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Os partidos políticos e a crise da democracia representativa

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8.O estiolamento da função representativa

            Embora os partidos políticos sejam definidos por uma função central – a conquista e exercício do poder - o seu impacto no sistema político é substancialmente mais complexo. Daí que as funções que cumprem em democracia podem ser extensas, acompanhando a complexidade do fenómeno político.

            A representação é vista, no entanto, como a mais importante das funções políticas. Simboliza a capacidade dos partidos representarem e articularem os pontos de vista quer dos seus membros, quer dos eleitores. É instrumento de integração privilegiado que assegura que o governo acolha as necessidades e sentimentos nutridos pelo vasto espectro da sociedade.

            A função de representação é claramente melhor cumprida num sistema aberto e competitivo que force os partidos a responder ás preferências dos eleitores. Anthony Dowes (58) caracteriza esta função sugerindo de uma forma singular que o mercado político é semelhante a um mercado económico em que os partidos actuam como empresários à procura de votos, transformando os partidos em estruturas empresariais. O poder reside, ao fim e ao cabo, nos consumidores, os votantes.

            O modelo de Dowes é susceptível de crítica quanto ao diminutio ético que implica, mas é hoje evidente que com a complexidade dos fenómenos eleitorais, com a penetração dos media como concorrente mediador da sociedade, o combate político recorre mais aos instrumentos do marketing research do que do confronto de projectos políticos claros e distintos, firmados em princípios. O apelo á irracionalidade do eleitor é tentacular e profundamente sedutor.

            Por outro lado, dado o papel crucial que os partidos desempenham nas sociedades pós-industriais dos nossos dias, como espelho que são da realidade social em que se encontram embebidos, a crise de um certo modelo de representação proporcional desperta interrogações quanto aos interesses que verdadeiramente servem. São os partidos verdadeiras instituições democráticas que possibilitam a participação dos militantes e aderentes em todos os aspectos da vida colectiva? Ou são simplesmente instrumentos de legitimação dos líderes cooptados pela elites e impostos aos militantes?

            Um dos contributos clássicos para a discussão desta problemática foi dada por Robert Michel num trabalho intitulado «Political parties: a sociological study of the oligarchical tendencies of modern democracy», em que analisa a distribuição do poder do SPD alemão. Michels (59) argumenta que não obstante a organização formalmente democrática do partido, o poder concentra-se na mão de um pequeno número de líderes, segundo uma lógica que designa por «a lei de ferro da oligarquia». Segundo esta lei, existe uma tendência inevitável para as organizações políticas – e por extensão todas as organizações – serem oligárquicas.

            Isto ocorre segundo Michel por três razões fundamentais: primeiro porque dados os custos de transação em grandes organizações, os partidos só conseguem uma adequada coordenação por diferenciação funcional e relações hierárquicas de controle organizacional por líderes designados; em segundo lugar, a massa dos apoiantes não tem os recursos nem as inclinações para governar a organização pelo que é dirigida por líderes fortes, com forte carisma; em terceiro lugar, os líderes são políticos profissionais que vivem da política, mais que para a política. Todos estes factores favorecem o status quo.

            Conclui Michel que as estruturas participativas ou democráticas não podem controlar estas tendências, unicamente podem disfarçá-las.

            A visão «conspirativa» subjacente à tese de Michel foi vivamente criticada pela sociologia política (60), mas seria ulteriormente retomada por Robert McKenzie que num trabalho de 1955 (61) sobre o sistema partidário inglês, combateria a visão tradicional que o Partido Conservador era elitista e dominado por uma lógica de hegemonia dos líderes, enquanto o Labour se caracteriza pela forte cultura democrática interna. McKenzie conclui que não obstante as lógicas internas distintas e diferentes sistemas de valores, ambos os partidos são dominados pela rede dos líderes parlamentares e rendem-se à lógica dos seus interesses, sendo por outro lado os grupos parlamentares «câmaras de eco» das orientações das direcções parlamentares e rendem-se à lógica dos seus interesses, sendo por outro lado os grupos parlamentares «câmaras de eco» das orientações da direcção parlamentar.

            Procurando contrariar esta tendência concentracionária, várias reformas são tentadas ao longo dos anos 70 e 80 para reforçar a democraticidade interna e a participação dos militantes na vida partidária. Iniciativas que têm lugar sobretudo quando os partidos sofrem pesadas derrotas eleitorais, que os afastam vários anos do poder (62).

