A força vinculante dos precedentes judiciais como forma de efetivação dos princípios constitucionais da isonomia e segurança jurídica

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01/09/2018 às 16:02
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3. O PRECEDENTE JUDICIAL

Segundo Freddie Didier Júnior[10], “precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos”.

De fato, todo precedente pode ser analisado sobre dois pontos de vista: o da decisão dada ao caso concreto, e que tem eficácia entre as partes, e o da fundamentação que regulará casos futuros análogos. Para isso, é necessário estudo detalhado dos componentes do precedente a fim de se identificar aquilo que realmente vinculará as decisões futuras.

Imprescindível, portanto, conceituar estes elementos essenciais para que se possa dar prosseguimento ao presente estudo.

Basicamente, o precedente é composto pela ratio decidendi (chamada holding nos Estados Unidos) e pelo obiter dictum (no plural, obiter dicta).

A ratio decidendi diz respeito à tese jurídica adotada no caso concreto, e é composta pela indicação dos fatos relevantes da causa (statement of material facts), do raciocínio lógico jurídico da decisão (legal reasoning) e do juízo decisório (judgement)[11].

O obiter dictum, por sua vez, são as considerações periféricas, argumentos jurídicos acessórios sem relevância para a decisão final, ou, simplesmente, tudo aquilo que não compuser a ratio decidendi. Embora prescindível à decisão, pode sinalizar futuro entendimento do Tribunal, podendo tornar-se futuramente uma “ratio”, e vice-versa.

Apesar de obrigatório o uso do precedente no Common Law, poderá ser afastado de acordo com a análise do caso concreto. Para tanto, poderão ser adotadas três técnicas: o distinguishing, o overruling e o overriding.

O primeiro, distinguishing, é o ato de afastar o precedente quando existirem particularidades no caso concreto que o diferenciem dele. Segundo CRUZ E TUCCI,

o distinguishing é um método de confronto, “pelo qual o juiz verifica se o caso em julgamento pode ou não ser considerado análogo ao paradigma”. Sendo assim, pode-se utilizar termo “distinguish” em duas acepções: (i) para designar o método de comparação entre o caso concreto e o paradigma (distinguish-método); (ii) e para designar o resultado desse confronto, nos casos em que se conclui haver entre eles alguma diferença (distinguish-resultado)[12].

O overruling e o overriding, por sua vez, consistem em técnicas de superação. O primeiro ocorre quando o precedente perde a força vinculante e é substituído por outro precedente (overruled), que pode ocorrer de forma expressa (express overruling) ou tácita (implied overruling) e, dentre os principais motivos, Celso de Albuquerque Silva[13] destaca quando o precedente está obsoleto e desconfigurado; quando é absolutamente injusto e/ou incorreto; quando se revelar inexequível na prática.

É possível, ainda, atribuir-se eficácia ex tunc (retrospective effects) ou ex nunc (propective effects) ao precedente substituído nesse caso.

Já o overriding ocorre quando o âmbito de atuação do precedente é limitado pela superveniência de uma regra ou princípio legal, ou seja, é uma espécie de revogação parcial.

Sobre essas técnicas de superação, é importante ressaltar ainda lição de Celso de Albuquerque Silva[14], segundo a qual

Modernamente, a modificação da doutrina vinculante é vista como um aprimoramento do pensamento jurídico passado para adequá-lo ao desenvolvimento social. Dentro dessa ótica, a invalidação parcial ou total de uma doutrina vinculante é considerada como um instrumental intrasistêmico para assegurar a necessária flexibilidade ao ordenamento jurídico. Overruling e overriding entendidos com soluções sistêmicas para evitar a petrificação do direito, fazem parte e complementam a idéia de uma doutrina vinculante.


4. PRECEDENTE JUDICIAL COM FORÇA VINCULANTE E OS INSTRUMENTOS DE UNIFORMIZAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS NO BRASIL SOB A ÉGIDE DO CPC/73

Como visto, embora o Brasil adote a tradição romanística, sofre influências marcantes do Common Law, principalmente quanto à eficácia atribuída às decisões judiciais, que vêm adquirindo maior consistência ao longo dos anos até ser expressamente previsto no Novo Código de Processo Civil.

