3 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM MATÉRIA PENAL
O Princípio Jurídico da Proporcionalidade, embora não previsto expressamente na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é corolário do Estado Democrático de Direito, razão pela qual de plena e imediata incidência na seara penal que cuida da privação de direitos constitucionais dos indivíduos em nome de outros direitos igualmente importantes.
O Direito é eminentemente uma ciência interpretativa e impõe ao hermeneuta interpretar os dispositivos legais tendo como norte a Constituição da República.
A exegese, atribui ao intérprete a tarefa de descobrir o sentido e o real alcance da norma criminal estabelecendo os contornos de incidência do dispositivo legal, através de um processo racional e controlável, tendo como norte o Princípio da Proporcionalidade. Nesse sentido Dias (2012):
A limitação da intervenção penal acabada de referir derivaria sempre, de resto, do princípio jurídico constitucional da proporcionalidade em sentido amplo, que faz parte dos princípios inerentes ao Estado de Direito. Uma vez que o direito penal utiliza, com o arsenal de suas sanções específicas, os meios mais onerosos para os direitos e liberdades das pessoas, ele só pode intervir nos casos em que todos os outros meios da política social, em particular da política jurídica não-penal, se revelem insuficientes ou inadequados. Quando assim não aconteça, aquela intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violação dos princípios da subsidiariedade e da proibição de excesso. Tal sucederá, p. ex., quando se determine a intervenção penal para a proteção de bens jurídicos que podem ser suficientemente tutelados pela intervenção dos meios civis (a legitimidade ou ilegitimidade de criminalização do cheque sem provisão, quando não constitua um crime de burla, constitui a este propósito, um exemplo instrutivo), pelas sanções do direito administrativo (entrando aqui, de pleno, toda a controvérsia sobre as fronteiras que devem separar o direito penal do direito de mera ordenação social ou das contra ordenações ou do direito disciplinar). Como o mesmo sucederá sempre que se demonstre a inadequação das sanções penais para a prevenção de determinados ilícitos, nomeadamente sempre que a criminalização de certos comportamentos seja fator da prática de muitíssimas mais violações do que as que se revela suscetível de evitar (o que pode suceder sobretudo no domínio dos criminologicamente denominados “crimes sem vítima” como, v. g., o consumo de drogas ou de álcool, a prostituição, a pornografia, etc; caso em que fica próxima a afirmação de que a prevenção e o controle de tais comportamentos, quando se repute socialmente desejável deve ser deixado por inteiro à intervenção de meios não penais de controle social. Neste sentido se pode e deve afirmar, em definitivo, que a função precípua do direito penal – e desta deriva o conceito material de crime – reside na tutela subsidiária (de ultima ratio) de bens jurídicos-penais (DIAS, 2012, p. 128-129, grifo nosso).
A aplicação do princípio da proporcionalidade em matéria penal pode ser extraída também da jurisprudência. Um exemplo é o voto no caso do aborto até o 3º (terceiro) mês de gestação do Ministro Barroso do Supremo Tribunal Federal no HC 124.306/2017, que define os contornos gerais do princípio, nos seguintes termos:
[...] A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios (BRASIL, 2017, p. 1, grifo nosso).
Desse modo, a escolha entre os bens jurídicos que se busca preservar com a criminalização da conduta e os bens jurídicos sacrificados, impõe um juízo de ponderação de forma a atribuir, segundo Barros (1996, p.169), a esse procedimento de escolha um caráter mais racional e, portanto, controlável. Veja:
A questão da ponderação radica na necessidade de dar a esse procedimento (colisão de direitos fundamentais) um caráter racional e, portanto, controlável. Quando o intérprete pondera bens em caso de conflitos de direitos fundamentais, ele estabelece uma precedência de um sobre o outro, isto e, atribui um peso maior a um deles. Se pode estabelecer uma fundamentação para esse resultado, elimina-se o irracionalismo subjetivo e passa-se para o racionalismo objetivo. (BARROS, 1996, p. 169).
