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Os direitos humanos e a crise migratória na fronteira entre Estados Unidos e México

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23/08/2018 às 13:40
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4. As violações de direitos humanos em decorrência da política de tolerância zero frente aos dispositivos legais internacionais

É de notório saber que todos os imigrantes, incluindo refugiados, são protegidos pela legislação internacional, especialmente as crianças. Nesse sentido, a grande preocupação em torno da implementação da política de tolerância zero é o resguardo dos direitos humanos, principalmente os direitos da criança pois, considerando a prática de separação de famílias e o “abrigamento” dos infantes em jaulas enquanto seus pais respondem à Justiça – o que pode durar meses -, fica evidente que o controle de imigração se sobrepôs à proteção dos direitos da pessoa humana.

Os direitos humanos consistem em um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade. Os direitos humanos são os direitos essenciais e indispensáveis à vida digna.

Não há um rol predeterminado desse conjunto mínimo de direitos essenciais a uma vida digna. As necessidades humanas variam e, de acordo com o contexto histórico de uma época, novas demandas sociais são traduzidas juridicamente e inseridas na lista dos direitos humanos (RAMOS, 2017. p. 21).

Importante destacar que, de acordo com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, vulgo Pacto de San José de Costa Rica, do qual os Estados Unidos é signatário, dispõe que os direitos essenciais do homem não derivam do fato de ser nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção internacional (COSTA RICA, 1969).

Ademais, o dispositivo internacional prevê, em seu artigo segundo, o dever dos países signatários em adotar disposições de direito interno, de acordo com suas normas constitucionais, para garantir a efetividade dos direitos e liberdades constantes da Convenção (COSTA RICA, 1969).

No artigo quinto, do mesmo diploma legal, está previsto o direito à integridade pessoal, traduzido pelo respeito à integridade física, psíquica e moral e pela vedação de “penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes”, ao estabelecer que “toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano” (COSTA RICA, 1969).

Ainda, em seu artigo dezenove, estabelece que “toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado” (COSTA RICA, 1969).

No que concerne aos direitos das crianças especificamente, relevante sublinhar que, de acordo com o Escritório da ONU, os Estados Unidos é o “único país do mundo que não ratificou a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança” (ONU NEWS, 2018).

Além disso, os Estados Unidos se retirou do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (UNHRC) no mês de junho de 2018, sob a justificativa de que não concordava com a “política anti-israelense” do órgão. Coincidentemente, na mesma época em que o país recebeu duras críticas do alto comissário da entidade, Zeid Ra’ad Al Hussein, por sua política de tolerância zero contra a imigração (RUIC, 2018).

Sob outra ótica, os Estados Unidos concordaram com a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, quando se juntou a outros 145 países ao ratificar o chamado Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados, em 1968.

Estes tratados definem um “refugiado” como uma pessoa que foge do seu país de origem, em razão de receio fundado de perseguição com base em raça, religião, nacionalidade, filiação a um determinado grupo social ou opinião política.

Nos termos dos tratados, os refugiados têm o direito humano de solicitar asilo. Além disso, esses tratados proíbem os países de expulsar refugiados ou enviar imigrantes para países onde sua vida ou liberdade seria ameaçada com base nas mesmas cinco categorias, o que consagra o princípio do non-refoulement (proibição do rechaço).

O princípio da proibição do rechaço, apenas não poderá ser invocado se o refugiado for considerado, por motivos sérios, um perigo à segurança do país, ou se for condenado definitivamente por um crime ou delito particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do país no qual ele se encontre, de acordo com o artigo 33 do Protocolo em comento (RAMOS, 2017, p. 181).

Esses tratados também proíbem os países de punir refugiados por entrarem ilegalmente se sua vida ou liberdade foi ameaçada em seu país de origem.

Apesar disso, a administração Trump está processando também os requerentes de asilo. Significa dizer que, quando o governo dos EUA processa ou aprisiona esses solicitantes de refúgio, viola seus direitos protegidos nos dois tratados que reconhecem o direito humano de pedir asilo.

Outro tratado que protege os que estão envolvidos nas políticas de imigração do governo Trump é o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o qual teve por finalidade tornar juridicamente vinculantes aos Estados vários direitos já contidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, detalhando-os e criando mecanismos de monitoramento internacional relativos a sua implementação pelos Estados Partes (RAMOS, 2017, p. 155).

 Tal tratado foi ratificado pelos Estados Unidos em 1992 e determina que, quando um governo aprisiona uma pessoa, deve tratá-la humanamente e com respeito, em razão da dignidade inerente à pessoa humana. Assim, a detenção indefinida de imigrantes constitui violação ao Pacto.

Os Estados Unidos atualmente possui mais de 10.000 (dez mil) crianças detidas, que permanecem uma média de 56 (cinquenta e seis) dias em centros de detenção, de acordo com o jornal “The Washington Post”.

De acordo com dados do ano de 2017, compilados pelo “Global Detention Project” (Projeto de Detenção Global), os Estados Unidos têm mais de 300.000 (trezentos mil) imigrantes detidos em geral, dos quais mais de 40.000 (quarenta mil) são requerentes de asilo (NICHOLSON, 2018).

Destarte, com a nova ordem do presidente Trump determinando a detenção por tempo indeterminado, esses números certamente aumentarão, e o Pacto proíbe expressamente a detenção de imigrantes dessa maneira, visto que garante “o direito à liberdade” e proíbe a “prisão ou detenção arbitrária”, além de dispor que os Estados permitam que qualquer detido discuta sua detenção perante um tribunal, e sem demora (NICHOLSON, 2018).

