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A aplicação do processo administrativo disciplinar nas empresas públicas federais

18/06/2005 às 00:00
Leia nesta página:

             Antes de tudo, cumpre esclarecer que o ‘processo administrativo disciplinar’ em causa, não é o definido no Capítulo V da Lei 8.112/90, e muitas vezes referido pela doutrina como PAD. Trabalha-se aqui com a definição de Nelson Nery Costa: Processo Administrativo disciplinar é o conjunto de procedimentos de que a Administração Pública dispõe para apurar e punir as faltas (ilícitos administrativos) cometidas pelos servidores públicos ou pelos demais agentes públicos. Adiante, as razões de tal escolha ficarão explicitadas.

            Não havia até recentemente, no Brasil, literatura técnica especificamente voltada para o esclarecimento da aplicação correta, isto é, em total conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro, do processo administrativo disciplinar nas empresas públicas federais. A natureza jurídica híbrida das citadas empresas (que têm 100% de seu capital pertencente à União, integram a estrutura da Administração Pública Indireta, estão submetidas a regime jurídico administrativo de direito privado, devem se submeter aos ditames do contido no art. 37 da CF/88, mas têm suas relações empregatícias regidas pela CLT, sendo inclusive classificadas como empresas públicas de direito privado), sem qualquer sombra de dúvida, é um fator de complicação que dificulta o entendimento e solução legal do problema, o que acaba atingindo não só o aplicador do direito (inclusive magistrados), mas também os que produzem doutrina, sobretudo a relativa ao Direito Público, de que aqui se trata.

            Como a corroborar o registrado acima, o Professor Geraldo Ataliba, ao prefaciar obra de Carlos Ary Sundfeld, afirma que

            "a maioria dos bacharéis [em direito] atuantes vê o mundo pela ótica do direito civil e é levada a assim modelar suas próprias funções e as dos demais. Daí que os programas de concursos públicos para cargos jurídicos tenham escandalosa predominância de matérias privatistas, o que incentiva estes estudos, com prejuízo do direito público. Conseqüência é o desconhecimento, e decorrente desprestígio, do direito constitucional e demais setores publicísticos que, ou são ignorados, ou tratados com técnicas, princípios, espírito e perspectiva privatísticas pelos aplicadores, inclusive judiciais.

            Não é de estranhar, nesse clima, os avanços do totalitarismo: má legislação, escassa literatura e deficiente jurisprudência de direito público, com conseqüente insegurança do administrado diante do Estado, e dificuldade na evitação de casuísmos, arbítrios, omissões e abusos dos agentes públicos diante de uma cidadania inerme e indefesa, como que desarmada pela ignorância dos operadores jurídicos."

            Assim, no espaço deste artigo, ainda que reduzido, buscar-se-á demonstrar como deve ocorrer, na forma já referida, a aplicação do processo administrativo disciplinar nas empresas públicas federais. Estudo e demonstração mais completos podem ser encontrados em nosso livro sobre o assunto, recentemente lançado em Brasília.

            Consoante recomenda a melhor doutrina, a maioria das regras do processo administrativo disciplinar para aplicação no âmbito de empresa pública federal deve ser buscada no Direito Administrativo, sub-ramo do Direito Público, valendo notar, no entanto, que algumas regras (penalidades disciplinares aplicáveis, por exemplo) provêm do Direito do Trabalho, dado que a relação empregatícia nas empresas públicas federais é regida pela CLT.

            As afirmações acima parecem óbvias, mas há quem tenta utilizar (por maldade contra o empregado público ou por ignorância pura) o Direito Civil e o Código de Processo Civil para tal aplicação. Senão, vejamos um exemplo: em determinada empresa pública federal o seu documento interno norteador de apurações de irregularidades, de cunho disciplinar, traz como prazo para a defesa escrita, após "notificação para defesa" do empregado (na verdade, após a citação), cinco dias úteis. E os "fazedores" de tal documento, "explicam" que tal prazo tem base no CPC. O correto, é claro, a partir de uma interpretação lógico-sistemática (portanto, para quem vê o Direito como um Sistema), é entender que o prazo para a defesa escrita deve ser de 10 dias corridos, considerando-se o contido no § 1º, do art. 161, da Lei 8.112/90 e o contido no Capítulo XVI da Lei Geral de Processo Administrativo, a Lei 9.784/99, além, naturalmente, do contido no art. 4º da LICC e no art. 8º da CLT, relativamente às aplicações analógicas necessárias.

