INTRODUÇÃO
Este trabalho é fruto da monografia de final de curso apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás.
O tema é algo com que nos identificamos. A paixão pelo Júri nos acompanha desde antes de ingressarmos no curso de Direito. Foi o prazer em assistir a filmes de tribunais e a sessões de Júri no fórum de Goiânia (GO) que nos guiou para a faculdade de Direito.
É sobre essa instigante instituição, de vasta história, de incisivos admiradores e ferrenhos opositores, que nos propomos a realizar este trabalho.
Resolvemos fazer um apanhado geral sobre a instituição. Algo que propiciasse ao leitor partir das origens da instituição, chegando até às sugestões de alterações em sua disciplina. O trabalho só se viabilizou graças à orientação do professor e magistrado em Goiânia, Adegmar José Ferreira, à coorientação do Juiz Presidente do 1º Tribunal do Júri de Goiânia (GO), Jesseir Coelho de Alcântara, e à presença na banca do Promotor de Justiça do 1º Tribunal do Júri de Goiânia, João Teles de Moura Neto. A eles, registro meu agradecimento.
Optou-se, nesta versão para apresentação na graduação, por buscar uma gama maior de informações e de abordagens sobre o tema, em vez de aprofundar em apenas uma parte dele. Este é, inclusive, o aspecto inovador do trabalho: reunir em um corpo único uma visão geral da instituição, elaborar uma compilação com classificação científica de todos os projetos de lei já apresentados sobre o assunto e, ao fim, fazer uma dedicada abordagem do Projeto de Lei nº 4.203/01, que em breve inovará a disciplina procedimental do Júri.
Tínhamos, então, definido o tema da monografia: "Da evolução da instituição do Júri no tempo, sua atual estrutura e novas propostas de mudanças: em especial o projeto de lei nº 4.203/01"; carinhosamente batizado pelos colegas de "Tudo sobre Júri".
Definido o tema, precisávamos optar por um referencial teórico. Para os capítulos referentes à estrutura e história do Júri, recorremos aos manuais existentes sobre o assunto. Não havia muito a inovar; procuramos compilar e reescrever da forma que entendíamos mais completa e inteligível. Para abordar as novas propostas de mudanças do Projeto de Lei nº 4.203/01, os referenciais mais idôneos foram a Exposição de Motivos do referido Anteprojeto, bem como a Exposição de Motivos do substitutivo ao projeto que foi apresentado e rejeitado no Congresso Nacional.
O método utilizado na confecção deste trabalho foi o dialético-argumentativo, e a modalidade de pesquisa, a bibliográfica-explicativa. Quanto à parte da abordagem crítica do projeto de lei que tramita na Câmara, partiu-se de premissas consideradas verdadeiras no meio jurídico-científico, para então chegar a uma conclusão sobre a positividade ou não da mudança nos pontos analisados.
A divisão do trabalho inicia-se pela origem e história do Tribunal do Júri, tanto mundial quanto nacional (inclusive em todas as nossas Constituições Federais), passa-se para uma análise da concepção e estrutura atual do Júri no Brasil (dispondo sobre o arcabouço legislativo que o regula hoje) e, ao fim, discutem-se as propostas de mudanças que já tramitaram e as que tramitam no Congresso sobre esse assunto.
Neste ponto, primeiramente, criou-se uma classificação para agrupar todos os projetos de lei propostos nas últimas décadas sobre a instituição e, após, foi feita uma abordagem pormenorizada das principais propostas de mudanças trazidas pelo Projeto de Lei nº 4.203/01, que, em breve, como promessa feita à comunidade pelo Governo Federal, alterará toda a disciplina do Júri no Código de Processo Penal. Este é o foco principal do nosso trabalho.
1. BREVE APANHADO DA ORIGEM E HISTÓRIA DO TRIBUNAL DO JÚRI
1.1. ORIGEM
Há uma grande imprecisão doutrinária sobre a origem do Tribunal do Júri. Esta é a síntese da opinião que se alcança após alguma pesquisa1. Nota-se que os autores sobre o assunto, ao tentarem preencher essa lacuna, frequentemente optam por um referencial mais por simpatia a outro autor do que por convicção baseada em critérios delimitados e científicos.