            Este problema é fundamental porque imbrica directamente com a outra função dos partidos políticos a que aludimos em primeiro lugar. Se nos partidos políticos preside uma lógica aparelhística, oligarquista de perpetuação política da elite que dirige o Partido e o representa no Parlamento, é discutível que quer o partido quer os deputados se sintam "obrigados" em responder ás expectativas e anseios da sociedade civil. É que não obstante a proibição do "mandato representativo" subsiste na lógica da representação política mediada pelos partidos uma obrigação não só moral, como política de responder pelos distritos (constituencies) em que os candidatos à eleições são propostos.

            Não é este o local para desenvolver esta questão, mas sempre se adiantará que a opção por círculos plurinominais ou por listas, em que os candidatos partidários aparecem geograficamente por círculos que não da sua naturalidade ou residência – conforme o interesse partidário na distribuição das front figures – retira credibilidade á pretextada responsabilidade dos deputados pelos seus eleitores.

            A evolução nas nossas democracias de sistemas de governo multipartidário para bipartidário, por forma a propiciar maiorias parlamentares pré ou pós-eleitorais duradouras pode ser considerada como uma das causas da deficiente accountability dos sistemas políticos modernos mediados pelos partidos.


9. A crise do Sistema de Partidos e o Pós-Modernismo

            O fenómeno da representação política através dos partidos é o aspecto mais decisivo e ao mesmo tempo controverso das democracias representativas modernas. Os partidos assumem-se como promotores de programas políticos e de formulação de alternativas políticas de gestão dos assuntos públicos, mas dificilmente conseguem concretizar os seus intentos, forçados a negociar coligações ou apoios parlamentares, por vezes espúrios, para poderem cumprir uma legislatura.

            O mecanismo da representação política é hoje o resultado de um processo de encenação entre organizações partidárias, na melhor estratégia para a conquista e manutenção do poder, que quási se esgota em si próprio face a um público que funciona formalmente como um juiz, mas muitas vezes como mero espectador que se espera cinzento, taciturno e pouco activo.

            O papel do deputado tornou-se, portanto, equívoco, adstrito à lógica da disciplina partidária: ecoar no mecanismo plural dos votos na Câmara as decisões da direcção partidária, votar de acordo com elas, sendo-lhe raramente permitido que vote "por consciência" em questões de valoração pessoal, de forte componente ética ou moral.

            Há hoje face à clara desvalorização do debate ideológico e programático entre esquerda e direita, socialismo, liberalismo e conservadorismo, um claro predomínio dos partidos eleitorais de massas como a essência do regime representativo. Daí que a distinção entre partidos ideológicos e partidos democráticos tenha, talvez, perdido sentido: o núcleo programático que até há pouco tempo os diferenciava em conservadores, liberais ou socialistas, deixou de ser um elemento com qualquer relevância na mobilização e escolha dos eleitores.

            Hoje as eleições ganham-se e perdem-se nos debates televisivos, na forma como se faz passar a imagem do líder partidário nos media, fazendo revestir o candidato-chave dos facies que representem o sentir, as expectativas das várias classes de eleitores, num determinado momento conjuntural. Neste sentido, poderemos afirmar que existe uma clara descaracterização ideológica dos partidos, em benefício da obsessiva personificação mediática do líder partidário. Líder este que vale por si, muitas das vezes contra o estilo e o perfil do próprio partido e do seu aparelho ou grupo de notáveis.

            As eleições ganham-se hoje ao centro, no eleitorado da classe média que não guarda fidelidades, nem convicções, mas que avalia em cada momento de viragem (ou de entropia) qual o partido que melhor pode responder aos seus anseios ora de mudança, ora de estabilidade e consumismo.

            Ecoa-nos, por isso, o incontido libelo de Rousseau contra o artificialismo da representação política própria do Estado Liberal (63):

            A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que não pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade geral não se representa: ou é a mesma, ou é outra – não existe meio-termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser os seus representantes; são simples comissários, e nada podem concluir definitivamente. Toda a lei que o povo não tenha ratificado directamente é nula, não é uma lei. O povo inglês pensa ser livre, mas está redondamente enganado, pois só o é durante a eleição dos membros do Parlamento; assim que estes são eleitos, ele é escravo, não é nada. Nos breves momentos de sua liberdade, pelo uso que dela faz bem merece perdê-la.