            Não pode, pois, o operador do Direito, ao seu alvitre, produzir e/ou aplicar as regras que bem entender, do jeito que bem entender. Há, para tanto, que respeitar as determinações do Ordenamento Jurídico em que está inserido. Do contrário, o próprio Ordenamento seria dispensável!

            Os empregados públicos das empresas públicas federais (CONAB, EMBRAPA, FINEP, ECT, INFRAERO, BNDES, CEF, SERPRO, CASA DA MOEDA DO BRASIL, CODEVASF, CODEBAR, CPRM, CBEE, DATAPREV, entre outras), diferentemente dos servidores da Administração Pública Direta, não dispõem de um estatuto disciplinar, tal qual o contido na Lei 8.112/90. Assim, as empresas públicas federais podem e devem produzir seus documentos internos, norteadores de suas apurações de irregularidades de cunho disciplinar. Mas tal produção, é óbvio, tem que se subordinar aos mandamentos do ordenamento jurídico vigente. Em outras palavras: os produtores de tais documentos não podem ignorar que as empresas públicas federais são públicas (!), apesar de submetidas a regime jurídico administrativo privado. Da mesma forma que as empresas públicas federais não se despem de seus privilégios, quando empregam modelos privatísticos, elas também não podem ignorar os influxos que recebem do Direito Público, justamente por serem ‘públicas’, quando aplicam o processo administrativo disciplinar para apurar ilícitos administrativos presumidamente cometidos por seus empregados.

            Deixe-se muito claro, então: o processo administrativo disciplinar aqui referido é instituto de Direito Público e, portanto, as suas regras devem ser buscadas, primordialmente, nos ramos desse direito. Com isto não se quer dizer que tal processo é infenso às regras oriundas do Direito Civil, do Direito do Trabalho etc., mas desses ramos do Direito recebe influxos de forma indireta, subsidiária, conforme manda o ordenamento jurídico nacional. Por isso não é correto resolver questões legais eventualmente surgidas no bojo do instituto em causa, utilizando-se de princípios, leis etc., de ramos do Direito Privado, antes de esgotadas as possibilidades de solução no âmbito do Direito Público.

            As empresas privadas estão autorizadas pelo art. 2º da CLT a dirigir o empregado (pois têm sobre ele poder de comando) e, assim, a estabelecer normas disciplinares em seu âmbito. O mesmo ocorre com as empresas públicas federais, pois também têm suas relações trabalhistas regidas pela CLT, mas, diferentemente das empresas privadas, as públicas sofrem as limitações do princípio da legalidade estrita, que só permite a elas agirem estritamente de acordo com a legalidade. E é óbvio que esta legalidade inclui o respeito ao Direito, não apenas à lei.

            Então, uma empresa privada pode se quiser, aproveitar regras oriundas do Direito Público, para nortear apurações de irregularidades eventualmente cometidas por seus empregados, mas não está obrigada a fazê-lo. Já a empresa pública não poderá ignorá-las, pois a observância do comando legal é compulsória, obrigatória, independentemente da vontade dos administradores públicos (dirigentes).

            Nota-se, pois, que é a ação sindicante na esfera privada que guarda analogia com a mesma ação na esfera pública e não o contrário.

            A norma de Direito Público sempre impõe desvios ao direito comum, para permitir às empresas públicas federais, quando dele se utilizam, alcançarem os fins que o Ordenamento Jurídico lhes atribui e, ao mesmo tempo, preservarem os direitos dos administrados, criando limitações à atuação do Poder Público. Isso ocorre no tocante ao Direito Processual Disciplinar e, por conseguinte, no processo administrativo disciplinar aplicado às ditas empresas. Tanto é assim, que se aponta a necessidade de submissão das empresas públicas federais aos ditames do disposto no art. 37 da CF/88.