Cabe salientar que a aplicação do Direito Penal no Estado Democrático de Direito deve ser realizada através de juízo de proporcionalidade entre a pena imposta a conduta e sua adequação ao propósito visado pelo legislador com a sua punição, ou seja, a intervenção penal só restará legitimada quando a punição se revele adequada a finalidade da pena e em um juízo de proporcionalidade em sentido estrito não se revele apta a causar prejuízos sociais maiores. Nessa ótica Reale Júnior (2012):
A intervenção penal em um Estado Democrático deve estar revestida de proporcionalidade, em uma relação de correspondência de grau entre o mal causado pelo crime e o mau que se causa por via da pena. (REALE JÚNIOR, 2012, p. 29)
Ademais, o Princípio da Proporcionalidade funciona como parâmetro integrador do Direito Penal conferindo sistematicidade e corrigindo eventuais falhas do processo legislativo criminal fortemente imediatista e espetacularizado.
Cabe salientar que o princípio da proporcionalidade apresenta segundo Streck (2005, p. 180) ainda uma dupla faceta de um lado a proibição do excesso (Übermassverbot) e de outro a vedação a proibição deficiente dos direitos fundamentais (Untermassverbot).
Pela proibição do excesso ou no termo germânico Übermassverbot o princípio da proporcionalidade funciona como parâmetro hermenêutico nos casos que o legislador excedeu a necessidade e adequação violando de maneira desarrazoada direitos fundamentais como a liberdade de locomoção, de manifestação, dignidade da pessoa humana, entre outros.
O STJ já aplicou o princípio da proporcionalidade na vertente da proibição do excesso no HC 239363/2014 de modo a afastar a aplicação da pena de 10 a 15 anos do crime previsto no § 1º-B do art. 273 do CP, pois a pena era extremamente desproporcional, razão pela qual determinou a aplicação da pena cominada para o tráfico de drogas. Segue o teor do julgado:
É inconstitucional o preceito secundário do art. 273, § 1º-B, V, do CP - "reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa" -, devendo-se considerar, no cálculo da reprimenda, a pena prevista no caput do art. 33 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), com possibilidade de incidência da causa de diminuição de pena do respectivo § 4º. De fato, é viável a fiscalização judicial da constitucionalidade de preceito legislativo que implique intervenção estatal por meio do Direito Penal, examinando se o legislador considerou suficientemente os fatos e prognoses e se utilizou de sua margem de ação de forma adequada para a proteção suficiente dos bens jurídicos fundamentais. Nesse sentido, a Segunda Turma do STF (HC 104.410-RS, DJe 27/3/2012) expôs o entendimento de que os "mandatos constitucionais de criminalização [...] impõem ao legislador [...] o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. A idéia é a de que a intervenção estatal por meio do Direito Penal, como ultima ratio, deve ser sempre guiada pelo princípio da proporcionalidade [...] Abre-se, com isso, a possibilidade do controle da constitucionalidade da atividade legislativa em matéria penal". Sendo assim, em atenção ao princípio constitucional da proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direitos (CF, art. 5º, LIV), é imprescindível a atuação do Judiciário para corrigir o exagero e ajustar a pena de "reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa" abstratamente cominada à conduta inscrita no art. 273, § 1º-B, V, do CP, referente ao crime de ter em depósito, para venda, produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais de procedência ignorada. Isso porque, se esse delito for comparado, por exemplo, com o crime de tráfico ilícito de drogas (notoriamente mais grave e cujo bem jurídico também é a saúde pública), percebe-se a total falta de razoabilidade do preceito secundário do art. 273, § 1º-B, do CP, sobretudo após a edição da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), que, apesar de ter aumentado a pena mínima de 3 para 5 anos, introduziu a possibilidade de redução da reprimenda, quando aplicável o § 4º do art. 33, de 1/6 a 2/3. Com isso, em inúmeros casos, o esporádico