Artigo Destaque dos editores

A ação civil pública e a tutela dos interesses individuais homogêneos dos trabalhadores em condições de escravidão

Exibindo página 3 de 4
01/06/2005 às 00:00
Leia nesta página:

9. A ACP E O TRABALHO ESCRAVO

O Brasil, como é sabido, foi um dos últimos países a abolir dogmaticamente a escravidão. [53]

A nenhum ser humano é dado desconhecer que a Declaração Universal dos Direitos Humanos-DUDH que, em seu art. 4º, proclama solenemente:

"Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos."

No mesmo sentido é a Declaração Americana dos Direitos Humanos, cujo art. 6º prescreve:

"1. Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as formas.

2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório."

Mas, o que é trabalho escravo?

O fator determinante para caracterizar trabalho análogo ao de escravo é o cerceamento da liberdade. O trabalhador fica sem condições de sair do local onde está sendo explorado, sofrendo, a rigor, três tipos de coação:

a) coação econômica – dívida contraída com o transporte para fazenda e compra de alimento. O empregado tenta saldar a dívida, mas não consegue devido aos elevados valores cobrados;

b) coação moral/psicológica – ameaças físicas, e até de morte, por parte do responsável pela fazenda e constante presença de capataz, armado, em meio aos trabalhadores;

c) coação física – agressão aos trabalhadores como forma de intimidação.

O trabalho realizado em tais condições revela, por si só, que estamos diante de uma das piores formas de desrespeito aos princípios que fundamentam o Estado Democrático de Direito, quais sejam: a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho.

Dessa forma, o combate a todas as formas de trabalho em condições de escravidão constitui dever do Estado e de toda a sociedade.

Do Ministério Público e da Magistratura, como instituições estatais, esperam-se providências enérgicas que possibilitem o amplo acesso à Justiça dos trabalhadores em condições de escravidão, uma vez que a situação de indigência social desses trabalhadores, ocasionada pelo analfabetismo, fadiga física e psíquica, o fundado temor em virtude da tríplice coação que recebem acima referida etc., revela que eles não têm condições materiais ou morais de demandarem individualmente em face do tomador de seus serviços.

A ação civil pública em defesa dos individuais homogêneos dos trabalhadores que se encontram em tais condições é o principal instrumento judicial para reverter essa chaga social, na medida em que:

a) permite a aglutinação de diversos litígios numa única demanda, prestigiando-se a economia e celeridade processuais e evitando-se decisões conflitantes tão caras ao Judiciário e à sociedade;

b) ameniza algumas barreiras psicológicas e técnicas que impedem ou dificultam o acesso judicial da parte fraca, como os trabalhadores, os consumidores, os contribuintes, os idosos, as crianças, os idosos, os excluídos, os vulneráveis;

c) desestimula condutas sociais indesejáveis dos exploradores de trabalho escravo, mediante aplicação de multas elevada, o que acaba prevenindo a repetição de futuras lesões aos trabalhadoes;

d) estimula a criação de uma nova mentalidade que prestigia a solidariedade e o acesso universal a uma ordem justa, cumprindo os objetivos fundamentais da República no tocante à promoção do bem comum e à correção das desigualdades sociais.


10. CONCLUSÃO

Finalmente, e até por decorrência lógica da posição até aqui adotada, afigura-se-nos ilimitada a legitimação do Ministério Público do Trabalho no que concerne à defesa dos interesses ou direitos individuais homogêneos indisponíveis dos trabalhadores em condições de escravidão, pois, se em nosso ordenamento jurídico a indisponibilidade é o traço característico da quase totalidade dos direitos trabalhistas, conclui-se que é exatamente aí que reside uma das mais importantes missões institucionais do Parquet Laboral para tornar realidade o projeto constitucional.

Do ponto de vista dogmático, as normas que autorizam a legitimação do Parquet Laboral para defender os interesses individuais homogêneos indisponíveis são as já mencionadas no quadro sinóptico supra, acrescentando-se, apenas, que a indisponibilidade emerge da aplicação direta do art. 127, caput, combinado com o inciso III do art. 129 da CF.


BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, Antonio Herman Vasconcellos e. A insurreição da aldeia global contra o processo civil clássico. Apontamentos sobre opressão e a libertação judiciais do meio ambiente e do consumidor. In: MILARÉ, Édis (coord.) Ação civil pública – Lei 7.347/85 – Reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 70-151.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campos, 1992.

______. Teoria general del derecho. Trad. Jorge Guerrero R. 2. ed. Santa Fe de Bogotá: Temis, 1999.

______. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

______. Dalla struttura alla funzione: nuovi studi di teoria del diritto. Milano: Edizioni di Comunità, 1977.

CAPPELLETTI, Mauro. Os métodos alternativos de solução de conflitos no quadro do movimento universal de acesso à justiça. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, v. 326, p. 121-130, abr./jun. 1994.

______. O Acesso dos Consumidores à Justiça. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 62, p. 204-210, 1991.

______. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Revista de Processo n. 5:128-159. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar, 1977.

CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Briant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1988.

DIAS, Francisco Barros. Processo de conhecimento e acesso à justiça (tutela antecipatória). Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: AJURIS, n. 66, p. 212-220, mar. 1996.

FERRAZ, Antônio Celso de Camargo, MILARÉ, Edis, NERY JÚNIOR, Nelson. A ação civil pública e a tutela jurisdicional dos interesses difusos. São Paulo: Saraiva, 1984.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Associação civil e interesses difusos no direito processual civil brasileiro. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1989.

