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Evolução constitucional do município brasileiro

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29/05/2005 às 00:00
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10. O Município na Constituição de 1967

            Eugênio Franco Montoro (1975, p. 67-70) registrou alguns fatos que antecederam a Constituição de 1967. Dentre eles, a formação de uma comissão de juristas integrada por Levi Carneiro, Orozimbo Nonato, Seabra Fagundes e Themistocles Cavalcanti, a qual ficou encarregada de elaborar um anteprojeto de Constituição. O trabalho gerou forte polêmica, razão por que o Governo acabou por apresentar ao Congresso outro projeto, muito diferente daquele elaborado pelos juristas. Levi Carneiro, em pronunciamento ao Congresso Nacional, declarou que o trabalho foi praticamente inútil. (ANAIS, da Constituição de 1967 apud MONTORO, 1975, p.69)

            Todas as conquistas até então alcançadas pelos Municípios estavam sucumbindo. Para Diogo Lordello de Mello (ANAIS, da Constituição de 1967 apud MONTORO, 1975, p.78), a "autonomia municipal e a federação entraram em grave crise com o esquema centralizador da nova Constituição".

            No projeto apresentado pelo governo, os Municípios passavam a ser meras entidades administrativas dos Estados. Entretanto, estranhamente, o projeto mantinha a intervenção federal, caso fosse desrespeitada a autonomia municipal.

            Na opinião de Raul Machado Horta (1982, p. 114), a Constituição de 1967 trouxe duas inovações à concepção de Município: "A primeira, de natureza puramente formal", criando um capítulo destinado às competências dos Estados e dos Municípios (capítulo III). Horta considerou esta inovação apenas formal por dois motivos: por não ter inserido expressamente o Município na Federação brasileira em seu artigo 1º; (13) e, porque não houve distribuição de competências entre as esferas governamentais. Machado Horta já reivindicava, portanto, nessa época, a inserção constitucional do Município como ente da federação. A segunda inovação apontada por Horta (1982, p. 115) foi a dilatação das matérias de interesse municipal reguladas diretamente pelo Governo Federal, em detrimento da autonomia dos Estados-membros.

            Exemplo disso foi a implantação de exigências para a criação de novos Municípios, conforme critérios definidos em Lei Complementar Federal (apud JACQUES, 1970, p. 153):

            população superior a 10.000 habitantes e não inferior a cinco milésimos da população do Estado; b) eleitorado mínimo de 10% da população; c) centro urbano já constituído com um mínimo de 200 casas; d) uma arrecadação no último exercício correspondente, pelo menos, a cinco milésimos da receita estadual de impostos; e) plebiscito para consulta à população da área territorial interessada (arts. 2º e 3º da Lei Complementar n.º 1).

            A inovação representou uma perda aos Estados-membros, uma vez que, até então, essa competência de regular a criação de Municípios lhes dizia respeito. Mais uma vez, o poder central se fortalecia.

            A CF/67 criou mais uma possibilidade de intervenção da União nos Estados-membros, esta para garantir que as quotas tributárias fossem realmente entregues aos Municípios. (14) Previu, ainda, mais uma hipótese de intervenção dos Estados-membros nos Municípios: "quando a administração municipal não prestar contas a que esteja obrigada na forma da lei estadual", (15) o que foi uma evolução à moralidade.

            Tornou obrigatória a nomeação dos prefeitos das capitais e das estâncias hidrominerais pelo Governador do Estado, o que, pela Carta de 1946 era facultativo. Além disso, permaneceu a nomeação dos Prefeitos dos Municípios declarados de interesse da segurança nacional, cujos nomes deveriam ser – antes de efetivamente nomeados pelo Governador de Estado – aprovados pelo Presidente da República.

            Outro fato a ser destacado é que, a partir da Carta de 1967, as Constituições Federais passaram a prever o número de vereadores aos Municípios. Nesta, o número foi fixado em vinte e um.

            Em 13/12/1968, o Ato Institucional n.º 5 (AI-5) modificou substancialmente a Lei Fundamental, prejudicando a aplicação do texto básico. Iris Eliete Teixeira Neves de Pinho Tavares (1997, p. 179) relata que o AI-5

            ... no seu art. 2º, estabelece, para o Presidente da República, o poder de decretar o recesso dos poderes legislativos federal, estaduais e municipais; no art. 3º, autoriza a intervenção, por ordem do Presidente da República, nos Estados e nos Municípios, sem limitações constitucionais; ficam suspensos os direitos políticos (art. 4º), bem como garantias constitucionais e legais (art. 6º).

