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A ação civil pública e a tutela dos interesses individuais homogêneos dos trabalhadores em condições de escravidão

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01/06/2005 às 00:00
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O reconhecimento da legitimação do Ministério Público do Trabalho também para a defesa dos interesses individuais homogêneos trabalhistas não seria uma forma de democratizar o acesso dos trabalhadores à Justiça?

Sumário:1. Introdução. 2. Teoria Restritiva. 3. Teoria eclética. 4. Teoria ampliativa. 5. A Nossa Posição. 6. A Teoria Ampliativa e a Função Social do Processo do Trabalho. 7. A Posição do STF. 8. Os Direitos Trabalhistas são Direitos Humanos de Segunda Dimensão. 9. A ACP e o Trabalho Escravo. 10. Conclusão. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO

Segundo Norberto Bobbio, [01] toda teoria jurídica pode ser considerada desde o ponto de vista do seu significado ideológico ou a partir do ponto de vista do seu valor científico. Quanto ao valor científico, a teoria jurídica tem por fim compreender certa realidade e explicá-la. No respeitante à teoria considerada do ponto de vista ideológico, ela tende a afirmar certos valores ideais e a promover certas ações.

Não obstante a literalidade do art. 129, III, da CF, ainda existem barreiras técnicas e ideológicas [02] que dificultam a atuação do Ministério Público do Trabalho em defesa dos interesses difusos (e até mesmo coletivos).

Os obstáculos tornam-se ainda mais complexos quando se trata da questão da legitimação do Parquet Laboral para promover a ação civil pública em defesa dos interesses individuais homogêneos.

Realmente, os direitos ou interesses individuais homogêneos, além de não estarem expressamente mencionados no art. 129, III, da CF, também não constam literalmente do art. 83, inciso III, da LOMPU.

Daí a existência de três teorias que procuram, ora com base na ideologia, ora nos métodos da ciência do direito, responder às seguintes perguntas: o Ministério Público possui legitimidade para promover ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos? E o Ministério Público do Trabalho?

A resposta a tais perguntas ganha principal relevo quando se está diante de uma das mais graves situações de desrespeito à dignidade da pessoa humana: o trabalho em condições de escravidão.


2. TEORIA RESTRITIVA

Como o próprio nome indica, a teoria restritiva reduz a legitimação do MP à defesa exclusiva dos interesses difusos e coletivos, sendo certo que, nos domínios do direito processual do trabalho, há, ainda, alguns autores que restringem ainda mais tal legitimação aos interesses coletivos stricto sensu, assim mesmo, somente quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente assegurados aos trabalhadores.

Dito de outro modo, a teoria restritiva não admite, em nenhuma hipótese, que os direitos ou interesses individuais, ainda que homogêneos, possam ser objeto de defesa em sede de ação civil pública (ou ação coletiva) promovida pelo Ministério Público.

Os adeptos dessa corrente, portanto, utilizam exclusivamente a interpretação literal e restritiva do art. 129, inciso III, da CF, e do art. 1º, inciso IV, no âmbito do processo civil, ou do art. 83, inciso III, da LOMPU, nos domínios do processo do trabalho.

Expõe a teoria restritiva, em linhas gerais, que o MP não tem legitimação para promover a ACP na defesa de direitos ou interesses individuais homogêneos, porque:

a)são inconstitucionais as normas legais que alargam a legitimação ministerial na ACP para além dos interesses difusos e coletivos;

b)os interesses individuais homogêneos, por serem disponíveis, estão excluídos das funções institucionais do MP;

c)as relações trabalhistas não são relações de consumo, pelo que inaplicável o CDC na ação civil pública promovida pelo MPT;

d)o art. 83, III, da LOMPU só permite a legitimação do MPT para a defesa dos interesses coletivos, e não dos individuais homogêneos e difusos.

Há algumas considerações, não mencionadas pelos defensores da teoria em estudo, que julgamos imprescindíveis à adequada compreensão do problema, especialmente em se tratando de ação civil pública promovida pelo MPT.