A controvérsia é tamanha que Carlos MAXIMILIANO, após muita pesquisa, chegou a afirmar que "as origens do instituto são tão vagas e indefinidas que se perdem na noite dos tempos2".
O grande dissenso nos posicionamentos deve-se a uma conjuntura de fatores: 1º) falta de acervos históricos seguros e específicos3; 2º) o fato de o instituto estar ligado às raízes do direito e quase sempre acompanhar quaisquer aglomerações humanas, desde, e principalmente, as mais antigas, esparsas e menos estudadas, dificultando o estudo e a pesquisa; 3º) e de maior relevância, o fato de não se conseguir destacar um traço mínimo essencial à identificação de sua existência, para se poder afirmar a sua presença em determinado momento da história.
Não se conseguir destacar um traço mínimo sensível à identificação de sua existência. Esse talvez seja, pelo que se compendiou, o maior obstáculo e o mais afeto à ciência jurídica para a compreensão mínima do que seja um Tribunal do Júri. Vê-se que, para alguns, a simples atribuição de competência a um conjunto de pessoas, em caráter provisório, para julgar alguns casos, já é suficiente para configurar a presença do instituto. Em outra linha de posicionamento, alguns, cremos que com acerto, sustentam que para receber o status de Tribunal do Júri é necessário que o órgão enfocado esteja revestido de certas características. Geralmente citam: a composição por pessoas desinteressadas do povo; a competência para o julgamento de infrações penais ou atos ilícitos cíveis; a soberania dos seus veredictos; o ritual solene; o voto secreto; o julgamento quanto à questão fática.
Geralmente, os mais liberais indicam a origem do Júri na época mosaica; alguns o sugerem na época clássica da Grécia e Roma, enquanto os mais conceitualistas preferem afirmar seu berço na Inglaterra, na época do Concílio de Latrão.
Como não temos o escopo de infirmar qualquer posicionamento, vamos, até por critério didático-científico, fazer um apanhado histórico das diversas visões, tentando elencar as passagens evolutivas do instituto abordado, citadas na melhor doutrina sobre o assunto.
Para muitos, entre eles o professor Pinto da ROCHA4, pode-se apontar a existência do Tribunal do Júri desde a época histórica que se convencionou tratar por mosaica. Surgira entre os judeus do Egito que, sob a orientação de Moisés, relataram a história das "idades antigas" através do grande livro, o Pentateuco.
Apesar das peculiaridades do sistema político-religioso local, em que o ordenamento jurídico subordinava os magistrados ao sacerdote, as leis de Moisés foram as primeiras que interessaram os cidadãos nos julgamentos dos tribunais. Lá, para quem assim defende, estariam os fundamentos e a origem do Tribunal do Júri, em muito pelo culto à oralidade exposta nos dispositivos, apesar do forte misticismo religioso. O julgamento se dava pelos pares, no Conselho dos Anciãos, e em nome de Deus.
O Conselho tinha suas regras definidas. Segundo relatam, funcionava à sombra de árvores, e a pena a se fixar não tinha limites. O julgamento propiciava relativa liberdade para se defender, boa publicidade do ato e a análise da prova com alguma segurança, através da proibição de condenação com apenas uma testemunha, o que hoje se chama de sistema legal de análise do conjunto probatório. A formação do conselho julgador do Tribunal Ordinário dava-se com a indicação de um membro escolhido por cada parte, e estes escolhiam o terceiro. Já nessa época era previsto recurso, primeiro para o pequeno conselho dos Anciãos e, após, ao grande Conselho de Israel.
Tão fortes eram as características teocráticas que Rui BARBOSA, negando aquela origem mosaica, chegou a afirmar que, assim pensando, sem melhores critérios, haverá até quem vislumbrará na Ceia do Senhor um Conselho de Jurados5.
Outra corrente de estudiosos6, mais céticos, prefere apontar nos áureos tempos de Roma o surgimento do Júri, com os seus judices jurati. Também na Grécia antiga existia a instituição dos diskatas, sem mencionar os centeni comites, que eram assim denominados entre os germânicos. Abordemos as mais importantes.
Na Grécia, o sistema de órgãos julgadores era dividido basicamente em dois importantes conselhos: a Heliéia e o Areópago. A Heliéia julgava fatos de menor repercussão, enquanto o Areópago, os homicídios premeditados.