            Dessarte, os Municípios perderam sua autonomia em tríplice aspecto: político, financeiro e administrativo. Seguiram ao AI-5 diversos outros Atos Institucionais e Complementares modificadores do regime constitucional, afetando muitos deles os Municípios.

            O Ato Institucional n.º 12 afastou o Presidente Costa e Silva, por impossibilidade de governar em razão de enfermidade, atribuindo o Poder Executivo aos Ministros da Marinha, Guerra, Exército e Aeronáutica.


11. O Município na Constituição de 1967 com a Emenda n.º 1/69:

            Menos de dois meses após os Ministros assumirem o poder para completar o governo do Marechal Costa e Silva, foi expedido um novo texto constitucional, denominado Emenda Constititucional n.º 1, promulgado em 17.10.69, entrando em vigor em 30.11.69.

            Embora a opinião não seja unânime, muitos constitucionalistas defendem a posição de que o documento de 1969 não foi meramente uma emenda, mas, tecnicamente, tratou-se de uma nova Constituição que, inclusive, alterou sua denominação. Ao invés de Constituição do Brasil, passou a chamar-se Constituição da República Federativa do Brasil. (SILVA, 1991, p. 78) (16)

            Para Eugênio Franco Montoro (1975, P. 82), "foram pequenas as modificações trazidas pela Emenda Constitucional n.º 1, quanto ao regime municipal, pois, foi praticamente mantido o sistema instituído pela Constituição de 1967". Paulino Jacques (1970, p. 153) assevera que as alterações se deram em apenas dois aspectos: em relação à intervenção nos Municípios e à fiscalização financeira e orçamentária. Mas, foi Raul Machado Horta (1982, p. 115), em 1982, quem identificou com precisão a importância das alterações efetuadas na Carta de 1969. Hoje se pode fazer essa afirmação, devido à confirmação da tendência apresentada pelo autor no texto Constitucional de 1988. Horta diz que a Emenda n.º 1, de 1969

            ... aprofundou o movimento de dilatação da matéria municipal na Constituição Federal. Esse movimento de absorção foi igualmente intenso nas duas direções que ele adotou. A direção no rumo da federalização de temas municipais pela sua retirada da área das Constituições Estaduais, ou dos poderes reservados, e sua conversão em temas da Constituição Federal e da legislação federal, conforme tendência consagrada no texto constitucional originário e já anotada.

            Destarte, as alterações do texto constitucional em 1969 podem ter sido parcas, consoante afirmam os autores antes citados; todavia, significaram a abertura do caminho para a efetivação, pelo menos formal, do Município como ente federado.

            Dentre outros dispositivos de interesse direto dos Municípios, a Constituição de 1969 passou a exigir dos entes locais a aplicação de pelos menos 20% (vinte por cento) da receita tributária municipal no ensino primário. É o início de mais uma tendência que passou a se dilatar, a saber, o controle federal da aplicação dos recursos dos Municípios.

            Foram estabelecidas novas formas para à fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios, através de órgãos competentes de controle interno e externo. Ao controle externo, a Câmara Municipal, auxiliada pelo Tribunal de Contas ou pelo órgão estadual a que fosse atribuída essa competência (17), ao qual passou o dever de emitir parecer anual prévio, sobre as contas municipais. Ao controle interno, o Executivo Municipal.

            Para Raul Machado Horta (1982, p. 114), a Constituição de 1969 equiparou o Município à União, aos Estados e ao Distrito Federal, quando o tornou "destinatário das normas tributárias de vedação". (18) Segundo o mesmo autor, as Constituições anteriores não consignaram explicitamente essa regra, pois que sempre seguiram uma linha federalista que não comportava o Município na repartição federal de competências.

            A Constituição subseqüente à de 1969 é a de 1988. Suas principais características, no que concerne à evolução municipal diante das constituições brasileiras, passarão a ser analisadas abaixo.