Nesse passo, Didier[15] destaca hipóteses em que o legislador evidencia a adoção do Stare Decisis no Brasil

No Brasil, há algumas hipóteses em que os precedentes têm força vinculante - é dizer, em que a ratio decidendi contida na fundamentação de um julgado tem força vinculante: (i) a "súmula vinculante" em matéria constitucional, editada pelo Supremo Tribunal Federal na forma do art. 103-A, da Constituição Federal, e da Lei Federal 11.417/2006, tem eficácia vinculante em relação ao próprio STF, a todos os demais órgãos jurisdicionais do país e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal; [...] (ii) o entendimento consolidado na súmula de cada um dos tribunais tem força vinculante em relação ao próprio tribunal; (iii) em função da "objetivação" do controle difuso de constitucionalidade, pensamos que os precedentes oriundos do Pleno do Supremo Tribunal Federal, em matéria de controle difuso de constitucionalidade, ainda que não submetidos ao procedimento de consolidação em súmula vinculante, têm força vinculante em relação ao próprio STF e a todos os demais órgãos jurisdicionais do país; (iv) decisão que fixa a tese para os recursos extraordinários ou especiais repetitivos (arts. 543-B e 543-C, CPC). 

Outro exemplo de vinculação das decisões no Brasil são as ações coletivas latu sensu que, segundo artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor, estabelece coisa julgada erga omnes quando a lide versar sobre direitos difusos (ultra partes quando versar sobre interesses coletivos strictu sensu e erga omnes/secundum eventum litis quando julgar demandas que veiculam interesses individuais homogêneos), de modo a se atingir pessoas que mesmo não integrando o processo, estão em situação jurídica semelhante, concretizando, assim, a isonomia.

Nesse contexto, passemos à análise desses instrumentos processuais brasileiros em confronto com o precedente judicial de efeito vinculante característico do Common Law.

4.1. SÚMULA VINCULANTE

Antes de tudo, cumpre analisar a distinção entre texto e norma.  A norma é resultado que se extrai da interpretação do texto, e pode mudar de acordo com a época em que a interpretação ocorre sem que mude, necessariamente, o texto do qual foi extraída. Dessa forma, a depender do caso concreto, a interpretação a que se dá ao mesmo texto de lei pode variar, segundo variáveis sociais, por exemplo.

Nesse sentido, vislumbra-se que a súmula deve ser entendida como resultado da extração de uma norma da análise do caso concreto (ou melhor, vários casos concretos anteriores semelhantes), que aplicada a outras situações semelhantes futuras mediante subsunção torna-se enunciado normativo (texto), abstrato e anterior à decisão judicial. Nesse sentido, Strek[16] dispõe que:

(...) o dispositivo da sentença, ao ser utilizado em casos futuros, não configura mais a norma em si, o texto do dispositivo que consubstanciou a norma do caso concreto em que foi proferida essa sentença interpretativa passa a consistir em enunciado normativo a solucionar casos futuros, dando origem a novas normas à medida que surgirem novas sentenças resolventes de novos casos jurídicos.

Dessa forma, conclui-se que

precedentes são formados para resolver casos concretos e eventualmente influenciam decisões futuras; as súmulas (...) , ao contrário, são enunciados “gerais e abstratos” – características presentes na lei – que são editados visando à “solução de casos futuros”[17].

Portanto, a súmula pode ser definida como o enunciado normativo extraído de uma jurisprudência dominante, que é a reiteração de precedentes em um mesmo sentido.

No Brasil, o Código de Processo Civil de 1973, nos artigos 476 a 479 tratava da uniformização de jurisprudência interna corporis dos tribunais através da edição de súmula nas seguintes hipóteses:

Art. 476: Compete a qualquer juiz, ao dar o voto na turma, câmara, ou grupo de câmaras, solicitar o pronunciamento prévio do Tribunal acerca da interpretação do direito quando:

I – verificar que, a seu respeito ocorre divergência;

II – no julgamento recorrido a interpretação for diversa da que lhe haja dado outra turma, câmara, grupo de câmaras ou câmaras cíveis reunidas.

