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Regime de bens:

o novo Código Civil e a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal

02/06/2005 às 00:00
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O novo Código Civil, repisando o Código Beviláqua, contempla, dentre os regimes de bens, o da separação total, que se subdivide em duas espécies: o regime de separação total de bens convencional, de que tratam os artigos 1.687 e 1.688, e o legal ou obrigatório estatuído no artigo 1.641. O primeiro encontra sua fonte geradora, seu engate lógico na vontade dos nubentes e, por isso, reclama pacto antenupcial; o segundo está assentado na própria lei, independendo da vontade das partes.

O legislador, em algumas hipóteses, no propósito de proteger determinadas pessoas ou de impor uma sanção àqueles que viessem a se casar desrespeitando causas suspensivas, conhecidas e tratadas no Código de 1916 como impedimentos meramente proibitivos, tornou, nesses casos, obrigatório o regime de separação total de bens.

Relativamente ao regime de separação convencional regulado pelo Código de 1916, para que os bens adquiridos não se comunicassem e por força do estatuído no artigo 259 desse revogado Código Civil, no pacto antenupcial além dos nubentes escolherem esse regime de separação total, era necessário que eles expressamente consignassem no pacto que os aqüestos não se comunicariam, pois se assim não o fizessem, os bens adquiridos na constância do casamento de maneira onerosa se comunicariam, o que, em última análise, implicava na aplicação das regras do regime de comunhão parcial de bens.

Isso, no nosso atual sistema jurídico, não mais existe porque o novel Código Civil não traz nenhuma disposição semelhante àquela plasmada no artigo 259 do Código Beviláqua, de sorte que basta aos nubentes elegerem o regime de separação total, contemplado nos atuais artigos 1.687 e 1.688, para que sejam incomunicáveis os bens cujo domínio pertencer a cada um deles, seja a aquisição levada a efeito antes ou durante o matrimônio. Nesse sentido, SÍlvio de SALVo Venosa ensina que o regime de separação de bens tem por característica "a completa distinção de patrimônios dos dois cônjuges, não se comunicando os frutos e aquisições e permanecendo cada qual na propriedade, posse e administração de seus bens" [1], e mais: "O novo Código estabelece verdadeiramente uma separação de patrimônios, pois no Código de 1916, mesmo no regime de separação absoluta, havia necessidade de outorga conjugal para alienação dos imóveis" [2]

Idêntico raciocínio, entretanto, não se pode desenvolver em relação ao regime obrigatório da separação total de bens. É que o legislador de 1916, ao estabelecer esse regime de bens, objetivou proteger a mulher desavisada que se casasse sem o consentimento dos pais ou cuja idade núbil fosse suprida, supondo que seu consorte poderia estar iludindo-a para apropriar-se, por intermédio do casamento, do patrimônio dela já adquirido ou que ela viesse a adquirir após o casamento, especialmente por herança. Com certeza isso resguardaria os interesses das jovens ricas, de famílias abastadas.

Olvidou-se, entretanto, o legislador, de um fato notório, qual seja, o de que a população brasileira era constituída, na sua maioria, por pessoas pobres, fato não alterado até os dias atuais infelizmente, porque temos hoje milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza no nosso País.

Essa regra, de caráter protetivo, conseqüentemente passou a ter um efeito negativo e prejudicial às pessoas que a lei visava proteger. É que durante a constância do casamento, no mais das vezes, os bens adquiridos ficavam só em nome do marido, dada a influência do sistema romano-patriarcal, do qual até hoje permanecem resquícios em nosso sistema jurídico, em especial no direito de família. Rompido o casamento, aquela mulher, agora já de avançada idade, não teria nenhum direito aos bens amealhados na constância do casamento. O revés também era verdadeiro. O marido não teria direito aos bens que teria contribuído para a aquisição durante a constância do casamento e que estivessem em nome da mulher. É claro, à toda evidência, que essa hipótese era de menor incidência.

