Apresentação
Após o ano de 2013, a economia brasileira experimentou queda na atividade, o que repercutiu bem desfavoravelmente sobre as finanças públicas.
A partir de então, os déficits fiscais se reproduziram, os limites da despesa com pessoal foram ultrapassados, decaiu a qualidade dos serviços públicos, houve significativos atrasos no salário dos servidores, fornecedores sofreram calotes, obras precisaram ser paralisadas, credores de precatórios não receberam seus haveres.
Tal contexto evidencia que, com o PIB em alta, fácil era o ajuste presente (mas não futuro) das novas despesas; comprova, demais disso, que, à época, os ritos fiscais de sustentabilidade não foram cumpridos. Exemplo disso, os gestores instituíam novas despesas ou renunciavam receitas, para isso alegando irreais fontes de custeio; tanto é verdade que, logo em seguida, os entes estatais registravam déficits e aumento da dívida.
De fato, mais outro gasto, de duração continuada, tem antes de apresentar sua base de cobertura, de sustentação. É o mesmo que acontece na economia doméstica; se a família financia uma casa própria, precisa trabalhar mais para aumentar sua renda e/ou cortar despesas com academia, cinema, viagens, estudos, entre outras.
Afinal, não há mágica; inexiste uma mão invisível de equilíbrio. Despesa sem receita, presente e futura, resulta sempre em déficit e dívida.
A Lei de Responsabilidade Fiscal e as cautelas na geração de nova despesa pública
No intento de gerar saldo financeiro para reduzir o estoque da dívida pública, a Lei de Responsabilidade Fiscal impõe cuidados relativos aos novos gastos.
De fato, se já é difícil bancar os gastos preexistentes, quanto mais as novidades na despesa, sobretudo as que pressionam, anos a fio, o orçamento público; isso sem falar das perpetuadas na vida financeira da entidade governamental.
Eis os artigos 15, 16 e 17 daquela disciplina, pouco observados por boa parte dos Estados e Municípios, mas cuja omissão tem suscitado certas recomendações de poucos Tribunais de Contas.
Para o juízo mais severo, as Cortes de Contas poderiam se escorar no artigo 15 da Lei Complementar nº101, de 2000, conjugado com o artigo 359-D do Código Penal:
“Art. 15. Serão consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público a geração de despesa ou assunção de obrigação que não atendam o disposto nos artigos 16 e 17”.
"Art. 359-D. Ordenar despesa não autorizada por lei:"
"Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos."
Prescritos no artigo 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal, os institutos da criação, expansão ou aperfeiçoamento da ação governamental, no mais das vezes, diferem do outro novo gasto público, o obrigatório de caráter continuado (art. 17 da LRF)[1], vez que este é sempre inevitável, inadiável, incomprimível, irrecusável; em rumo diverso, aquelas três primeiras iniciativas podem não ser de execução compulsória, desde que dispensem autorização legal específica, salvo, claro, a do orçamento anual.
Essa não obrigatoriedade é porque, no Brasil, boa parte da lei orçamentária autorizativa, não impositiva, discricionária, nisso considerado que o gasto obrigatório em educação, saúde, precatórios judiciais, não proveio daquele instrumento legal, mas, sim, da Constituição.
Operar uma recém construída escola é o mesmo que expandir, ampliar, incrementar a atuação de governo; a realização desse gasto pode, por exclusiva vontade do Poder Executivo, ser adiada, contingenciada, paralisada, em virtude, por exemplo, de queda na arrecadação. Aqui, opera-se, à perfeição, a discricionariedade do administrador estatal. Não há de se falar em despesa obrigatória, pois a licença emana apenas da genérica lei orçamentária, e, não, de instrumento legal próprio.
Em outro sentido, haverá de ser pago, quer queira ou não, o reajuste salarial do funcionalismo. No caso, descabe margem de manobra ao gestor público; a ordem de despesa não se origina unicamente da lei orçamentária, mas, antes, de lei local específica.
Em livro do qual fomos coautores [2], assim foi dito:
Entre a despesa obrigatória continuada e a despesa de expansão prevista, somente nos formais planos orçamentários (art. 16), entre uma e outra, há um instrumento coercitivo, a lei ou o ato administrativo normativo, que vincula o ordenador da despesa à execução da primeira; quer dizer, a despesa obrigatória continuada é, por natureza, incomprimível e inadiável, diferente da outra, na qual prevalece a discricionariedade do mandatário e, por isso, à vista de um possível déficit, pode sofrer restrição.
Explica-se melhor. A despesa contemplada na lei de orçamento, e compatível com o PPA e a LDO, não precisa, necessariamente, realizar-se, pois são formais tais instrumentos, eminentemente autorizativos; não impedem que as despesas executadas sejam menores que as estimadas (....)
Aumento salarial do funcionalismo, por exemplo, deriva de lei específica, que obriga o dirigente às providências cabíveis, quer ele queira ou não. Por outro lado, a implantação de serviço de atendimento ao usuário de serviços municipais é processo que pode, a qualquer tempo, ser interrompido, visto que o correspondente gasto dispensa lei específica; só requer dotação na genérica e flexível lei de orçamento, à mercê, sempre, de alterações conduzidas pelo poder discricionário do ordenador da despesa.
De lembrar que, a ver do Tribunal de Contas da União (TCU), renovação de serviços contínuos, tal revalidação contratual dispensa os procedimentos determinados nos artigos 16 e 17 da Lei de Responsabilidade Fiscal:
“Já as despesas contínuas, mormente as relacionadas a serviços de manutenção e funcionamento do setor público, por não serem criadas ou aumentadas em suas renovações contratuais ou licitações anuais, não se sujeitariam aos preceitos dos art. 16 e 17, em virtude de não constituírem gastos novos (foram criadas no passado e, portanto, já fizeram parte de leis orçamentárias pretéritas) (...)” (Acórdão 883/2005, Primeira Câmara).
A Criação, Expansão ou o Aperfeiçoamento da Ação Governamental
A construção de pronto-socorro ou do ginásio de esportes, a implantação do serviço de apoio ao pequeno agricultor, o programa que amplia o atendimento escolar, a informatização da Contabilidade, a abertura de nova estrada vicinal, todas essas ações têm a ver com ampliação ou melhoria dos serviços públicos, vale dizer, criação, expansão ou aperfeiçoamento da ação governamental; os correlatos gastos, em sua fase inicial, inaugural, oneram categoria orçamentária denominada Projeto. [3]
Argumentam alguns que erguer prédio público nem sempre aumenta a despesa, pois que esta já aponta, na lei orçamentária anual, sua fonte de custeio. Equivocada tal leitura, pois os gastos decorrentes pressionarão, sim, orçamentos futuros. De fato, o novo equipamento público demandará custos de operação e manutenção; uma nova escola requer contratação de professores, compra de material didático e alimentos para a merenda escolar; um novo posto de saúde solicita novos médicos e enfermeiros, além da aquisição de medicamentos e material de enfermagem.
Em outras palavras, o Projeto pode não aumentar a despesa, mas, dele decorrentes, as subsequentes Atividades (operação e manutenção), com certeza, elevarão, no futuro, os custos governamentais.
Na criação, expansão ou aperfeiçoamento há casos de fronteira, que ensejam esforço interpretativo. Pavimentar rua de terra é uma nova ação de governo; eis o Projeto; já o recapeamento de rua já antes asfaltada é habitual manutenção de serviço preexistente; eis aqui somente a Atividade[4]; não há de se falar em nova despesa pública; desnecessárias, neste último caso, as cautelas do artigo 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Nos termos do artigo 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal, a criação, expansão ou aperfeiçoamento da ação de governo, qualquer um desses Projetos requerem anotações no processo administrativo que abriga a licitação ou contratação direta (dispensa/inexigibilidade); isso, vale destacar, na mesma passagem em que se apresentam as cautelas do art. 38 da Lei nº 8.666, de 1993:
Nesse diapasão, o ordenador da despesa emitirá despacho com os seguintes elementos:
- Indicação sucinta do objeto a ser contratado.
- Estimativa trienal de impacto sobre duas variáveis fiscais: o orçamento e a disponibilidade de caixa; a diferença entre ambas reside nas sobras ou insuficiências financeiras de exercícios anteriores. Nesse passo, saldo descoberto de Restos a Pagar (déficit financeiro) afeta a receita coletada no exercício corrente, restringindo a despesa prevista para o ano (como se dizia antigamente: “há verba, mas não há dinheiro”); ao contrário, excedente de caixa (superávit financeiro) eleva as possibilidades orçamentárias do ano corrente. Exemplo: se o Município espera arrecadar R$ 20 milhões, mas têm de solver débitos descobertos do ano anterior (R$ 2 milhões), se assim for, baseando-se naqueles R$ 20 milhões calcula-se o impacto orçamentário, enquanto sobre a parcela diferencial, de R$ 18 milhões, verifica-se o impacto financeiro (R$ 20 milhões – R$ 2 milhões).
- Declaração atestando que a nova despesa conta com saldo na dotação própria e de consistente expectativa de suporte financeiro e mais: tal iniciativa se conforma ao plano plurianual (PPA) e à lei de diretrizes orçamentárias (LDO), peças essas que podem ser legalmente modificadas ao longo do próprio período de execução. Comprova-se a previsão orçamentária inserindo, no processo administrativo, cópia dos respectivos trechos do PPA e da LDO.
- Expressa autorização para realização do gasto.
Em sua missão pedagógica, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo apresentou modelo para os jurisdicionados atenderem ao artigo 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal (vide Anexo I).
Todas aquelas informações são fáceis de enunciar; não entravam a efetivação do gasto público. De outro lado, valorizam e, muito, um dos pilares da responsabilidade fiscal: o planejamento orçamentário. É assim porque o ordenador da despesa[5] atestará, de forma documentalmente comprovada, que o novo gasto se compatibiliza com o plano plurianual (PPA), a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e a lei orçamentária anual (LOA).
Nesse contexto, inverídicos e insinceros planos orçamentários colocam em risco a elegibilidade e a probidade administrativa do gestor governamental. Com efeito, não previstas no PPA, LDO e LOA, as novas despesas são tidas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público (artigo 15, da LRF), deixando o dirigente à mercê do artigo 359-D do Código Penal.
Assim, os comentados artigos 15, 16 e 17 são trechos vitais para a eficácia do planejamento orçamentário, cuja elaboração, no passado, constituía mera cópia do ano anterior, ou, como se diz no mundo do futebol: “era só pra cumprir tabela”.
Ademais, ao atestar a existência de dinheiro para o novo gasto, a Administração Financeira assume compromisso contra dispêndio sem cobertura de caixa: o grande motivo do déficit orçamentário dos municípios.
A Despesa Obrigatória de Caráter Continuado (DOCC)
No enfoque da Lei Complementar n.º 101/00, despesa obrigatória de caráter continuado é a que atende às seguintes condições:
• possui natureza corrente, ou seja, destina-se ao custeio geral da atividade pública (salário dos servidores; compra de material de consumo; contratação de serviços de terceiros; subvenção a entidades que cooperam com o ente estatal, entre outras);
• decorre de ato normativo ou de lei específica, que não seja a do orçamento anual;
• prolonga-se por, ao menos, dois exercícios financeiros.
A despesa obrigatória de caráter continuado pode se relacionar a em qualquer uma das ações finalísticas de programação: o Projeto, a Atividade ou a Operação Especial. Permeada que está pela impositividade, é gasto líquido, certo e inadiável; por isso a Lei de Responsabilidade Fiscal determina-lhe maiores cautelas do que as opostas às despesas, não obrigatórias, de criação, expansão e aperfeiçoamento:
• estudo trienal de impacto orçamentário-financeiro, tal qual antes explicado para os dispêndios de criação, expansão ou aperfeiçoamento da ação estatal.
• indicação das fontes de financiamento; se a nova despesa iniciar-se no exercício em que foi autorizada, essas fontes são as que amparam os créditos adicionais (art. 43, § 1.º, da Lei n.º 4.320);
• comprovação de obediência à margem de expansão determinada na lei de diretrizes orçamentárias (art. 4.º, § 2.º, V);
• demonstração de que, no ano da implantação, não se comprometerão as metas fiscais da lei de diretrizes orçamentárias;
• para os períodos seguintes, medidas de compensação financeira, pelo aumento permanente de receita ou o corte, também permanente, de despesas. O plano de compensação acompanhará, enquanto anexo, o projeto de lei orçamentária anual (art. 5.º, II).