O artigo 103-A da Constituição Federal, por sua vez, prevê o uso de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal nos seguintes moldes:

Art. 103-A: O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre a matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

Da leitura dos artigos acima expostos, vislumbra-se a diferença patente entre precedente vinculante nos moldes do Common Law e o uso do Stare Decisis no Brasil. Enquanto o primeiro analisa as circunstâncias fáticas a fim de que seja aplicado em situações análogas, a súmula distancia-se, conforme destaca Marinoni,

(...) as súmulas simplesmente neutralizam as circunstâncias do caso ou dos casos que levaram à sua edição. As súmulas apenas se preocupam com a adequada delimitação de um enunciado jurídico. Ainda que se possa, em tese, procurar nos julgados que deram origem à súmula algo que os particularize, é incontestável que, no Brasil, não há método nem cultura para tanto.

Assim,

(...) para que a súmula possa ter aplicação no deslinde das demandas sem fulminar as particularidades de cada caso concreto, ela deve ser visualizada como texto normativo que quando oposto ao caso concreto, soluciona-o, não mecanicamente, e, sim, hermeneuticamente, respeitando de forma radical a coerência e a integridade do direito[18].

Outra crítica às súmulas consiste no uso de termos vagos nos enunciados, o que caracteriza um contrassenso. Ao contrário, deveriam ser utilizados termos claros e precisos para evitar dúvidas quando de sua aplicação futura e, consequentemente, a fuga à proposta, em torno da qual desenvolveu-se a doutrina do stare decisis, que é conferir maior segurança e previsibilidade às decisões judiciais.

4.2. A JURISPRUDÊNCIA COM EFEITO VINCULANTE

Os artigos 543-B e 543-C do Código de Processo Civil de 1973 previam hipóteses em que eram julgados, respectivamente, os Recursos Especiais e Extraordinários, respectivamente, quando houvesse multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia.

Nesses casos, era escolhido um ou mais recursos e sobrestados os demais até o pronunciamento definitivo da Corte, atribuindo-se efeito vinculante à decisão em relação aos recursos sobrestados. Esse instrumento de uniformização da jurisprudência não deve ser confundido com o precedente judicial de eficácia vinculante do Common Law.

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Antes de tudo, importa mencionar a diferença entre precedente e jurisprudência. O primeiro pode originar-se de uma única decisão, da qual se extrai a norma jurídica a ser utilizada nas outras decisões, enquanto a jurisprudência é formada a partir de diversas decisões reiteradas no mesmo sentido. Merece transcrição a análise dessa diferenciação feita por Streck[19]:

Sob esse aspecto, é paradigmático o precedente Marbury v. Madison, cujo precedente originário é a possibilidades de o judiciário realizar a judicial review (controle difuso de constitucionalidade) das leis. Para a utilização desse precedente, não se faz necessário identificar nenhuma similitude fática entre o caso a ser aplicado o precedente (judicial review) e o case que originou Marbury v. Madison. Tanto assim é, que o controle difuso de constitucionalidade enquanto precedente constitui regra jurídica a ser aplicada em diversas questões fáticas distintas, e.g., direito penal, tributário, civil e administrativo. A jurisprudência, por sua vez, para ser aplicada como critério para solução de casos jurídicos, demanda necessariamente, uma correspondência fática entre os casos que a originaram e os que serão por ela solucionados.

Além disso, quanto à vinculação, temos diferenças pontuais entres jurisprudência e precedente. No primeiro caso, a vinculação é determinada no julgamento do paradigma e aplicado posteriormente aos casos sobrestados, sendo determinada pela lei (arts. 543-B e 543-C do CPC/73), o que inviabiliza a evolução jurisprudencial à medida que trazem a decisão pronta para ser aplicada ao caso futuro, rechaçando de plano a possibilidade de reanalisar a matéria já que os demais casos estariam sobrestados para que a lide seja decidida a partir da regra estabelecida no paradigma.

Quanto aos precedentes, o que vincula as decisões posteriores é determinado caso a caso, com a evolução do precedente quando de cada aplicação ao longo dos anos, possibilitando a evolução da decisão jurídica. Além disso, não existe vinculação pré-determinada, o que possibilita a evolução da discussão e até a mudança do paradigma através dos institutos do distinguishing e overruling.

Da leitura acima, conclui-se, portanto, que a aplicação de jurisprudência de efeito vinculante não pode ser utilizada sob o pretexto de introdução do stare decisis no nosso ordenamento, uma vez que este último é mais que a aplicação automática da decisão pronta em casos semelhantes, mas verdadeira construção da decisão justa a partir da aplicação do precedente e interpretação da regra extraída pelo magistrado, aliada ao contraditório entre as partes.

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