Essa incomunicabilidade se estendia também nas hipóteses em que o casamento fosse levado a efeito quando a mulher se casasse com cinqüenta anos ou mais e o homem com sessenta anos ou mais. O legislador, ao meu ver, de maneira equivocada e preconceituosa, supunha que o homem sexagenário e a mulher cinqüentenária já teriam perdido os seus encantos e atributos físicos, de modo que seriam invariavelmente vítimas do denominado golpe do baú. Estabelecia, ainda, o legislador de 1916, o regime obrigatório de separação total de bens para as hipóteses em que o casamento fosse realizado em desrespeito aos impedimentos meramente proibitivos, hoje denominados de causas suspensivas [3].

Por qualquer ângulo, entretanto, que se olhasse, era possível constatar que esse excessivo cuidado do legislador acabou sendo, no mais das vezes, prejudiciais aos cônjuges porque invariavelmente resultava em enriquecimento ilícito de um em detrimento do outro que saía do casamento sem nenhum bem, enquanto o primeiro ficava com todo o patrimônio formado pelo casal.

Para obviar essas distorções é que sobreveio a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, a qual, em última análise, estabelece as regras do regime da comunhão parcial para o de separação obrigatória, ou seja, determina a comunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento sob a égide do regime da separação legal obrigatória.

Nada obstante as injustiças geradas pela imposição desse regime de bens, o legislador continuou incidindo no mesmo pecado, uma vez que o atual Código Civil traz as mesmas restrições [4], não permitindo que as pessoas acima mencionadas possam optar por um dos outros regimes de bens contemplados em nosso ordenamento jurídico e nem possam elaborar um regime próprio, como se permite as outras pessoas [5].

Em outras palavras, tanto o homem como a mulher sexagenária, bem como aqueles que infringem, ao se casarem, as causas suspensivas do matrimônio e aqueles que dependem de autorização judicial para convolarem núpcias são obrigados a adotar regime de separação total de bens [6].

Salta aos olhos o desacerto do legislador e, especificamente, no que tange aos sexagenários, nos dias atuais, não é demais dizer que afronta o princípio da isonomia contemplado na nossa Lei Maior uma vez que se permite às pessoas de dezoito, de trinta, de quarenta, de cinqüenta anos, enfim todas as pessoas com idade entre dezoito e sessenta anos, a possibilidade de eleger o regime que regulará as relações patrimoniais durante o seu casamento. Porque não atribuir idêntico direito ao sexagenário? Não teria ele a livre disposição de seus bens? Não pode o sexagenário realizar todos os demais atos da vida civil? Porque não pode ele eleger o regime de bens que regerá suas relações matrimoniais? [7] A intromissão do legislador, neste ponto, chega a ser imperdoável. Nem se argumente que haveria hipótese onde seria necessária tal imposição para proteger terceiros, tal qual se dá com os filhos do primeiro matrimônio, ou do pupilo ou da pupila. É que tal proteção poderia, como efetivamente pode, ser alcançada por outros meios mais eficazes e sem coartar o direito que se confere à maioria das pessoas de optarem livremente pelo regime de bens que melhor lhes aprouver e até de criarem espécie diversa daquelas expressamente existentes no Código Civil.

Por isso é que torna-se forçoso concluir que as mesmas razões ensejadoras do advento da Súmula 377 do Egrégio Supremo Tribunal Federal permanecem nos dias atuais, de maneira que, a meu ver, ela permanece em vigor, sendo perfeitamente aplicável ainda hoje nos casamentos realizados a partir da entrada em vigor do novo Código Civil, assim como naqueles levados a efeito durante a vigência do Código Beviláqua, sendo a única forma de se evitar distorções e enriquecimento ilícito em favor de um e em detrimento do outro cônjuge [8].

E mais se justifica também a aplicação da súmula sobredita, porque em sendo ela desprezada, os cônjuges que se casaram ou vierem a se casar sob o regime de separação obrigatória de bens estarão numa situação inferior à dos conviventes, aos quais são asseguradas as mesmas regras do regime de comunhão parcial, o que implica na comunicabilidade ou na meação dos bens adquiridos na constância da união estável, não se podendo olvidar que, dentre as formas de constituição de família, o legislador constituinte deu preferência ao casamento em relação a união estável, tanto que permite a conversão desta naquele. E mais. O legislador infraconstitucional em harmonia com essa preferência, em vários pontos, inclusive em sede de direito sucessório, atribuiu mais direitos ao cônjuge do que ao convivente. Basta ver que o cônjuge supérstite, na ordem de vocação hereditária, prefere os parentes colaterais do autor da herança e o convivente com estes concorre [9].