12. O Município na Constituição de 1988

            Atendendo à reivindicação de municipalistas como Hely Lopes Meirelles e Diogo Lordello de Melo, na Carta de 1988 o Município passou a integrar o texto constitucional como ente federado (SILVA, 1991, 408). Para Meirelles (1996, p. 42), houve a correção de uma falha das Constituições anteriores, posto que o Município sempre foi "peça essencial da organização político-administrativa brasileira." Porém, para José Afonso da Silva (1991, p. 438) e José Nilo de Castro (1998, p. 53), dentre outros, a participação expressa, no texto constitucional, do Município como ente federado é um equívoco.

            Na Constituição de 1988, houve ampliação da autonomia municipal, outorgando-se aos Municípios o poder de elaborar sua própria Lei Orgânica. (19) Noticia Hely Lopes (1996, p. 42) que, anteriormente ao novo texto, somente o Estado do Rio Grande do Sul fazia essa concessão. Foram proibidas nomeações de Prefeitos para quaisquer Municípios, independentemente de serem considerados área de interesse para a segurança nacional ou estância hidromineral. Agora, também os Prefeitos passaram a ser eleitos pelo voto direto e simultâneo, realizado em todo o país, a exemplo do que já ocorria com os vereadores. (20)

            O Município recebeu algumas competências comuns (art. 23) com a União, os Estados e o Distrito Federal como, por exemplo: zelar pela guarda da Constituição e das instituições democrática; cuidar da saúde e assistência públicas; proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; proteger o meio ambiente, etc; mas, também, conquistou competências privativas (art. 30), dentre elas, a de legislar em assuntos de interesse local, nova redação dada à antiga expressão peculiar interesse.

            A fiscalização do Município continuou a ser exercida internamente pelo Poder Executivo e externamente pela Câmara de Vereadores, auxiliada esta pelo Tribunal de Contas, que emite parecer anual prévio.

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            A receita municipal foi ampliada com a Constituição de 1988. Além dos impostos municipais: predial e territorial urbano; sobre transmissão inter vivos; e o sobre serviços de qualquer natureza, (21) o Município passou a ter participação maior nos impostos federais e estaduais. (22)

            Para José Nilo de Castro (1998, p. 42), o Município alcançou, na Carta de 1988, "a consagração máxima que se podia vislumbrar dentro do contemporâneo municipalismo, para a autonomia municipal e seu regime jurídico-constitucional."

            Assim, verifica-se que o Município recebeu, na Constituição de 1988, maiores poderes políticos e administrativos do que possuía anteriormente.


Considerações finais:

            Diante das considerações acima, podemos inferir alguns aspectos conclusivos, os quais merecem ser ponderados a seguir.

            A autonomia da municipalidade tem recebido, ao longo da história constitucional brasileira, tratamento inconstante. Conforme o poder central muda seus "atores", modificam-se também as estruturas e as autonomias locais. Alguns concedem franquias maiores e outros, menores. Essa constatação leva a concluir que, no Brasil, embora as Constituições e as legislações infraconstitucionais proclamem autonomias e poderes aos entes locais, tais não passam de liberalidades do poder central. Assim, é inegável o predomínio da cultura unitarista brasileira, contrariamente aos postulados da descentralização. O próprio sistema Constitucional de competências de 1988 denuncia esse fato. Praticamente todos os poderes estão nas mãos da União, a despeito da inclusão do Município enquanto ente federado.

            Verificamos, ainda, que os Municípios estão engessados pela Constituição numa organização arcaica e ineficiente, faltando-lhe, principalmente, profissionalismo. A gestão dos negócios comunais não pode ficar ao alvedrio dos interesses do grupo que comanda temporariamente a municipalidade. Esse fato depõe contra o verdadeiro "interesse local".

            A administração municipal perde muito com a atual estrutura de predomínio político (ou seria predomínio "de políticos"?), porque não possibilita aquilo que é o seu grande trunfo: a participação popular. Com ela, evoluiríamos muito em cidadania, em democracia (participativa) e, enfim, em cultura de descentralização.

            Finalizando, podemos afirmar, salvo melhor juízo, o seguinte: para que o poder local se liberte dessa inconstância constitucional, é mister, portanto, o fortalecimento, de fato, de instituições municipalistas verdadeiramente locais. Não de benesses temporárias do poder central, mas sim, de conquistas reais ao exercício efetivo da autonomia.


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Sobre o autor
Cristhian Magnus De Marco

Advogado, Coordenador do Curso de Direito da UNOESC – Joaçaba e professor de Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCO, Cristhian Magnus. Evolução constitucional do município brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 693, 29 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6798. Acesso em: 29 mar. 2024.

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