            Talvez porque por vezes perceba que pouco vale tê-la, o eleitor moderno tenha hoje um comportamento sui generis: quando chamado a eleições regateia a maioria aos partidos que a reivindicam, tornando-os dependentes das coligações de interesses explicitadas pela vida parlamentar; ou pura e simplesmente demite-se do exercício do direito do voto (64).

            Na opinião de Russel J. Dalton (65), o sistema de representação encontra-se em crise uma vez que os partidos estabelecidos foram confrontados com novas exigências e desafios e a mudança partidária tornou-se notória. Na base deste desenvolvimento está uma relação decrescente entre as clivagens sociais tradicionais e a escolha partidária. Por causa desta erosão na tradicional base social do votante, os sistemas partidários tornaram-se mais fraccionados. As flutuações nos resultados eleitorais aumentaram. O voto é agora caracterizado por altos níveis de instabilidade partidária ao nível agregado e individual. Por outro lado, como refere outro autor (66) paralelamente a estas tendências existe o que podemos chamar por «anti-política», isto é, a emergência de movimentos e organizações políticas cujo único ponto comum parece ser a sua antipatia face aos convencionais centros de poder e a sua oposição aos partidos estabelecidos. Exemplos disso são o partido do bilionário Ross Perot que nas eleições presidenciais de 1992, obteve 19% dos votos expressos, o sucesso do empresário dos media Silvio Berlusconi com a Forza Italia em 1994.

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            Os Partidos que provieram da Revolução Industrial confrontam-se, hoje, com questões novas que manejam com alguma imperícia ou relutância como a protecção do meio ambiente, a igualdade social, a energia nuclear, a igualdade sexual e formas alternativas de sexualidade, a legalização do consumo dos estupefacientes, a inclusão das minorias étnicas ou a explosão das novas tecnologias e da sociedade de informação.

            Um dos problemas é que os "partidos do status quo" são vistos, sobretudo pelos novos estratos dos eleitores como máquinas políticas burocratizadas onde o contributo dos militantes é senão desprezada pelo menos despiciendo. Por isso, os grupos de protesto temáticos têm maior sucesso em atrair militantes e apoios nomeadamente entre os jovens, provavelmente porque são mais flexíveis, mais locais, mas também porque coloca uma maior ênfase na participação e na militância. A imagem pública dos partidos do status quo tem sido atingida pela sua conexão com o tráfico de influências e com os sinais de corrupção.

            Os cidadãos exigem maiores oportunidades de participação nas decisões que afectam directamente a sua vida, actuam de uma forma por vezes egoísta em relação ao interesse geral e pressionam por uma maior democratização da sociedade e da política. Democratização que querem, apesar dos partidos e regra geral fora deles. Há provavelmente uma emancipação das exigências de bem-estar ou melhoria das condições de conforto e sociabilidade comunitária extra-partidário e muitas vezes contra eles (67).

            Daí que vários autores (68) refiram que estamos a assistir a uma reestruturação permanente dos alinhamentos políticos como resultado das mudanças socio-económicas da industrialização avançada. Eles defendem que as democracias industriais estão a experimentar uma terceira revolução – a Revolução Pos-Industrial – como resposta aos novos interesses, aos novos modos de participação, às novas expectativas àcerca do papel do cidadão na sociedade. Os sistemas partidários estão em estado de acentuada catarse, mas é difícil concluir se o fim do actual sistema de partidos está à vista.

            Uma outra explicação é que a actual crise do sistema representativo seja um sintoma do facto que as modernas sociedades são cada vez mais difíceis de governar. Desilusão e cinismo cresceu e instalou-se á medida que os partidos proclamam a sua capacidade para responder a todos os problemas das pessoas mas uma vez no poder esquecem-se do implementar. Isso reflecte-se nas cada vez maiores dificuldades com que se confronta qualquer partido no poder face ao poder expansivo dos grupos de interesse e de uma economia global. Outra explicação é que os partidos estão em crise porque as identidades sociais e as tradicionais afinidades que os projectaram estão a desaparecer e as próprias solidariedades que consolidam uma sociedade civil estão fragmentadas.

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Sobre o autor
Arnaldo Manuel Abrantes Gonçalves

mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela IEP-UCP, licenciado em Direito pela FD-UNL, professor convidado do Instituto Politécnico de Macau (China)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Arnaldo Manuel Abrantes. Os partidos políticos e a crise da democracia representativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 707, 12 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6818. Acesso em: 27 abr. 2024.

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