A primeira delas é a de que quando da promulgação da CF, em 5 de outubro de 1988, não estava positivada em nosso ordenamento jurídico a expressão "interesses individuais homogêneos", o que somente se deu com o advento da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, que instituiu o CDC (art. 81, III). Dessa forma, não se poderia esperar que o legislador constituinte tivesse empregado um termo, à época cogitado apenas timidamente por alguns estudiosos da class action for damages do direito estadunidense, que somente veio a ingressar no nosso sistema cerca de dois anos mais tarde. [03]

Eis aí a razão ontológica que pode ser extraída da mens legis contida na norma de encerramento do art. 129, III, da CF, que serve de fio condutor à inteligência da expressão "e de outros interesses difusos e coletivos".

Desse modo, a norma constitucional comporta interpretação extensiva: [04]

a)no plano subjetivo, a fim de que outras espécies de interesses ou direitos metaindividuais, além dos explicitamente proclamados, possam ser tutelados pelo MP, como por exemplo, os interesses difusos e coletivos dos trabalhadores, dos consumidores, das minorias sociais, dos excluídos, dos portadores de deficiência, das crianças e adolescentes, dos idosos etc.;

b)no plano objetivo, para permitir a criação, pelo legislador infraconstitucional, de novas espécies de interesses metaindividuais, como, por exemplo, os interesses individuais homogêneos.

A segunda decorre do fato de que uma das funções institucionais do MP repousa na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, tal como desenhado no art. 127 da CF.

Ora, a interpretação sistemática dos arts. 129, III, e 127 da CF, segundo nos parece, permite que a legitimação do Ministério Público na ação civil pública seja estendida à defesa não apenas dos interesses sociais, mas, igualmente, dos interesses individuais indisponíveis que tenham características metaindividuais ou "acidentalmente coletivos", [05] como é caso dos interesses ou direitos individuais homogêneos indisponíveis.

Outra observação importante é a de que o artigo 129, III, da CF reafirma que uma das funções institucionais do MP é a defesa do patrimônio social, abrindo aqui espaço para a construção teórica de que este conceito abriga tanto os interesses sociais quanto os individuais homogêneos indisponíveis. [06]

Por outro lado, o inciso IX do art. 129 da CF vaticina que o MP poderá exercer outras funções que lhe forem conferidas (por lei, acrescentamos), desde que compatíveis com sua finalidade.

Nesse passo, prescreve o art. 21 da LACP, com a nova redação dada pelo artigo 117 do CDC, que são aplicáveis à defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III do CDC, entre os quais se destaca o art. 92, que prevê, literalmente, a legitimação do MP para propor ações coletivas em defesa de direitos individuais homogêneos. [07]

No que concerne à afirmação genérica de que os interesses individuais homogêneos são sempre disponíveis, afigura-se-nos residir aqui um grande equívoco, data maxima venia.

É que, a rigor, existem duas subespécies de direitos ou interesses individuais homogêneos: os indisponíveis e os disponíveis. Tal constatação, segundo nos parece, é condição suficiente para demonstrar a inconsistência científica desta teoria, no particular.

No que tange especificamente à legitimação do MPT na ACP trabalhista, parece-nos igualmente frágil a alegação de que os direitos ou interesses individuais homogêneos trabalhistas nela veiculados, por não derivarem das relações de consumo, não poderiam ser objeto de regulação pelo CDC, com o que não poderia o Parquet Laboral utilizar as disposições desse Código nas ações civis públicas por ele propostas no âmbito da Justiça do Trabalho. Neste ponto, os defensores da teoria restritiva confundem normas de direito material com as de direito processual. A par disso, ignoram o que dispõe textualmente o art. 21 da LACP.

Ora, as relações materiais de consumo são reguladas pelo CDC e as relações materiais trabalhistas pela CLT e legislação especial que lhe complementa.

Todavia, a parte processual do CDC (Título III) e a LACP (art. 21) formam, com base nos princípios constitucionais da indeclinabilidade da jurisdição e do due process of law, um sistema integrado, por nós denominado de jurisdição trabalhista metaindividual [08], que é, de lege lata, a única capaz de propiciar a adequada e efetiva tutela judicial dos interesses metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos) decorrentes das relações de emprego e, na forma da lei, de outras relações de trabalho, desde que submetidos à competência da Justiça do Trabalho (CF, art. 114).

Um outro óbice invocado pela teoria restritiva reside na literalidade do art. 83, III, da LOMPU que, de fato, só faz referência aos interesses coletivos, silenciando-se não apenas quanto aos individuais homogêneos, mas, igualmente, quanto aos difusos.