Notas

1 SÍLVIO DE SALVO VENOSA (Direito Civil - Direito de Família, 3ª Edição, São Paulo, Ed. Atlas S.A., 2003, v.6, p.196.

2 Ob. cit., p.196.

3 Cf. CC, art. 1.523, assim: "Não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II – a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até 10 (dez) meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III – o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV – o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela e não estiverem saldadas as respectivas contas."

4 Cf. CC, art. 1.641, assim: "É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II – da pessoa maior de 60 (sessenta) anos; III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial".

5 Cf. PAULO LUIZ NETTO LOBO, A repersonalização das relações de família, O direito de família e a Constituição de 1988. Coord. Carlos Alberto Bittar. São Paulo: Saraiva,1989, p. 64/5, de cujo texto se destaca algumas argumentações para embasar as conclusões aqui sintetizadas:..."boa parte dos impedimentos matrimoniais não tem as pessoas, mas o patrimônio dos cônjuges como valor adotado. O patrimônio deve ser protegido porque, nesses casos, a presunção é de puro interesse econômico, não se levando em conta a prevalência do móvel da affectio"

6 Ainda, cf. PAULO LUIZ NETTO LOBO, ob. cit. "Esses tipos de impedimentos não podem persistir nas atuais relações de família, centradas no princípio da liberdade estabelecido na nova Constituição..." (ob.cit., p. 66); "...a autorização do pai, tutor ou curador, para que se casem os que lhe estão sujeitos, não se volta à pessoa, mas ao patrimônio dos que desejam casar; a razão da viúva estar impedida de casar antes de dez meses depois da gravidez não é a proteção da pessoa humana do nascituro, a certeza da paternidade, mas a proteção de seus eventuais direitos sucessórios; o tutor, o curador... estão impedidos de casar com as pessoas sujeitas a sua autoridade, porque aqueles, segundo a presunção da lei, seriam movidos por interesses econômicos" (ob. cit., p. 66); É o que dizer da tutela, curatela...?Constituem um estatuto legal de administração de bens, tão-só? As pessoas dos tutelados, curatelados...não pesam; são vistas pela perspectiva dos patrimônios que devem ser protegidos". (ob. cit., p. 67).

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7 JOSÉ SEBASTIÃO DE OLIVEIRA, Fundamentos Constitucionais do Direito de Família, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 245/6, também questiona, neste aspecto, a matéria enfocada, afirmando que a legislação civil "provoca verdadeira inversão de valores a tal ponto que aquilo que se poderia conceituar de acessório – ou seja, o eventual patrimônio existente na relação familiar – supera em importância o principal, vale dizer, o elemento pessoal-afetivo que deve existir na manutenção da textura familiar" E, exemplificando com o artigo art. 258, Parágrafo único, II do Código de 1916 (atual art. 1.641, II), questiona: "Que critério é esse que abandona o elemento pessoal, mas defende cegamente os bens, como se estes excedessem aquele em importância?"

8 Diferentemente da conclusão a que cheguei e em outro sentido in SILVIO RODRIGUES, 27ª edição atualizada por FRANCISCO JOSÉ CAHALI, Direito Civil, Direito de Família, com anotações sobre o novo Código Civil, Ed. Saraiva, 2002, v. 6, p. 190, os quais, abordando o tema, chegam a seguinte exegese: "O novo Código Civil deixa de reproduzir a regra contida no vigente art. 259. Dessa forma, omisso o contrato ou na imposição da lei, deverão prevalecer as regras pertinentes a cada modalidade de regime de bens, não mais se admitindo venham a prevalecer os princípios da comunhão parcial quanto aos bens adquiridos na constância do casamento. A exceção deve ser feita, exclusivamente, se comprovado o esforço comum dos cônjuges, decorrendo daí uma sociedade de fato sobre o patrimônio incrementado em nome de apenas um dos consortes. Mas a comunhão pura e simples, por presunção de participação sobre os bens adquiridos a título oneroso, como se faz no regime legal, e até então estendida aos demais regimes, deixa de encontrar fundamento legal. Curioso observar sobre essa questão que a versão aprovada pelo Senado Federal acrescentava, no art. 1.641, o complemento "sem a comunhão de aqüestos". Essa redação, sem dúvida, deixaria clara a rejeição do legislador à Súmula 388. Aprovado por votos de liderança na Câmara, na forma publicada no Diário Oficial, este complemento foi excluído. Mas não se deve entender daí que a Súmula 377 foi prestigiada, na abrangência proclamada pelos julgados acima indicados, pois sua origem decorre, como visto, do disposto no artigo 259 referido. Assim, pela análise global das regras propostas no Código de 2002, não deverá subsistir a orientação consagrada na Súmula, aplicando o regime da comunhão parcial quando imposta a separação obrigatória. Comprovada, porém, a conjunção de esforços para a aquisição de bens, estes devem ser partilhados quando da dissolução do casamento."

