democráticas", as previsões constitucionais não passaram de letra morta, sujeitas aos desmandos do poder central, consoante assinalado pelo próprio Getúlio Vargas:

            Por outro lado, as novas formações partidárias, surgidas em todo o mundo, por sua própria natureza refratária aos processos democráticos, oferecem perigo imediato para as instituições, exigindo, de maneira urgente e proporcional à virulência dos antagonismos, o reforço do poder central. (apud SILVA, 1991, p. 74)

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            A Constituição de 1937 manteve a discriminação das rendas municipais, subtraindo o Imposto Cedular sobre a renda dos imóveis rurais. (8)

            A autonomia dos municípios foi gravemente afetada nesse período. Os Prefeitos passaram a ser nomeados pelos Governadores dos Estados (Interventores Federais) (9) e a previsão de eleição para Vereador apenas ilustrou o texto constitucional que nunca foi obedecido. (10) Acima do Prefeito, estava ainda o Conselho Administrativo Estadual, órgão controlador das atividades municipais.

            As Câmaras Municipais perderam completamente sua função democrática, visto que todo o poder decisório estava atrelado unicamente ao Prefeito. Para Hely Lopes Meirelles: "Pode-se afirmar, sem vislumbre de erro, que, no regime de 1937, as Municipalidades foram menos autônomas que sob o centralismo imperial." (1996, p. 39). O autor municipalista afirma isso, porque, na Monarquia, as Câmaras deliberavam as necessidades locais, levando os pedidos aos Presidentes de Província, enquanto no regime em comento, o Prefeito agia discricionariamente, sem qualquer colaboração.

            Montoro (1975, p. 53) lembra de uma previsão constitucional de 1937 que nunca foi posta em prática: "As Câmaras Municipais, formadas por Vereadores eleitos diretamente pela população, participariam do processo de escolha dos membros da Câmara dos Deputados". Os vereadores participariam, também, do colégio eleitoral do Presidente da República, conforme o artigo 82 da Constituição de 1937. Todavia, tais disposições nunca foram aplicadas.

            José Afonso da Silva (1991, p. 74) descreve que:

            A Carta de 1937 não teve, porém, aplicação regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram letra morta. Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava, como órgão do Executivo.

            Assim, a autonomia municipal também foi vítima do autoritarismo e da centralização impostos na era Vargas. A não observância dos preceitos legais conquistados pela movimentação social prejudicaram o ente municipal e, via de conseqüência, os cidadãos, conforme se infere ter ocorrido na ditadura.


9. O Município na Constituição de 1946

            Em 1945, as Forças Armadas depuseram o Governo Ditatorial, renascendo o movimento democrático, que culminou com a Constituição de 18 de setembro de 1946. Para Celso Ribeiro Bastos (1993, p. 217) "o período róseo do municipalismo brasileiro é vivido por ocasião do Texto Constitucional de 1946." O mesmo autor noticia que nessa Constituinte, a corrente municipalista foi forte, revivescendo o tradicional conceito de peculiar interesse.

            O peculiar interesse municipal, por força de uma interpretação jurisprudencial encampada na década de 30, deixa de ser a expressão de uma idéia vaga e imprecisa, para significar tudo aquilo que fosse de interesse predominante do município.

            Além de manter o critério distributivo da renda pública, através da identificação dos tributos na Constituição, houve também repartição de competência entre a União, os Estados e os Municípios, "de modo a não comprometer a Federação, nem ferir a autonomia estadual e municipal", na opinião de Hely Lopes Meirelles (1996, p. 39). No tocante ainda às receitas públicas, destaca-se, também, que o Município, pela primeira vez, passou a ter – além dos tributos a ele atribuídos – participação na arrecadação da União e dos Estados. (11)

            Para Hely Lopes Meirelles (1996, p. 39), essa Constituição estabeleceu simetria entre o governo municipal e as demais esferas, dispondo um novo sistema político municipal, integrado agora por Poderes Executivo e Legislativo. Segundo o mesmo autor, na Constituição de 1946, a autonomia política, administrativa e financeira foi assegurada

            pela eleição do prefeito e dos vereadores (art. 28, I); pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar interesse e especialmente à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e à aplicação de suas rendas, bem como à organização dos serviços públicos locais (art. 28, II).

            Outra grande conquista do Município, na Constituição de 1946, foi a possibilidade de se invocar o Supremo Tribunal Federal, caso as Leis Estaduais ferissem a autonomia municipal. A argüição de inconstitucionalidade das Leis Estaduais dava-se por representação do Procurador-Geral da República, (12) e, caso fosse julgada procedente, era decretada a intervenção.

            O princípio era o da não intervenção, conforme consagrado pelo artigo 7º da Carta Magna, mas, entre as exceções previstas, estava a de intervir nos Estados para preservar a autonomia municipal (inciso VII, alínea e).

            Para Raul Machado Horta (1982, p. 113), a Constituição de 1946 possibilitou que o Supremo Tribunal Federal também se manifestasse sobre a autonomia municipal. O autor cita três exemplos de representação, nas quais o Supremo fundamentou a inconstitucionalidade de dispositivos de Constituições Estaduais por violação da autonomia municipal.

            Declarou a inconstitucionalidade dos artigos 34 e 104 da Constituição do Estado do Ceará, na Representação n.º 295. "No artigo 34, a Constituição autorizava suspender a execução das leis, posturas e atos da administração municipal." (HORTA, 1982, p. 114). Já o artigo 104 atribuía à Assembléia Legislativa competência para anular leis, resoluções e atos municipais, nos casos que indicava.

            Na Representação n.º 314, o Supremo declarou a inconstitucionalidade do artigo 104 da Constituição do Rio de Janeiro, cujo teor era o mesmo do artigo 104 da Constituição do Ceará.

            No terceiro caso, o artigo 91 da Constituição do Estado de Minas Gerais foi declarado inconstitucional através da representação n.º 350, pois que previa "recurso, com efeito suspensivo, para o Tribunal de Contas ou a Assembléia Legislativa, de decisão da Câmara Municipal que impusesse a perda do cargo ao Prefeito." (HORTA, 1982, p. 114).

            Em 1964, a revolução armada lançou por terra grande parte dessas conquistas municipais. As ditaduras sempre tiveram como destaque a centralização do poder e, conseqüentemente, o enfraquecimento dos poderes locais.

            Primeiro foi "a criação de municípios tidos por relevantes para a segurança nacional e a proliferação daqueles considerados estâncias hidrominerais", como artifícios – segundo Celso Bastos – para infirmar a locução peculiar interesse, visto que os interesses passavam a ser nacionais e não mais locais, sonegando assim a autonomia aos Municípios. (1993, p. 217)

            Posteriormente, o governo central retirou dos Municípios os meios financeiros de que dispunham. Através da Emenda Constitucional n.º 18, de 1.12.1965, foi revogado o artigo 29 da Constituição de 1946, o qual previa a participação dos Municípios na receita Estadual e da União. Informa Celso Ribeiro Bastos que "do total da arrecadação tributária brasileira, apenas 7% era atribuído ao Município. Mais de 60% destinava-se aos cofres da União" (BASTOS, 1993, p. 217).

            Assim, a expectativa em torno da municipalização ficou afetada pelo total desrespeito às normas constitucionais, bem como pela facilidade com que as vantagens eram oferecidas e seguidamente retiradas das comunidades locais.

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Sobre o autor
Cristhian Magnus De Marco

Advogado, Coordenador do Curso de Direito da UNOESC – Joaçaba e professor de Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCO, Cristhian Magnus. Evolução constitucional do município brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 693, 29 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6798. Acesso em: 21 nov. 2024.

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