No que respeita aos interesses difusos, o dispositivo ora focalizado deve ser interpretado conforme a Constituição (art. 129, III), que prevê a legitimação ministerial (seja no âmbito da União, seja no âmbito dos Estados) para proteger quaisquer espécies de interesses difusos.

Além disso, a interpretação isolada do art. 83, III, da LOMPU levaria a uma inexplicável capitis diminutio do MPT em relação aos demais órgãos que compõem a instituição ministerial como um todo, em detrimento, aliás, dos princípios da unidade e indivisibilidade (CF, art. 127, § 1º), uma vez que tanto a CF (arts. 127, 128, 129, III e IX) quanto a LOMPU (art. 6º, VII, d) e a LONMP (art. 25, IV, a) não fazem qualquer distinção a tal respeito.

Não se pode perder de vista, outrossim, que a norma de encerramento contida na parte final do art. 129, III, da CF, confere ao MP, sem distinção entre os seus órgãos, a legitimação para a defesa de "outros interesses difusos e coletivos".

Sabe-se que a Constituição "resulta do poder constituinte originário, tido como poder político fundamental", [09] mas, não obstante esse seu caráter político, "materializa a tentativa de conversão do poder político em poder jurídico" [10], o que implica dizer que ela também deve ser interpretada como genuína norma jurídica. [11] Disso resulta que é possível a interpretação extensiva ou ampliativa da norma constitucional em causa, na medida em que os interesses individuais homogêneos – disponíveis ou indisponíveis – são acidentalmente coletivos, [12] o que, por certo, já seria condição suficiente para validar a legitimação do MP quando promove a ACP em defesa dos mesmos.

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É insubsistente, de igual modo, a alegação de que o que a Constituição não permite expressamente proibido está. Tal critério, como já foi visto, é fruto de uma concepção individualista, calcada no formalismo jurídico preconizado pelo Estado Liberal, que só admitia a existência dicotômica direito público-direito privado.

Em tema de direitos ou interesses metaindividuais rompe-se definitivamente com tal concepção, na medida em que o Estado Social brasileiro passa não apenas a prescrever, mas também a tutelar também esses "novos direitos" que, seguramente, não se enquadram no direito público, tampouco no privado, constituindo, ao revés, categoria própria: a dos direitos humanos de terceira dimensão.

Tornam-se, de tal arte, infundadas as alegações de inconstitucionalidade das normas legais que ampliam a legitimação ministerial para tutelar interesses individuais homogêneos. Pelo contrário, mostra-se em conformidade com o Texto Maior interpretar extensivamente a expressão "interesses coletivos", prevista no art. 83, III, da LOMPU, como interesses coletivos lato sensu, ou seja, os interesses metaindividuais que, não é demasiado repetir, por força do art. 81 do CDC, abrangem os difusos, os coletivos e os individuais homogêneos. [13]

Assim, já é possível concluir que o art. 83, III, da LOMPU c.c. o art. 21 da LACP e 82 do CDC, por estarem conforme a Constituição, desautorizam a teoria restritiva no tocante à legitimação do MPT para a ACP na defesa dos interesses individuais homogêneos.

Ademais, no plano infraconstitucional, não se pode ignorar o fato de o art. 84 da LOMPU mandar aplicar ao MPT os instrumentos de atuação de todos os órgãos do MPU previstos no seu art. 6º, VII, d, da LOMPU, inter alia, o de promover a ACP visando à proteção de "outros interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos." [14] (grifos nossos)


3. TEORIA ECLÉTICA

A teoria eclética, atualmente majoritária, admite a legitimação ativa do MP para promover a ACP na defesa de interesses individuais homogêneos:

a)quando forem indisponíveis, ante a imposição do art. 127, caput, da CF, que define as funções essenciais do MP;

b)quando forem disponíveis, desde que, em função da natureza da lide ou do elevado número de seus titulares, haja repercussão social a exigir a iniciativa ministerial.

Diz-se, por isso mesmo, que essa teoria é eclética, uma vez que admite condicionalmente a legitimação ministerial para defender interesses individuais homogêneos, ou seja, com algumas restrições.