______. Os sindicatos e a defesa dos direitos difusos no processo civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

______. Direito processual ambiental brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

______. Curso de direito ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000.

______. A ação civil pública e a defesa dos direitos constitucionais difusos. In: MILARÉ, Édis (coord.). Ação civil pública: lei 7.347/85: reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 163-192, 1995.

______. A ação civil pública e o meio ambiente do trabalho. Revista da Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região. São Paulo: Imprensa Oficial, n. 2, p. 61-75, 1998.

GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995.

GRINOVER, Ada Pellegrini. A marcha do processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

______. A ação civil pública no âmbito da justiça do trabalho: pedido, efeitos da sentença e coisa julgada. Revista da Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região. São Paulo: Imprensa Oficial, n. 2, p. 49-60, 1998.

______. Da coisa julgada no código de defesa do consumidor. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Jurídicos, 1990.

______. A Ação Civil Pública e a Defesa de Interesses Individuais Homogêneos. Revista do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 5, p. 206-229, jan./mar. 1993.

______. Uma nova modalidade de legitimação à ação popular. Possibilidade de conexão, continência e litispendência. In: MILARÉ, Édis (coord.). Ação civil pública: lei 7.347/85: reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 23-27, 1995.

GRINOVER, Ada Pellegrini et. al. 9. ed. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 1992.

______. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 667-669 e 706-738, 1998.

LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ação civil pública: nova jurisdição trabalhista metaindividual e legitimação do ministério público. São Paulo: LTr, 2001.

______. Liquidação na ação civil pública: o processo e a efetividade dos direitos humanos – enfoques civis e trabalhistas. São Paulo: LTr, 2004.

______. Contratação ilegal de servidor público e ação civil pública trabalhista. Belo Horizonte: Editora RTM, 1996.

______. Ministério público do trabalho: doutrina, jurisprudência e prática. 2. ed. São Paulo : LTr, 2002.

______. Constituição e direitos sociais dos trabalhadores. São Paulo: LTr, 1997.

______. Mandado de segurança no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 1999.

______. Curso de direito do trabalho. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2000, 2 v.

______. Legitimação do ministério público do trabalho para promover a ação civil pública. In: BASTOS, Evandro de Castro, BORGES JÚNIOR, Odilon (coords). Novos rumos da autonomia municipal. São Paulo: Max Limonad, p. 59-71, 2000.

______. Execução de termo de ajuste de conduta firmado perante o ministério público do trabalho. Revista Genesis. Curitiba: Genesis, n. 80, p. 177-190, ago. 1999.

______. Tendências do direito processual do trabalho e a tutela dos interesses difusos. Repertório IOB de Jurisprudência. São Paulo: IOB, n. 12, p. 224-230, jun. 2000.

______. Ações coletivas e tutela antecipada no direito processual do trabalho. Revista LTr. São Paulo: LTr, n. 64, p. 854-862, jul. 2000.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

L’HEUREUX, Nicole. Acesso eficaz à justiça: juizado de pequenas causas e ações coletivas. Trad. Vera M. Jacob de Fradera. Revista de Direito do Consumidor, n. 5, p. 5-26, 1993.

MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Ministério público brasileiro: um novo ator político. In: VIGLIAR, José Marcelo Menezes; MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Ministério Público II : democracia. São Paulo: Atlas, p. 103-114, 1999.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, patrimônio cultural e dos consumidores. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996.

______. Ação civil pública trabalhista : análise de alguns pontos controvertidos. Revista do Ministério Público do Trabalho. Brasília: LTr, n. 12, p. 47-78, set. 1996.

______. Manual do consumidor em juízo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

______. Comentários ao código de defesa do consumidor (arts. 81 a 100). In: OLIVEIRA, Juarez de (coord.). São Paulo: Saraiva, 1991.

MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

______. Questões do novo direito processual civil brasileiro. Curitiba: Juruá, 2000.

MAZZILLI, Hugo Nigro. O ministério público na constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989.

______. Regime jurídico do ministério público. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

______. A defesa dos interesses difusos em juízo. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

______. A ação civil pública no âmbito da justiça do trabalho e o código de defesa do consumidor. Revista da Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região. São Paulo: Imprensa Oficial, n. 2, p. 17-30, 1998.

______. O processo do trabalho e os direitos individuais homogêneos. Um estudo sobre a ação civil pública trabalhista. Revista LTr. São Paulo: LTr, n. 64, p. 151-160, fev. 2000.

NERY JUNIOR, Nelson, NERY, Rosa Maria Andrade. Código de processo civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

PIZZOL, Patrícia Miranda. Liquidação nas ações coletivas. São Paulo: Lejus, 1998.

REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2 vols., 1998.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à sociologia da administração da justiça. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direito e justiça: a função social do judiciário. 3. ed. São Paulo: Ática, p. 39-65, 1997.

SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

______. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

VÉSCOVI, Enrique. Teoría general del proceso. Bogotá: Temis, 1984.

______. La participación de la sociedad civil en el proceso. La defensa del interés colectivo y difuso. Las nuevas formas de legitimación. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa (coord.). Estudos de direito processual em memória de Luiz Machado Guimarães. Rio de Janeiro: Forense, p. 161-182, 1997.

WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e Sociedade Moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini. Participação e Processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988.

WATANABE, Kazuo et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Carlos Henrique Bezerra Leite

procurador Regional do Trabalho da 17ª Região (Espírito Santo), mestre e doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP, professor adjunto da graduação e pós-graduação em Direito da UFES, membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. A ação civil pública e a tutela dos interesses individuais homogêneos dos trabalhadores em condições de escravidão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 696, 1 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6810. Acesso em: 26 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos