Sistema, norma e justiça nas teorias de Hans Kelsen e Niklas Luhmann

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31/08/2018 às 16:52

Resumo:


  • O direito é um sistema autônomo e normativo, com teorias como a de Hans Kelsen destacando a pureza científica do direito ao separá-lo de influências externas, enquanto Niklas Luhmann enfatiza a autonomia do sistema jurídico em relação à sociedade, apesar de reconhecer a interdependência entre sistema e ambiente.

  • A justiça no direito é um conceito complexo e multifacetado, abordado de maneiras distintas por filósofos e juristas, variando entre visões absolutas e relativas, com algumas teorias tratando-a como uma entidade metafísica inalcançável e outras como um princípio orientador das operações do sistema legal.

  • Normas jurídicas são fundamentais para a estrutura e funcionamento do sistema do direito, servindo como base para a análise, interpretação e aplicação das leis, com destaque para a relação entre normas positivas e normas de justiça, e a influência de princípios e regras na dinâmica jurídica.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3.A Justiça e o Direito

A Justiça é um tema primordialmente abordado desde os antigos. Trata-se de uma entidade de difícil definição e, por conseguinte, verificação no cotidiano. A relação entre direito e justiça também é abordada por vezes de forma conjunta, por outras, separada. Contudo, é inegável a importância dada por aquele a esta – razão pela qual muitas vezes se confundem. Ademais, a justiça trabalhada pelo direito pressupõe que haja um sistema de normas jurídicas.

3.1 Duas abordagens basilares do tema

Segundo Bittar, a Justiça trabalhada pela filosofia ocidental possui relação intrínseca com três noções, dentre elas a de Platão e de Aristóteles – a terceira é a noção romana de dar a cada um o que é seu (BITTAR 2015, p. 594-95). A abordagem platônica da justiça é eminentemente metafísica e ideal, quando representante do Bem Supremo, uma vez que sua realização concreta pelo ser humano não pode ser atingida (BITTAR 2015, p. 135-38). Isso porque no sistema filosófico de Platão há uma realidade metafísica/divina subjacente à realidade concreta humana. Enquanto entidade metafísica, o que se entende por justiça no mundo sensível pode ou não corresponder com a justiça metafísica. Percebe-se, dessa forma, que a abordagem platônica pouco contribui para a promoção prática da justiça, ao passo que seu entendimento como entidade metafísica permite aferir sua substância como algo a ser buscado incessantemente pelo ser humano. Isso é percebido, por exemplo, em um dos diálogos no Livro I da República, pelos quais a todo momento a justiça é defendida como algo vantajoso, benevolente e sábio, sem, contudo, defini-la precisamente.

Por outro lado, a abordagem aristotélica é concreta, pois a justiça é entendida no campo da ética como um saber prático (BITTAR 2015, p. 141). Assim, o justo um meio-termo com pretensão de orientar o comportamento humano. Ademais, ressalta Bittar, que a abordagem aristotélica da justiça prática permite a definição do tema sem constranger possíveis variações principológicas no tempo, e nos casos particulares.

Sua principal abordagem do tema reside na obra Ética a Nicômaco, pela qual Aristóteles preconiza a ética do meio-termo quando trata das disposições de caráter e das virtudes. Para ele, a justiça só pode se realizar pela alteridade, quando se pratica o bem a outrem: nisso consiste a justiça quando confrontada com a lei. Aristóteles ainda expõe a justiça como probidade e injustiça como improbidade, quando se fala em justiça e injustiça particulares, sendo que ambas são partes do conceito mais amplo de justiça – como licitude e ilicitude.

Aqui se pode adentrar ao conceito de equidade para Aristóteles, que coaduna com o que é justo, pois a distribuição de coisas entre partes de uma constituição deve ser equânime. Contudo, a equidade deve ser proporcional a cada caso, pois só assim será intermediária (meio-termo); logo, o que viola a proporção é injusto: a equidade é entendida de acordo como o que é proporcional – e nisso consiste a justiça distributiva para o filósofo grego.

Tendo em vista o conceito de equidade, Aristóteles preconiza que a justiça corretiva se caracteriza por ser um ponto intermediário entre a perda e o ganho. Contudo, aqui o meio-termo leva em consideração apenas a distribuição injusta e não a qualidade das pessoas em questão: “não faz diferença que um homem bom tenha defraudado um homem mau ou vice-versa, nem se foi um homem bom ou mal que cometeu adultério; a lei considera apenas o caráter distintivo do delito e trata as partes como iguais” (ARISTÓTELES, 1132a, 5; 1984, p. 126). Por fim, a relação entre justo e equitativo é levantada por Aristóteles que as distingue pela legalidade: a equidade não é a justiça legal. Ora, a lei não prevê todos os casos concretos possíveis para sua aplicação. Cabe a equidade corrigir essa justa omissão, sendo, portanto, “uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade” (ARISTÓTELES 1137b, 25; 1984, p. 136).”.

3.2 O relativismo de Hans Kelsen

Dentro do universo das normas, o jurista austríaco Hans Kelsen preconiza a difícil relação entre normas de direito positivo e normas de justiça. O cerne de sua argumentação resulta na justiça como algo relativo. Isso porque as normas de direito positivo não se confundem com as normas de justiça. Em sua obra “O Problema da Justiça” (1998), expõe que uma norma de justiça é parâmetro para atribuir o adjetivo “justo” às condutas humanas em geral. Desse modo, uma conduta é considera justa quando de acordo com essa norma de justiça, e injusta quando do contrário.

Kelsen ainda assevera que essa valoração se estabelece tão somente entre norma e conduta, e não entre normas; ou seja, não se pode valorar uma norma de direito positivo a partir de uma norma de justiça, pois ambas são em si valores. Nisso, só uma das normas pode ser considerada como válida – e por validade, entende como força vinculadora da norma-, pois “como poderia também uma norma, que constitui um valor – e toda norma constitui um valor-, como poderia um valor ser valorado, como poderia um valor ter um valor ou ter mesmo um valor negativo? Um valor valioso é pleonasmo, um valor desvalioso, uma contradição em termos” (KELSEN 1998, p. 7).

A partir disso, as normas de justiça podem exercer influência no ato instituidor das normas de direito positivo, no momento legiferante, mas não nas normas positivadas. É no ato normativo que se pode haver valoração por parte das normas de justiça no mundo do ser. As normas já positivadas, contudo, não são confrontadas com as normas de justiça por também constituir um valor, um dever-ser, e, como não pode haver conflito entre valores, a validade (a força vinculadora) da norma positiva subsiste mesmo sendo “injusta”- quando confrontada com a norma de justiça. Isso porque o sentido subjetivo do ato legiferante não se confunde com seu sentido objetivo – e por isso pode ser valorado pela norma de justiça-, mas a norma positiva, por outro lado, sim. Com isso, o cerne do pensamento kelseniano, e também do positivismo jurídico, consiste em pressupor a validade das normas positivas independente da validade das normas de justiça, resultando que a norma positiva não é justa nem injusta; por conseguinte, direito e moral não se confundem.

No que tange à igualdade, Kelsen a expõe como uma consequência lógica da norma. A igualdade, no sentido de tratar todos igualmente, é entendida pelo jurista como utópico. O tratamento igual, na verdade, pressupõe e leva em conta as desigualdades entre os indivíduos. Ora, as normas positivas prescrevem determinados contextos, tal como elenca determinadas desigualdades e despreza outras, para que uma norma deva ser aplicada. Na aplicação da norma, quem se encaixa nesses contextos referenciados são “iguais”. Logo, a igualdade pelo tratamento da norma resulta tautológico.

Contudo, há que se diferenciar a igualdade perante a lei e a igualdade na lei. A esta última cabe todo o raciocínio já exposto sobre normas de justiça e normas positivas, e sua relação; pois que a igualdade na lei é uma valoração de acordo com uma determinada norma de justiça, ao passo que a igualdade perante a lei resulta tautológico da norma positiva.

Contudo, esse raciocínio de que a lei pressupõe aplicação igualitária não deixa de ser utópico, posto que há casos em que não se tem claro aquilo que a lei prescreve. Esse problema já é abordado, e de certa forma resolvido, em Aristóteles. Este se utiliza da equidade como forma de solucionar a impossibilidade de aplicação em todos os casos possíveis pela lei, considerada sua demasiada generalidade. O problema consiste na falta de critérios para aplicação dessa equidade nos casos concretos não abarcados pela lei. Hoje é sabido que o magistrado se utiliza da analogia, os costumes e os princípios gerais do direito em casos de lacuna na lei, critérios estes mais sofisticados, mas que não excluem a equidade em seu exercício.