            Então, caro leitor, querer um dirigente público resolver eventuais questões legais relativas ao processo administrativo disciplinar nas empresas públicas (embora submetidas a regime jurídico administrativo privado) utilizando-se diretamente do Direito Privado, sem antes esgotar as possibilidades no Direito Público, pode indicar má-fé, ignorância etc., que, infelizmente, pode também ferir de morte a lógica jurídica e aviltar os direitos do administrado.

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A SINDICÂNCIA DISCIPLINAR COMO PROCESSO DISCIPLINAR, NAS EMPRESAS PÚBLICAS FEDERAIS

            Conforme já dito, as empresas públicas federais não têm lei específica para nortear suas apurações de irregularidades de cunho disciplinar. Elas produzem suas próprias regras internas, e se valem da sindicância, com caráter punitivo mais amplo (não devendo ser confundida com a ‘sindicância preparatória’ da Lei 8.112/90), e devido mesmo a esta maior amplidão, denominada sindicância disciplinar.

            Define-se a sindicância disciplinar aqui como sendo um processo administrativo propriamente dito e este, segundo Meirelles, é "[aquele que encerra] um litígio entre a Administração [Pública] e o administrado". Ver-se-á, à frente, que a partir desta definição, é possível considerar a sindicância disciplinar como uma espécie do gênero processo administrativo disciplinar.

            Tomando emprestado à Biologia o seu esquema taxonômico, pode-se dizer que a sindicância disciplinar é espécie da ordem Processo, da família Processo Administrativo e do gênero Processo Administrativo Disciplinar. A sindicância disciplinar utilizada nas empresas públicas federais, pois, é um processo administrativo propriamente dito, dado que encerra um litígio entre a Administração e o administrado (empregado). Então, antes de tudo, ela é um processo (vide quadro). Estudada no âmbito das entidades públicas (ainda que regidas pela CLT), onde é aplicada com fins disciplinares, sem qualquer sombra de dúvida, é espécie de processo administrativo disciplinar.

            Ordem

            Família

            Gênero

            Espécie

            Processo – Conjunto de atos coordenados para obtenção de decisão sobre uma controvérsia no âmbito judicial ou administrativo.

            Processo Judicial

            Processo Administrativo

            Processo Penal

            Processo Civil

            Processo Trabalhista

            Processo Adm. Disciplinar

            PAD da Lei 8.112/90 – Órgãos públicos

            (Adm. Direta)

            Sindicância disciplinar - Empresas Públicas (Adm. Indireta)

            Observe-se que da sindicância disciplinar praticada nas empresas públicas federais pode resultar qualquer das penas relacionadas no art. 482 da CLT, como a demissão por justa causa (a pena mais grave), inclusive. O mesmo não ocorre com a sindicância referida no art. 143 da Lei 8.112/90. Aqui a sindicância se presta tão somente para apurar irregularidades cuja penalidade seja a advertência ou suspensão de até 30 dias.

            Já o processo administrativo disciplinar referido também no art. 143 da Lei 8.112/90 se destina a apurar irregularidades puníveis com as demais penas citadas no art. 127 do mesmo diploma legal (demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, destituição de cargo em comissão e destituição de função comissionada). Ou seja, as penas mais graves – a mais grave delas, inclusive, a demissão – só podem ser aplicadas por meio do processo administrativo disciplinar, não da sindicância no caso da Lei 8.112/90.

            Esse é, pois, um ponto de contato entre a sindicância disciplinar praticada nas empresas públicas federais e o processo administrativo disciplinar referido na Lei 8.112/90: ambos se prestam a apurar irregularidades graves. Mas é preciso ter sempre em mente que são institutos diversos, bastando mencionar que o processo administrativo disciplinar da Lei 8.112/90 não recebe influxos da CLT tal qual recebe a sindicância disciplinar praticada nas empresas públicas federais.

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Sobre o autor
Mário Franzon Filho

empregado público e advogado em Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANZON FILHO, Mário. A aplicação do processo administrativo disciplinar nas empresas públicas federais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 713, 18 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6807. Acesso em: 24 abr. 2024.

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