A teoria eclética foi adotada pelo Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo [15] e a jurisprudência majoritária do STJ [16] caminha na mesma direção, se bem que, recentemente, decisões há daquela Corte no sentido de que somente os interesses individuais homogêneos dos consumidores podem ser tutelados pela ação civil pública promovida pelo Ministério Público. [17]

Verifica-se que a teoria eclética não deixa de ser, em certa medida, um desdobramento da teoria restritiva, na medida em que reduz, de forma casuística, a legitimidade do MP à defesa de alguns interesses individuais homogêneos quando isso implicar, de algum modo, relevância social.

Importa salientar que o grande equívoco dessa teoria, ao que nos parece, é que ela não examina o problema da atuação ministerial, quando age em defesa dos interesses metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), sob o enfoque do princípio da universalidade do acesso à jurisdição e da natureza de ordem pública das normas geradoras de direitos fundamentais.

De toda a sorte, ainda que se adote a teoria eclética no âmbito do processo do trabalho, ressalvadas algumas posições restritivas já mencionadas, o Ministério Público do Trabalho estará, em linha de princípio, legitimado à defesa dos direitos ou interesses individuais homogêneos dos trabalhadores.

Afinal, se os direitos assegurados aos trabalhadores rurais e urbanos são direitos sociais fundamentais, porquanto a norma de encerramento do art. 7º, caput, da CF, considera fundamentais não apenas os direitos sociais constitucionalmente garantidos aos trabalhadores, mas também "outros que visem a melhoria de sua condição social", salta aos olhos que estará aí presente a relevância social a justificar a legitimação do Ministério Público do Trabalho para promover a ACP em defesa dos interesses ou direitos sociais dos trabalhadores.

Vale dizer, em se tratando de direitos ou interesses individuais homogêneos trabalhistas, que são autênticos direitos sociais dos trabalhadores, haverá sempre interesse social em função da própria natureza desses direitos, razão pela qual o Ministério Público do Trabalho estará sempre legitimado a defendê-los, ante a sua função permanente de tutelar os "interesses sociais", ex vi do art. 127 da CF.

Ademais, se uma das características dos direitos individuais homogêneos dos trabalhadores é a indisponibilidade, [18] dificilmente haverá um caso em que o Ministério Público do Trabalho não terá legitimatio ad causam na ação civil pública que tenha por objeto a defesa de tais direitos ou interesses.


4. TEORIA AMPLIATIVA

A teoria ampliativa proclama a legitimação ampla e irrestrita do MP para ajuizar ação civil pública em defesa dos interesses homogêneos.

Entre os defensores dessa teoria destacam-se Nelson Nery Junior, [19] Ada Pellegrini Grinover, [20] Celso Antonio Pacheco Fiorillo, Marcelo Abelha Rodrigues e Rosa Maria Andrade Nery [21] e Francisco Antônio de Oliveira. [22]

Os principais argumentos dessa teoria podem ser assim sintetizados:

a)é fato que o art. 129, III, da CF menciona apenas os interesses difusos e coletivos;

b)mas o inciso IX, do mesmo artigo, abre a possibilidade para o legislador ordinário alargar o espectro da legitimação do MP, desde que isso seja compatível com o seu perfil constitucional;

c)os direitos ou interesses individuais homogêneos, como uma das espécies de interesses metaindividuais, só surgiram com o CDC, em 1990, portanto, após a Constituição Federal de 1988;

d)o art. 127, caput, da CF permite que o MPT defenda não apenas os interesses individuais indisponíveis, mas, também, os "interesses sociais";

e)o art. 1º do CDC [23] dispõe que as normas de proteção e defesa do consumidor são de ordem pública e de interesse social. Logo, o art. 82, I, do mesmo Código, que confere ao MP a legitimação para defender qualquer interesse individual homogêneo, caracteriza-se como "norma de interesse social", estando, portanto, em perfeita sintonia com o sistema constitucional brasileiro;

f)a própria propositura da ACP em defesa dos interesses individuais homogêneos já configura questão de interesse social, [24] pois com ela desestimula-se a proliferação de demandas individuais, prestigia-se a atividade jurisdicional, democratiza-se o acesso ao Judiciário e evitam-se decisões conflitantes sobre matérias decorrentes de origem comum.

Além dessas pontuações, nós acrescentaríamos dois outros dados que, a nosso sentir, também justificam a legitimação do Parquet para defender interesses ou direitos individuais homogêneos.