3.3.A justiça como desconstrução

Uma das teorias acerca da justiça que se insere na abordagem platônica do termo é a de Jacques Derrida. O filósofo franco-argelino se tornou o grande instaurador da teoria da desconstrução. Em seu livro “Força de Lei” (2010), trabalha a justiça e o direito como entidades diferentes. Para o autor, o direito pressupõe a força para que se possa garantir a aplicabilidade da lei, por conseguinte, a justiça em direito. Contudo, Derrida, consoante Pascal e Montaigne, preconiza que a obediência forçosa às leis não se dá pela justeza destas, mas sim, por terem autoridade.

Há um ponto em um dos escritos de Montaigne que chama a atenção de Derrida, que seria “o fundamento místico da autoridade”, uma “ficção legítima”, ou seja, aquilo que edifica a obediência às leis, e que, por vezes determina o que é justo ou injusto:

Mas se isolarmos a alçada, de certo modo funcional, da crítica pascaliana, se dissociarmos esta simples análise da presunção de seu pessimismo cristão, o que não é impossível, podemos então nela encontrar, como aliás em Montaigne, as premissas de uma filosofia crítica moderna, ou uma crítica da ideologia jurídica, uma dessedimentação das superestruturas do direito que ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesses econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade (DERRIDA 2010, p. 23)

A partir daí, Derrida questiona os fundamentos da justiça do direito, preconizando que esta surge a partir de uma força performativa, um ato fundador, que rompe com a linearidade histórica por não ser covalente com forças anteriores que o legitimem; nesse momento, inexiste tanto o justo quanto o injusto assim como tal ato não é justo nem injusto. É isto que Derrida entende por “fundamento místico da autoridade”. Essa noção de fundamento místico muito se assemelha à norma fundamental kelseniana, porquanto ambas não representam definidamente o conteúdo do ato fundador de um ordenamento jurídico – para Kelsen, trata-se apenas de um pressuposto lógico. Dessa forma, a validade das normas jurídicas que encontram amparo na norma fundamental provém, segundo a noção de Derrida, dessa justiça do direito encontrada no ato de força performativa.

Tendo tudo isso em vista, Derrida pode afirmar que o direito é desconstruível, “ou porque ele é fundado, isto é, construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis [...], ou porque seu fundamento último, por definição, não é fundado” (DERRIDA 2010, p. 26). A partir dessa conclusão, e tendo por base que a justiça fora do direito não é determinável, Derrida promove o cerne do seu pensamento ao afirmar que, por também não ser determinável, “a desconstrução é a justiça” (DERRIDA 2010, p. 27). Ou seja, o ato de desconstrução é a garantia da justiça em si, tal como a força é garantia da justiça como direito.

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Derrida ainda prossegue diferindo ainda mais o direito da justiça em si. Para o filósofo, a justiça é uma experiência do impossível, ou seja, não existe, não podemos experimentá-la, mas tão somente querê-la. A simples aplicação de uma regra, o respaldo jurídico de uma sentença não coaduna com a justiça, mas tão somente com o direito. Tais afirmações podem levar à conclusão de que a desconstrução se baseia em uma visão niilista de justiça como entidade, em um afastamento do tema; contudo, Derrida preconiza que, pelo contrário, a atividade desconstrutiva tem por base o resgate dos pressupostos fundantes do direito, da análise histórica do sistema, dos casos em particulares confrontados com a universalidade das normas, enfim

Manter sempre vivo um questionamento sobre a origem, os fundamentos e os limites de nosso aparelho conceitual, teórico ou normativo em torno da justiça é, do ponto de vista de uma desconstrução rigorosa, tudo salvo uma neutralização do interesse pela justiça, uma insensibilidade à justiça. Pelo contrário, é um aumento hiperbólico na exigência da justiça, a sensibilidade a uma espécie de desproporção essencial que deve inscrever, nela, o excesso e a inadequação (DERRIDA 2010, p. 37)

Em suma, a justiça no pensamento derridiano se resume a uma experiência incalculável, mas que é a todo momento ansiada pela atividade desconstrutiva. É por meio desta que será possível, em algum momento, pequenas revoluções que possam garantir o progresso social. Ademais, a relação entre justiça do direito e justiça em si muito se assemelha ao sistema filosófico de Platão, que separa o a realidade concreta e o mundo das ideias subjacente. Ou seja, a justiça do direito em Derrida não representa a justiça do bem supremo, que é, inclusive, indefinida, assim como o que se tem por justo no mundo concreto não coaduna com a justiça metafísica de Platão. Contudo, enquanto o filósofo grego pressupõe a difícil ou mesmo quase impossível implementação da justiça em si no mundo sensível, o filósofo franco-argelino preconiza a necessária desconstrução como forma de atingir a justiça em si, que, paradoxalmente, é inatingível.

3.4 A justiça como fórmula de contingência

Niklas Luhmann aborda a justiça em sua obra “O Direito da Sociedade” (2016), enquanto uma fórmula de contingência, pela qual o sistema legal não mais se baseia em um critério unívoco de justiça ao passo que a arbitrariedade em face da contingência nas decisões não é aceita. As fórmulas para a contingência consistem na distinção entre determinabilidade e indeterminabilidade, e nisso representam a unidade do sistema. Ademais, essa mesma distinção não é algo dado factualmente no presente, mas leva em conta as diversas possibilidades mutualmente possíveis: “todas as normas jurídicas e todas as decisões, todos os motivos e todos os argumentos podem assumir outra forma” (LUHMANN 2016, p. 294).

Contudo, essa função de distinguir o determinável do indeterminável deve ser, segundo Luhmann, ivizibilizada. A justiça é uma fórmula para a realização de expectativas normativas, é uma norma, mas não pode ser um critério de seleção, “pois assim a norma da justiça se colocaria ao lado de outros critérios de seleção do sistema e perderia sua função de representação no sistema” (LUHMANN 2016, p. 295). Sua função, portanto, é latente e não explícita. Ademais essa fórmula é incalculável, ao passo que os critérios de seleção são precisamente calculáveis. Assim, para Luhmann, nenhuma operação do sistema deve se excetuar de ser justa, ao passo que nenhuma aplicação de uma norma deve ser presumida como justa por ser pertencente ao sistema. As decisões do sistema, portanto, devem se basear por uma impressão de justiça, e não por alguma orientação precisa daquilo que se tenha como justo.

Tendo isso em vista, percebe-se que a justiça é temporalmente aberta, no sentido de possibilitar sua reinterpretação no dia-a-dia. Nisso, o direito, que possui a justiça no sentido de uma fórmula de contingência, se abre também ao ambiente a partir de uma auto-observação, pois a consistência das decisões jurídicas, segundo Luhmann, podem se ancorar na justiça enquanto programa do sistema legal.

O sociólogo alemão, nesse sentido, expõe o desenvolvimento da justiça a partir das mudanças sociais no decorrer da história, como algo dinâmico, afirmando a tese de que a justiça passa por ressignificações com o tempo. Por isso, a justiça como fórmula de contingência é também um meio pelo qual o direito se relaciona com o ambiente, selecionando as pressões por justiça a priori indeterminável no mesmo, em um critério de seleção dentro do sistema legal. Ou seja, transforma algo indeterminável em algo determinável, como um exercício temporalmente dinâmico.

A importância da teoria de Luhmann reside na forma com que é trabalhada a indeterminabilidade na definição da justiça com a aplicação concreta da mesma. A justiça como fórmula de contingência pode ser vista como a justiça em si, a priori indeterminável, mas que determina os critérios de seleção do sistema, sendo que ambos são altamente mutáveis com o tempo. Nisso, Luhmann estabelece uma intrínseca relação com Derrida. Ambos entendem que a justiça é incalculável, não possui uma estática, mas é dinâmica e a todo momento buscada.

Ademais, a mesma noção entre fórmula de contingência como tradução do indeterminável para algo determinável ressoa também nas noções de justiça em si e justiça do direito. Ou seja, a justiça como fórmula de contingência estabelece um mecanismo para a reformulação de operações no tempo com a finalidade de adequar os anseios por justiça do ambiente ao sistema legal, assim como a desconstrução é um mecanismo de modificação da justiça do direito, com a finalidade de se aproximar da justiça em si – que, novamente, é paradoxalmente inalcançável. Todavia, passada a indeterminabilidade pelo crivo da determinabilidade, a justiça passa a não ser mais algo incalculável, como em Derrida, mas como um critério de solução precisamente calculável. E nisso Luhmann mais se aproxima de uma abordagem aristotélica da justiça, em detrimento das nuances platônicas residentes na teoria derridiana.

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Sobre o autor
Felipe Antônio Araújo

Graduando em Direito pela Universidade de Brasília.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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