Ricardo R. ALMEIDA7, ao defender a origem grega do instituto, afirma:
Na Atenas clássica, duas instituições judiciárias velam pela restauração da paz social: o Areópago e a Heliéia. Ambas apresentam pontos em comum com o Júri. O Areópago, encarregado de julgar crimes de sangue, era guiado pela prudência e um senso comum jurídico. Seus integrantes, antigos arcontes, seguiam apenas os ditames de sua consciência. A Heliéia, por sua vez, era um Tribunal Popular, integrado por um número significativo de heliastas (de 201 a 2.501), todos cidadãos optimo jure, que também julgavam, após ouvir a defesa do réu, segundo sua íntima convicção. Parecem elementos bastantes para identificar aqui os contornos mínimos, o princípio ao qual a ideia de justiça popular historicamente se remeteria.
Em Roma, são três os períodos em que se desenvolveu o processo penal romano: o processo comicial, o acusatório e o da cognitio extra ordinem.
No sistema acusatório8, com o surgimento das quaestiones perpetuae, é que se visualizam mais nitidamente os traços da instituição do Júri como hoje a conhecemos. Eram os julgamentos dos judices jurati.
A quaestio foi criada pela Lex Calpurnia de 149 a.C. E era como uma missão de inquérito, ou um conselho de julgamento, provisório, com a finalidade de investigar e julgar funcionários do Estado que tivessem prejudicado um provinciano9. Há relatos ainda de várias quaestio que se seguiram, criando um costume que acabou por torná-las perpétuas, dando início à jurisdição penal em Roma.
Rogério Lauria TUCCI10 cita várias semelhanças entre o procedimento das quaestiones em relação ao Tribunal do Júri Brasileiro:
a) Idêntica forma de recrutamento (cidadãos de notória idoneidade, cujos nomes constam de lista anualmente confeccionada pelo juiz-presidente);
b) Mesma denominação dos componentes do órgão judicante popular – jurados;
c) Formação deste mediante sorteio;
d) Recusa de certo número de jurados sem necessidade de qualquer motivação;
e) Juramento dos jurados;
f) Método de votação (embora realizada secretamente), com respostas simples e objetivas – sim ou não;
g) Decisão tomada por maioria de votos;
h) Soberania do veredicto;
i) Peculiaridades e atuação do juiz-presidente; e
j) Até pouco tempo atrás, indispensabilidade de comparecimento do acusado para realização do julgamento.
Entretanto, apesar da autoridade das palavras que se sucederam, a maior parte da doutrina11 não hesita em afirmar que a verdadeira origem do Tribunal do Júri, tal qual o concebemos hoje, deu-se na Inglaterra, quando o Concílio de Latrão, em 1215, aboliu as ordálias ou Juízos de Deus, com julgamento nitidamente teocrático, instalando o conselho de jurados.
Nesse momento histórico de luta por respeito a direitos individuais – diga-se também da promulgação da primeira constituição que se registra, a Carta Magna – viu-se a necessidade da instalação de um órgão transparente para exercer o ofício de julgar.
Como curiosidade, registra o Prof. Fernando da Costa TOURINHO FILHO12 que passaram a coexistir naquele país o Grande Júri (24 pessoas) e o Pequeno Júri (12 pessoas). O primeiro encarregado da acusação e o segundo do julgamento. Tal modelo perdurou até o ano de 1933. No início, os jurados não eram compostos de sujeitos imparciais, mas sim das testemunhas presenciais do suposto ato delituoso. Só mais tarde é que o pequeno júri passou a ser integrado por pessoas desinteressadas.
Nota-se também o grande sucesso da instituição em terra inglesa, talvez por muito bem se amoldar ao sistema dogmático jurídico da Common Law. Como este tem suas premissas nos costumes da sociedade, nada mais adequado do que um julgamento de um suposto criminoso pelos seus pares, já que estes darão o melhor diagnóstico da reprovabilidade da conduta no seio dos costumes daquela comunidade.
Esses são os posicionamentos que se encontram na literatura jurídica nacional. Não obstante, de valor científico é a citação que se faz de duas outras passagens da história mundial 13: o julgamento de Jesus, que para alguns teve feições de um Júri, haja vista o julgamento popular por aclamação (iudicium populum); e, de outro lado, os julgamentos na época da Idade Média, no feudalismo 14, em que os senhores eram julgados por senhores, e os vassalos por vassalos. Era uma forma de julgamento pelos pares às avessas, pois "corporativa".
1.2. HISTÓRIA DO TRIBUNAL DO JÚRI
1.2.1. História Mundial
Ultrapassada a sedutora discussão sobre a origem do Tribunal do Júri e, no objetivo de sedimentarmos uma visão geral, passamos ao ofício de discorrer sobre sua evolução histórica. Pelo fim colimado neste trabalho científico, manteremos nossa maior atenção na "vida" nacional do instituto.
Partiremos aqui do último ponto abordado no capítulo precedente sobre a origem do Tribunal do Júri: seu surgimento na Inglaterra, na época do Concílio de Latrão.
Arraigado na cultura inglesa após o seu surgimento trazido à lume pelo Concílio de Latrão, quando da Carta Magna, o Tribunal do Júri começou a ganhar espaço em outros ordenamentos jurídicos europeus. Diversos países daquele continente importaram suas linhas essenciais, o que era demonstrativo de seu prestígio.
Após a Revolução Francesa de 1789, muito pela conjuntura política momentânea, a França importou para o seu ordenamento jurídico o Tribunal do Júri.
É sabido que, naquele momento histórico, as mais tradicionais famílias detentoras ou influentes no poder nacional não gozavam de prestígio junto à grande massa popular – a plebe –, muito pela histórica exploração a que os submeteram. Os magistrados, todos oriundos dessas castas familiares, não gozavam da confiança do povo. Assim, era necessário montar um poder judiciário no qual o ofício jurisdicional pudesse ser exercido pelo novo estamento social que chegava ao poder. O Júri, dada a sua estrutura, era a melhor opção.
Eram características do Júri francês:
a) Julgamento de matéria criminal;
b) Publicidade dos debates;
c) A função de jurado tinha como requisito a condição de eleitor;
d) Quem não se inscrevesse na lista de jurados não poderia concorrer a qualquer função pública;
e) Processo penal trifásico: instrução preparatória, júri de acusação, debates com júri de julgamento;
f) Voto individual, sem necessidade de justificativa;
g) Necessidade da maioria para condenar, ou seja, oito votos de um total de doze jurados. Ao contrário do sistema inglês, onde para condenar era necessária a totalidade dos votos.
Arthur Pinto da ROCHA 15, analisando a instituição, chega a dizer que na França operou-se o grande rompimento de uma fase arcaica para uma nova fase, onde o júri era visto como consectário lógico de ideias iluministas e como consagração de uma garantia ao direito de liberdade do acusado, deixando apenas à memória a arcaica concepção mosaica, greco-romana.
Da França, o instituto se espalhou por quase toda a Europa, nem sempre com boa aceitação, experimentando atualmente naquele continente até certo declínio, como registra o mestre José Frederico MARQUES:
Com a Revolução Francesa foi [o Júri] transplantado para o continente, passando da França para os demais países europeus, excetuados a Holanda e a Dinamarca, que não o adotaram.
Não se adaptou, porém, o Júri aos costumes jurídicos dos povos do continente, onde nunca teve o prestígio e a eficiência demonstrados na Inglaterra. Paulatinamente, foi-se-lhe restringindo a competência, alterando-se-lhe as linhas características até transmudá-lo, como hoje está acontecendo, nos tribunais do escabinado, tão ao agrado das instituições germânicas 16.
E ainda, nesse sentido, afirma Tourinho FILHO:
A instituição do júri, no mundo de hoje, vem perdendo a importância que teve em outras épocas. Na Europa continental, por exemplo, apenas a Bélgica, a Noruega, a Espanha e alguns Cantões da Suíça (Geneve, Friburgo e Zurich) a admitem. Assim também Austrália, África do Sul, Inglaterra e Estados Unidos. Na América do Sul somente a Colômbia e o Brasil 17.
1.2.2. Constituição brasileira de 1824
O que levou o Júri a chegar ao Brasil? Santi ROMANO 18 explica, com clareza solar, esse fenômeno chamado de transmigração do direito, justificando-o, em muito, pela colonização, que determina ao colonizado ideias e leis, bem como pela própria e inata contagiosidade do direito. Sua explicação parece-nos amoldar-se qual mão à luva ao caso brasileiro.
No Brasil, o Tribunal do Júri teve um histórico mais favorável, apesar de, em determinados períodos, passar por certas crises institucionais. O seu constante avanço/retrocesso fez com que James TUBENCHLAK 19 afirmasse que o caminho percorrido pelo Júri no Brasil, desde 1822 até os tempos atuais, assemelha-se "... a uma guerra santa: ora avançando, ora compelido a recuar, ora deformado em sua competência material; entretanto, resistiu galhardamente a tudo isso, inclusive a dois períodos ditatoriais".
Como antecipado e afirmado de forma segura na doutrina, o Júri surgiu em nosso país no ano de 1822. Em 4 de fevereiro de 1822, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro, dirigindo-se ao então príncipe regente Dom Pedro, sugeriu a criação de um "juízo de jurados". A sugestão foi atendida em 18 de junho, por legislação que criou os "Juízes de Fato", com competência restrita aos delitos de imprensa, visando efetivar a lei de liberdade de imprensa no Rio de Janeiro. Os juízes eram nomeados pelo Corregedor e Ouvidores do Crime em número de 24, que precisavam ser "bons, honrados, inteligentes e patriotas 20". Os réus poderiam recusar 16 dos 24 juízes. Suas decisões não possuíam soberania, já que de seus julgados cabiam recursos ao príncipe.
Temos críticas à afirmação científica da origem do Tribunal do Júri na lei de 1822, apesar de ser consenso doutrinário. Ocorre que, em junho daquele ano, nosso país ainda não tinha atingido a emancipação política, que só ocorreu em 7 de setembro de 1822. Para nós, a lei de 1822 foi apenas a primeira aparição do Júri no nosso território, que algum tempo após se tornou o Brasil. A origem do Júri no Brasil deu-se com a Carta Política de 1824 ou, para os mais técnicos, na própria lei de 1822, mas apenas após a independência do país, já que a mesma acabou recepcionada pela ordem constitucional posterior.
Poucos anos após, na Constituição outorgada em 1824, o Júri foi disciplinado da seguinte forma, in verbis:
Art. 151. O poder judicial é independente e será composto de juízes e jurados, os quaes terão logar assim no cível como no crime, nos casos e pelo modo que os Códigos determinarem. (sic)
Art. 152. Os jurados pronunciam sobre o fato e os juízes aplicam a lei.
Como se vê, a Constituição do Império alocou-o na estrutura do Poder Judiciário e lhe deu competência para o julgamento de causas cíveis e criminais, apesar de que, na esfera cível, ele nunca fora efetivamente utilizado por falta de regulamentação 21.
O histórico do Tribunal do Júri no Brasil durante o Período Imperial foi de certa instabilidade normativa. Diversas leis o modificaram em diversos aspectos. Talvez seja reflexo da instabilidade política de uma nação recém-emancipada, que ainda estava a experimentar seus institutos, até alcançar uma maturidade legislativa.
Vindo regulamentar o aparelho repressivo estatal moldado na lei maior da época, foi editado o Código Criminal do Império de 1832. Muitos, como o jurista Cândido de Oliveira FILHO 22, chegam a criticar a legislação ao dizer que foi dada uma abrangência exagerada ao Júri. Diz o mestre:
Imitando as leis inglesas, norte-americanas e francesas, deu ao Júri atribuições amplíssimas, superiores ao grau de desenvolvimento da nação que se constituía, esquecendo-se, assim, o legislador de que as instituições judiciárias, segundo observa Mittermaier, para que tenham bom êxito, também exigem cultura, terreno e clima apropriados.
Quase todos os crimes previstos no ordenamento foram passados para a competência do Júri. Sua composição dava-se inicialmente por um Júri de acusação, com 23 jurados, e um Júri de sentença, composto por 12 membros. Estavam aptos a serem jurados todos os eleitores, à exceção das grandes autoridades, por deferência, tal qual existe hoje.
José Frederico MARQUES detalha a forma de funcionamento da então lista de jurados:
A lista dos cidadãos aptos para serem jurados era feita, em cada distrito, por uma junta, composta do juiz de paz, do pároco e do presidente da câmara municipal, ou, na falta deste, de um vereador, ou de ‘um homem bom’, nomeado por aqueles. A lista devia ser afixada à porta da paróquia, ou publicada na imprensa onde houvesse, remetendo-se uma cópia às câmaras municipais e ficando outra em poder do juiz, para revisão a ser procedida no dia primeiro de janeiro de cada ano, pelo mesmo processo. Na revisão, seriam incluídas as pessoas omitidas e as que tivessem adquirido a qualidade de eleitor, eliminando-se os falecidos, os que tivessem perdido a qualidade de eleitor e os que tivessem mudado do distrito 23.
J. C. Mendes de ALMEIDA e José Frederico MARQUES, em suas obras, narram como se davam as atividades no Júri:
No dia do Júri de acusação, eram sorteados sessenta juízes de fato. O juiz de paz do distrito da sede apresentava os processos de todos os distritos do termo, remetidos pelos demais juízes de paz, e, preenchidas certas formalidades legais, o juiz de direito, dirigindo a sessão, encaminhava os jurados, com os autos, para a sala secreta, onde procediam a confirmação ou revogação das pronúncias e impronúncias.
Constituíam, assim, os jurados, o conselho de acusação. Só depois de sua decisão, podiam os réus ser acusados perante o conselho de sentença. Formavam este segundo Júri doze jurados tirados à sorte: à medida que o nome do sorteado fosse sendo lido pelo juiz de direito, podiam acusador e acusado ou acusados fazer recusações imotivadas, em número de doze, fora os impedidos 24.
O senador Alves BRANCO, visando castrar um pouco da excessiva liberalidade conferida pelo Código de Processo Criminal, propôs uma reforma parcial da legislação em setembro de 1835, principalmente no que se referia ao Júri e aos juízes de paz. Em 31 de janeiro de 1842, o Regulamento nº 120 trouxe sérias alterações no Júri, bem como na organização judiciária nacional.
O Júri de acusação foi extinto, passando para a competência dos juízes municipais, ou das autoridades policiais (desde que com a confirmação daqueles), a formação da culpa e a sentença de pronúncia.
Em 1841, foi editada nova lei, a de nº 261, que, entre outras disposições, manteve a apelação de ofício, feita pelo juiz de direito perante a Relação (equivalente aos atuais Tribunais de Justiça). O recurso era facultado ao juiz quando este entendesse que a decisão foi contrária à prova dos autos. Se provido o apelo pela Relação, era ordenado novo júri com outro corpo de jurados. Como curiosidade, anote-se que essa lei ainda acabou com a necessidade de unanimidade para a aplicação da pena de morte, bastando dois terços dos votos, e, para as demais deliberações, contentar-se-ia com a maioria absoluta dos votos. Em caso de empate, operava o favor rei, pro reo.
Duas reformas 25, uma em 1871 e outra em 1872, mudaram a estrutura do aparelho repressor criminal da época. Mudou-se em muito a atribuição de competências, deixando a competência para pronunciar exclusivamente na mão de juízes (municipais ou de direito) e para presidir a sessão de Júri a um desembargador da Relação.
1.2.3. Constituição de 1891
Proclamada a República, a instituição do Júri foi laconicamente mantida. Assim pronunciou a Carta de 1891, em seu art. 72, § 31: "É mantida a instituição do Júri". Entretanto, é de se notar o seu deslocamento para o rol de garantias individuais.
Narra a história que o Júri quase foi abolido do nosso ordenamento nesse momento. Inclusive, o projeto original de constituição não o contemplava. Credita-se a Rui Barbosa, seu defensor ferrenho, a manutenção do instituto. Talvez por isso a previsão sucinta no texto constitucional de 1891 que, anote-se, acabou gerando grande dissenso jurisprudencial sobre o sentido e alcance do dispositivo da lei fundamental.
A Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acabou, nessa época, dado o vazio regramento constitucional, sendo a maior referência na defesa da instituição. José Frederico MARQUES 26, em sua obra A instituição do Júri, cita acórdão lapidar deste posicionamento:
São características do Tribunal do Júri: I – quanto à composição dos jurados, a) composta de cidadãos qualificados periodicamente por autoridades designadas pela lei, tirados de todas as classes sociais, tendo as qualidades legais previamente estabelecidas para as funções de juiz de fato, com recurso de admissão e inadmissão na respectiva lista, e b) o conselho de julgamento, composto de certo numero de juizes, escolhidos a sorte, de entre o corpo dos jurados, em numero tríplice ou quádruplo, com antecedência sorteados para servirem em certa sessão, previamente marcada por quem a tiver de presidir, e depurados pela aceitação ou recusação das partes, limitadas as recusações a um numero tal que por elas não seja esgotada a urna dos jurados convocados para a sessão; II – quanto ao funcionamento, a) incomunicabilidade dos jurados com pessoas estranhas ao Conselho, para evitar sugestões alheias, b) alegações e provas da acusação e defesa produzidas publicamente perante ele, c) atribuição de julgarem estes jurados segundo sua consciência, e d) irresponsabilidade do voto emitido contra ou a favor do réu.
Como consequência da adoção da Forma Federativa de Estado, pelo Decreto nº 848/1890 foi criado o Júri Federal. Era composto de 12 jurados, sorteados de 36 cidadãos do corpo de jurados estadual da comarca. A Lei Federal nº 221 tornou o corpo de jurados federais menos dependente do corpo de jurados estadual da comarca (art. 11. da Lei nº 221; outra lei, a 515/1898, alterou a competência da Justiça Federal). Pouco após, o Decreto Federal nº 3084/1898 consolidou essas regras, constituindo, durante muitos anos, o Código de Processo Civil e Criminal da Justiça Federal.
1.2.4. Constituição de 1934
A nova Lei Primeira de 1934 tornou a alterar a colocação do Júri no texto constitucional. Recolocou-o no capítulo destinado à estrutura do Poder Judiciário, minorando a sua relevância jurídica, por não mais o dispor como direito individual.
Assim estatuía aquela Carta Política: Art. 72, in verbis: "É mantida a instituição do Júri, com a organização e as atribuições que lhe der a lei".
Costa MANSO 27, com peculiar sobriedade, assim se manifestou, em aplaudido voto, sobre o texto da novel Constituição:
A constituição de 1934, nem declarou que o Júri era mantido como existia na época da sua promulgação, nem determinou que fossem guardados tais e tais elementos características. Foi mais longe: confiou ao critério do legislador ordinário – não só a organização do Júri, senão também a enumeração das suas atribuições. Quis a Assembléia Constituinte, sem dúvida, atender à necessidade de uma reforma radical da vetusta instituição, de acordo com os ensinamentos da ciência penal moderna e os imperativos da defesa social contra o delito.
1.2.5. Constituição de 1937
A Constituição de 1937 foi silente quanto à instituição do Júri. Entendemos que tal se deve à conjuntura histórica do momento. Getúlio Vargas havia acabado de dar um Golpe de Estado no país e outorgado à nação uma lex mater que refletia a forma centralizada e ditatorial de poder que instalou. Fase que ficou conhecida como Estado Novo. Por essa feição, e pela velada simpatia de seu governo com o nazi-fascismo, tal carta ficou conhecida como "Polaca", em referência e analogia à existente na Polônia. Seu objetivo parecia ser resguardar o máximo de poder em suas mãos.
Com a omissão constitucional, surgiu a discussão sobre se estava ou não abolido 28 o Júri no Brasil. Visando pôr fim aos questionamentos, foi editado o Decreto-Lei nº 167/38, regulando o Tribunal do Júri. Na exposição de motivos de tal norma, lavrada pelo então Ministro da Justiça, afirmou-se a subsistência do tribunal popular, por estar, sustentou-se, compreendido no dispositivo aberto do art. 183. da Carta de 37, que declarava vigentes, enquanto não revogadas, as leis que, explícita ou implicitamente, não contrariassem as disposições da constituição. Veja-se que o instituto perdeu status constitucional, podendo ser modificado a qualquer momento pelo chefe do Executivo.
Se houve o contento com a manutenção do Júri, quanto à sua nova disciplina a discórdia e as críticas foram gerais. Ocorre que o novo estatuto feriu preceitos basilares da existência do instituto, chegando ao ponto de muitos 29 afirmarem a permanência apenas formal do órgão em nosso ordenamento.
Com a instituição da apelação sobre o mérito foi abolida a soberania de seus veredictos, dando ao Tribunal de Apelação poder para reapreciação do julgado, inclusive para mudar o decidido. Tais normas acabaram incorporadas pelo texto original do vigente Código de Processo Penal. Alguns 30, como José Frederico MARQUES e Ari FRANCO, não amantes do Júri, aplaudiram a nova lei, talvez avistando a morte virtual da instituição.
1.2.6. Constituição de 1946
Com a saída de Getúlio Vargas do Poder, operou-se no plano político nacional uma reabertura democrática. Visando absorver esse novo ideal, foi promulgada nova Constituição Federal, a de 1946. Como consectário da nova mentalidade, os seus dispositivos, entre eles os regentes do Júri, estavam impregnados de ideais democráticos e liberais 31.
Mais uma vez o Tribunal do Júri foi deslocado para as normas de garantias individuais, restabelecendo-se a soberania de seus veredictos. Assim estava positivado no art. 141, § 28 daquela Constituição, in verbis:
Art. 141. § 28: É mantida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o número de seus membros e garantido o sigilo das votações e plenitude da defesa do réu e a soberania dos seus veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Na vigência dessa ordem constitucional foi editada a Lei nº 263/1948. Tal lei teve a função de adaptar o procedimento do Júri, disciplinado pelo Código de Processo Penal e pela Lei 167/38 suso designada, ao mandamento da nova lei basilar da Nação (CF/46). Entre outras disposições, permitiu ao Tribunal, no caso de reconhecer julgamento contra a prova dos autos, cassar a decisão, mandando o caso a novo julgamento. Foi também ampliado o tempo dos debates de uma hora e meia para três horas.
Apesar das inúmeras insurgências pela inconstitucionalidade de tal lei, o Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades 32, afirmou a valia da norma. Decidiu que soberania não se confunde com arbitrariedade para julgar contra as provas dos autos e que aquele não era o único princípio consagrado na Carta Magna, também o eram a liberdade e a verdade material. Ainda, esclareceu que não havia ferimento à soberania do Júri, já que o tribunal, cassando a decisão, mandava o caso a novo julgamento pelo júri, não julgando ele mesmo o caso. A palavra final ficava ainda com o conselho popular.
Pela Lei nº 1521/51 foi ampliada ao Júri a competência para julgamento de crimes contra a economia popular. Tal competência perdurou até a edição da Constituição Federal de 1969.
A densa sistematização do Júri em nível constitucional, a meu ver, impediu que o legislador ordinário, tal como feito durante o Estado Novo, subvertesse a instituição, atribuindo-lhe competências que o desvirtuariam de sua função, ou privando-lhe de prerrogativas existenciais, como a soberania de suas decisões.
1.2.7. Constituição de 1967
Novo momento histórico se dá com o Golpe militar de 1964, a fazer surgir mais uma ordem constitucional. Rompe-se com o ordenamento vigente e edita-se a Constituição de 1967.
Assim dispunha o art. 150, § 18 da CF/67, in verbis: "São mantidas a instituição e a soberania do Júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida".
Esse texto teve vida efêmera, tão só até a edição da Emenda nº 01/69.
1.2.8. Constituição de 1969 (Emenda 01 de 69)
A Emenda nº 01 de 1969, para muitos uma nova constituição, previu a instituição do Júri nos seguintes termos: "Art. 153. §18, in verbis: É mantida a instituição do Júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida."
Apesar de nada dispor relativamente à soberania do Júri, a jurisprudência 33 firmou-se no sentido de que não se compreende a instituição sem sua soberania. Ainda afirmaram que o disposto na emenda carecia de regulamentação e que, como não houve a devida regulamentação, aplicar-se-ia ainda o Código de Processo Penal.
Na vigência dessa constituição foi aprovada a chamada Lei Fleury (Lei 5.941/73), dispondo que o réu pronunciado, sendo primário e de bons antecedentes, poderia ser deixado em liberdade. Tornou, ainda, a reduzir o tempo dos debates para duas horas, e meia hora para réplica e tréplica.
Ademais, não se notaram grandes turbulências nesse último período precedente à Constituição vigente.
1.2.9. Constituição de 1988
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, veio sedimentar um momento de muito prestígio para o Tribunal do Júri no ordenamento vigente. Foi o Júri visualizado como uma das faces demonstrativas da nova democracia que aflorou no país após a queda do regime militar.
Foi o Júri re-elencado entre as garantias individuais e resguardados a soberania, a plenitude de defesa (em proporções antes desconhecidas no ordenamento jurídico), a competência mínima e o sigilo das votações. Anote-se que, segundo a melhor doutrina nacional, possui o Júri, hoje, status de cláusula pétrea.