O primeiro decorre da previsão explícita no art. 5º, § 1º, da LACP, repetida no art. 82 do CDC, que prescreve a obrigatoriedade de atuação do MP, como custos legis, nas ações coletivas que forem ajuizadas pelos demais co-legitimados em defesa de qualquer interesse metaindividual. A intervenção obrigatória do MP, nessa qualidade, constitui inegavelmente um dos critérios objetivos de se aferir a existência do interesse público ou relevância social em toda ação coletiva que tenha por objeto a defesa de qualquer interesse metaindividual, seja difuso, coletivo ou individual homogêneo.

O segundo dado emerge da determinação expressa no § 3º do art. 5º da LACP, [25] segundo o qual em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério Público ou outro co-legitimado assumirá a titularidade ativa da ação civil pública. Ora, se a lei utiliza a expressão "assumirá", deixa clara a obrigatoriedade da atuação do MP (ou demais co-legitimados) no pólo ativo da demanda coletiva quando a associação desistir (infundadamente) ou abandonar a ACP, perguntar-se-ia: e se o objeto da ação desistida ou abandonada pela associação for a defesa de interesses individuais homogêneos disponíveis, o Parquet estará impedido de atuar judicialmente em defesa de tais interesses? Certamente que se a resposta for sim, estar-se-á diante de autêntica negativa de vigência do preceptivo em causa. Se a resposta for negativa, o que nos parece correto, extrair-se-á da norma em questão a existência do interesse público em toda ação coletiva destinada à defesa dos interesses individuais homogêneos, ainda que disponíveis. Ademais, se se aceita doutrinariamente que a legitimação na ação civil pública é concorrente e disjuntiva entre o Ministério Público, o Estado (e suas descentralizações) e as associações civis não teria sentido estabelecer uma regra casuística em favor de um do co-legitimado em detrimento de outro, como, por exemplo, permitir que a associação defenda interesses individuais homogêneos disponíveis e indisponíveis e o Ministério Público, apenas estes últimos. [26]

A teoria ampliativa utiliza, portanto, os métodos de interpretação sistemática e teleológica dos arts. 127 e 129, IX, da CF e do art. 82 do CDC, os quais permitem ao legislador infraconstitucional alargar a legitimação ministerial para propor ação civil pública (ou coletiva), objetivando a defesa de interesses sociais.

Nesse passo, a defesa coletiva dos interesses individuais homogêneos dos consumidores encerra, por força dos arts. 1º, 81, par. único, III, e 82 do CDC, hipótese de interesse social e de ordem pública, cuja proteção insere-se perfeitamente no elenco das finalidades institucionais do MP. [27]

A legitimação do Ministério Público para promover ação civil pública em defesa dos interesses individuais homogêneos dos consumidores tem sido admitida pela jurisprudência do STF. [28] Essa mesma Corte, no entanto, não reconhece a legitimação ministerial em se tratando de interesses individuais homogêneos dos contribuintes. [29]

O STJ, em certa oportunidade, reconheceu a legitimação do MP para defender interesses individuais homogêneos, desconsiderando a questão da disponibilidade ou não desses interesses. [30] Mas o entendimento majoritário da Corte Especial aponta no sentido de que apenas quando os interesses ou direitos individuais homogêneos são direitos sociais ou de relevância social estará o MP legitimado a defendê-los. É o que acontece, por exemplo, com a ação civil pública que tenha por objeto a reparação de danos causados à saúde dos trabalhadores submetidos a condições insalubres; [31] o reajustamento dos valores dos benefícios de prestação continuada dos aposentados; [32] a proteção do direito dos servidores perceberem o salário mínimo constitucional. [33]

Não obstante os aspectos acima mencionados, ainda há uma certa resistência por parte de alguns magistrados trabalhistas quando à adoção da teoria ampliativa.

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Sobre o autor
Carlos Henrique Bezerra Leite

procurador Regional do Trabalho da 17ª Região (Espírito Santo), mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP, professor adjunto da graduação e pós-graduação em Direito da UFES, membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. A ação civil pública e a tutela dos interesses individuais homogêneos dos trabalhadores em condições de escravidão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 696, 1 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6810. Acesso em: 23 abr. 2024.

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