De todo modo, a despesa obrigatória continuada pode ser compensada por eventual excesso de arrecadação de tributo próprio. É quando, por exemplo, o aquecimento da economia local amplia a base sobre a qual se calculam os impostos diretamente arrecadados pelo Município (IPTU, ISS, ITBI). A expectativa de que esse ganho real, acima da inflação, reproduza-se pelos exercícios futuros, por si só, indica o aumento permanente da receita como quer a Lei Complementar n.º 101, de 2000.
Nesse cenário, a Administração Financeira produzirá estudo que comprove a trajetória ascendente da receita, sobretudo nos próximos exercícios. Essa manifestação técnica conterá as premissas e a metodologia de cálculo utilizadas.
De seu lado, o pagamento de juros e outras despesas relativas à dívida municipal dispensam a estimativa trienal de impacto orçamentário-financeiro, bem como a indicação da fonte de custeio. Nessa linha de isenção também se incluem a revisão geral anual no salário dos servidores (art. 37, X, da CF); contudo, reajustes ou aumentos concedidos a determinadas carreiras do funcionalismo, despojados que estão do caráter da generalidade, não se beneficiam de tal exceção; devem, portanto, sujeitar-se às demandas fiscais em comento.
De mais a mais, a Lei de Responsabilidade Fiscal põe livre da compensação financeira as despesas que seguem:
• concessão de benefícios da seguridade social aos que já satisfaçam as condições legais (ex.: aposentadoria para os servidores que cumpriram os requisitos aplicáveis);
• expansão quantitativa dos serviços de saúde, previdência e assistência social (ex.: ampliação do número de leitos do hospital municipal);
• reajustamento de valor do benefício ou serviço, a fim de preservar o seu valor real (ex.: atualização monetária de aposentadorias e pensões).
ANEXO I - MODELO PROPOSTO PELO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO (Publicado no Diário Oficial do Estado de 13/09/2006).
O Tribunal de Contas do Estado recomenda aos responsáveis pelos órgãos jurisdicionados, que o despacho referido no artigo 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal contenha as informações que integram o MODELO abaixo proposto.
Modelo de despacho do Ordenador da Despesa-Atendimento ao art.16 da Lei de Responsabilidade Fiscal
Na qualidade de ordenador da despesa, declaro que o presente gasto dispõe de suficiente dotação e de firme e consistente expectativa de suporte de caixa. conformando-se às orientações do Plano Plurianual e da Lei de Diretrizes Orçamentárias, motivo pelo qual, às fls. ...., faço encartar cópia do respectivo trecho desses instrumentos orçamentários do Município.
Em seguida, estimo o impacto trienal da despesa, nisso também considerando sua eventual e posterior operação:
Valor da despesa no 1° exercício........................ .R$
Impacto % sobre O Orçamento do 1° exercício.. %
Impacto % sobre o Caixa do 1° exercício %
Valor da despesa no 2° exercício............................ .R$
Impacto % sobre o Orçamento do 2° exercício.. %
Impacto % sobre o Caixa do 2° exercício..................... %
Valor da despesa no 3° exercício........................... .R$
Impacto % sobre o Orçamento do 3° exercício.... %
Impacto % sobre o Caixa do 3° exercício.................... %
Data:
Nome, Cargo e Assinatura do Ordenador da Despesa:
Notas
[1] Art. 17. Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios.
[2] “A Lei de Responsabilidade Fiscal Comentada Artigo por Artigo”, 3ª. Edição, Editora NDJ, 2005, São Paulo, em coautoria com o doutor Sérgio Ciquera Rossi.
[3] Nos termos da Portaria MOG 42, de 1999, Projeto é um instrumento de programação, envolvendo um conjunto de operações, limitadas no tempo, das quais resulta um produto que concorre para a expansão ou o aperfeiçoamento da ação de governo;
[4] Atividade, um instrumento de programação envolvendo um conjunto de operações que se realizam de modo contínuo e permanente, das quais resulta um produto necessário à manutenção da ação de governo (segundo Portaria MOG 42, de 1999).
[5] Conforme o art. 80 do Decreto-lei nº 200, de 1967, ordenador da despesa é quem chancela nota de empenho e autoriza pagamento.