9 Corroborando minha conclusão, ainda que de maneira tênue, in SÍLVIO DE SALVO VENOSA (Direito Civil - Direito de Família, 3ª Edição, São Paulo, Ed. Atlas S.A., 2003, v.6, p.176/7, assevera: "A jurisprudência, no entanto, procurou abrandar iniqüidades em casos concretos trazidos pelo texto objetivo da lei, como apontamos. A maioria dos casamentos realizados sob o regime da separação legal é de jovens que amealham seu patrimônio no curso do casamento. Seria injusto, em princípio, não se comunicarem os bens adquiridos pelo esforço comum. A intenção do legislador, porém, não foi essa. A idéia, todavia, é de que, mesmo se casando sob o regime da separação, durante o casamento estabelece-se uma sociedade de fato entre os esposos, e os bens são adquiridos pelo esforço comum. A discussão dessa matéria nos tribunais redundou na Súmula 377 do STF: "No regime de separação legal de bens comunicam-se os adquiridos na constância do casamento." Não entendamos, contudo, que a questão se encontra isenta de discussões. A súmula não ressalva que os bens que se comunicam são os comprovadamente decorrentes do esforço comum. Essa matéria é daquelas nas quais há um descompasso entre a doutrina e a jurisprudência. Nova discussão sobre a matéria será aberta, doravante, com o novo Código. Acreditamos, embora seja um mero vaticínio, que mesmo perante o novo Código, será mantida a orientação sumulada, mormente porque, como vimos, o texto final de novo diploma suprimiu a disposição peremptória.", citando em nota de rodapé (ob. cit., p. 177) três ementas, a saber: "Casamento – Regime de bens – Separação legal – Comunhão dos aqüestos adquiridos após o matrimônio – Admissibilidade – Concorrência do casal para sua aquisição – Prevalência do art. 259 do Código Civil – Inteligência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal – Recurso provido. O regime de separação obrigatória de bens só abrange os anteriores ao casamento, não se aplicando aos adquiridos na constância da sociedade conjugal" (TJSP – Ap.Cível 228.007 95, Rel. Pires de Araújo)". "Casamento – Regime de bens - Separação obrigatória – Art. 258, parágrafo único do Código Civil – Bem adquirido na constância do casamento – Comunicabilidade – Ação procedente – Recurso não provido" (TJSP – Ap. Cível 269.650 95, Rel. Toledo Silva)". "Casamento – Regime de bens – Viúva casada sob separação legal – Art. 258, II, do Código Civil – Aplicação do art. 259 aos casos do art. 258, parágrafo único, do Código Civil – Propriedade cabível, em partes iguais e ideais, aos herdeiros e também à viúva – Ação procedente. Consoante orientação inscrita na Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, aplica-se o art. 259 do Código Civil aos casos do art. 258, parágrafo único, do Código Civil". (TJSP – Ação rescisória 182.745 93, Rel. Cezar Peluso)."

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Sobre a autora
Sônia Regina Negrão

Advogada, Especialista em Direito Civil pela Faculdade de Direito das Faculdades Integradas Antonio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEGRÃO, Sônia Regina. Regime de bens:: o novo Código Civil e a Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 697, 2 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6828. Acesso em: 15 nov. 2024.

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