No que se refere às condições de abrigamento das crianças, tem-se que de acordo com descobertas atestadas pela Academia Americana de Pediatria, as condições nas instalações de detenção nos EUA, que incluem forçar as crianças a dormir em pisos de cimento, banheiros abertos, exposição constante à luz, água e alimentos insuficientes, falta de instalações de banho e temperaturas extremamente frias, são altamente traumatizantes para as crianças (NICHOLSON, 2018).

Ainda segundo a academia, os efeitos psicológicos da detenção em crianças e pais geralmente incluem ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático (NICHOLSON, 2018).

Para as mais de duas mil crianças separadas de seus pais na fronteira, os efeitos são ainda mais prejudiciais. Em um artigo recente, publicado no “New England Journal of Medicine”, a pediatra Dra. Fiona Danaher afirmou que a separação pode impedir o desenvolvimento de crianças e causar doenças físicas e mentais ao longo da vida (NICHOLSON, 2018).

Ao deter e separar famílias, a própria estrutura da família é interrompida indefinidamente. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos reconhece explicitamente o direito fundamental à vida familiar, proíbe os governos de interferirem na vida da família e exige que eles protejam as crianças e suas conexões com a família, independentemente de sua origem nacional (NICHOLSON, 2018).

Nesse viés, destaca-se também a Declaração de Nova York sobre refugiados e migrantes, de natureza jurídica “soft law” (sem força vinculante), mas que ainda assim deve ser utilizado como instrumento de interpretação da dignidade humana e das obrigações internacionais de tratados (RAMOS, 2017, p. 305).

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A Declaração foi adotada por consenso entre os 193 Estados membros da ONU, tendo como pano de fundo o aumento dos fluxos de pessoas em todo o globo nas últimas décadas, tanto em virtude de conflitos internos, perseguições, violações maciças de direitos humanos, mudanças climáticas, desastres de toda natureza ou por busca de melhores condições de vida (RAMOS, 2017, p. 306).

Assim, para enfrentar essa situação, os Estados adotaram, sobretudo, os compromissos genéricos de proteger os direitos humanos de todos os refugiados e migrantes, não importando o estatuto migratório, respeitando a Declaração Universal de Direitos Humanos e demais tratados internacionais (RAMOS, 2017, p. 306).

Desse modo, ainda que se afirme que nem todos os imigrantes ilegais são requerentes de asilo, há a situação das crianças, pois ainda que tentem entrar no país ilegalmente, sozinhas ou acompanhadas de seus pais, devem ser prioritariamente protegidas.

4.1 Estados Unidos: legislação interna

Igualmente, a questão concernente aos imigrantes ilegais entra em conflito com as leis domésticas dos Estados Unidos da América.

A detenção de crianças viola um acordo judicial de 1997, que exige a libertação de crianças imigrantes dentro de 20 dias.

Outrossim, na data de 24 de junho de 2018, o presidente Trump determinou a imediata deportação de todos os imigrantes ilegais, sem qualquer revisão judicial, o que além de violar as leis acima consignadas, viola o princípio do devido processo, consagrado pela Constituição do país, que estabelece que o governo não pode privar ninguém de sua “vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal” (NICHOLSON, 2018).

Em fevereiro, a Suprema Corte se recusou a decidir sobre a legalidade da detenção de requerentes de asilo e outros imigrantes por longos períodos, sem audiências de fiança. O juiz Stephen Breyer, em discordância, argumentou que a detenção de imigrantes por longos períodos, sem qualquer revisão judicial era inconstitucional. Isto porque, a cláusula do devido processo legal - na própria linguagem da Carta Magna dos Estados Unidos - impede a detenção arbitrária, e a liberdade da restrição corporal está contida em uma esfera mais ampla de liberdade, aquela “lato sensu” protegida por lei (NICHOLSON, 2018).

4.2 Resolução da Organização dos Estados Americanos (OEA)

Em meio à crise, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou em junho de 2018, uma resolução patrocinada pelo México, que denuncia a política de imigração de tolerância zero do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (BUSINESS STANDARD, 2018).

A resolução, que foi também apoiada pelos países do Triângulo Norte da América Central (El Salvador, Honduras e Guatemala - países pobres e violentos que são a fonte de um grande número de solicitantes de asilo nos Estados Unidos), foi surpreendentemente aprovada por consenso e sem oposição dos Estados Unidos, durante uma sessão do Conselho Permanente da OEA.

Basicamente, a resolução ostentou enérgica condenação à prática de separação de famílias imigrantes no país, pois consiste em flagrante violação de direitos humanos, e solicitou medidas urgentes para reunificá-las (EXAME, 2018).

No documento, o Conselho Permanente também incentivou a intervenção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), fazendo visitas à região de fronteira a fim de “observar as consequências das políticas migratórias, de refúgio e asilo implementadas pelos Estados Unidos” (EXAME, 2018).

Apesar de não possuírem força vinculante e serem considerados meras recomendações, os relatórios temáticos da OEA são amplamente divulgados e podem servir para que a Comissão Internacional de Direitos Humanos venha a processar os Estados infratores perante a Corte Internacional de Direitos Humanos (RAMOS, 2017, p. 316).

Após o presidente Trump assinar a ordem executiva que põe fim ao processamento criminal automático dos adultos imigrantes em situação ilegal, que levava à separação das famílias, o texto da Resolução foi modificado somente para incluir menção à necessidade de “implementar as medidas recentemente anunciadas dirigidas a evitar a separação de famílias” (EXAME, 2018).

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Sobre a autora
Vittoria Bruschi Sperandio

Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pós-graduanda em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio. Aluna especial do Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB - Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SPERANDIO, Vittoria Bruschi. Os direitos humanos e a crise migratória na fronteira entre Estados Unidos e México. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5531, 23 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68288. Acesso em: 20 abr. 2024.

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