e pequeno traficante pode receber a exígua pena privativa de liberdade de 1 ano e 8 meses. E mais: é possível, ainda, sua substituição por restritiva de direitos. De mais a mais, constata-se que a pena mínima cominada ao crime ora em debate excede em mais de três vezes a pena máxima do homicídio culposo, corresponde a quase o dobro da pena mínima do homicídio doloso simples, é cinco vezes maior que a pena mínima da lesão corporal de natureza grave, enfim, é mais grave do que a do estupro, do estupro de vulnerável, da extorsão mediante sequestro, situação que gera gritante desproporcionalidade no sistema penal. Além disso, como se trata de crime de perigo abstrato, que independe da prova da ocorrência de efetivo risco para quem quer que seja, a dispensabilidade do dano concreto à saúde do pretenso usuário do produto evidencia ainda mais a falta de harmonia entre esse delito e a pena abstratamente cominada pela redação dada pela Lei 9.677/1998 (de 10 a 15 anos de reclusão). Ademais, apenas para seguir apontando a desproporcionalidade, deve-se ressaltar que a conduta de importar medicamento não registrado na ANVISA, considerada criminosa e hedionda pelo art. 273, § 1º-B, do CP, a que se comina pena altíssima, pode acarretar mera sanção administrativa de advertência, nos termos dos arts. 2º, 4º, 8º (IV) e 10 (IV), todos da Lei n. 6.437/1977, que define as infrações à legislação sanitária. A ausência de relevância penal da conduta, a desproporção da pena em ponderação com o dano ou perigo de dano à saúde pública decorrente da ação e a inexistência de consequência calamitosa do agir convergem para que se conclua pela falta de razoabilidade da pena prevista na lei, tendo em vista que a restrição da liberdade individual não pode ser excessiva, mas compatível e proporcional à ofensa causada pelo comportamento humano criminoso. Quanto à possibilidade de aplicação, para o crime em questão, da pena abstratamente prevista para o tráfico de drogas - "reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa" (art. 33 da Lei de drogas) -, a Sexta Turma do STJ (REsp 915.442-SC, DJe 1º/2/2011) dispôs que "A Lei 9.677/98, ao alterar a pena prevista para os delitos descritos no artigo 273 do Código Penal, mostrou-se excessivamente desproporcional, cabendo, portanto, ao Judiciário promover o ajuste principiológico da norma [...] Tratando-se de crime hediondo, de perigo abstrato, que tem como bem jurídico tutelado a saúde pública, mostra-se razoável a aplicação do preceito secundário do delito de tráfico de drogas ao crime de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais" (BRASIL, 2014, p. 1, grifo nosso).
Todavia, ao lado do garantismo negativo consubstanciado na proteção do excesso há também o garantismo positivo através da vedação à proteção deficiente de direitos fundamentais.
A vedação à proteção deficiente de direitos fundamentais ou Untermassverbot é uma vertente do garantismo positivo, pois impõe uma atuação positiva da função judicante de modo corrigir eventuais deficiências do legislador na proteção de direitos fundamentais.
O jurista Streck (2005) aborda a temática da proibição deficiente nos seguintes termos: “[…] a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos”. (STRECK, 2005, p.180)
Ademais, o Ministro do STF Gilmar Mendes (2006, p. 688/689) já aplicou a vedação da proteção deficiente no RE 418.376/2006 que visava a decretação da extinção da punibilidade do agente que praticou ato violento ao pudor contra uma menor de 8 (oito) anos, mas que, posteriormente, veio a contrair união estável com a vítima e desse modo, requereu a extinção da punibilidade, pois entendeu o Ministro que havia uma proteção deficiente dos direitos fundamentais da criança.
Contudo, apesar de reconhecer-se a existência da faceta da proteção deficiente há sérias ressalvas quanto a sua aplicação no âmbito penal que é norteado pelo princípio da legalidade, da anterioridade da pena e que veda a analogia in malam partem, pois mitiga a garantia do cidadão contra criminalizações arbitrárias.
Assim, fixada as premissas de aplicação do Princípio da Proporcionalidade em matéria penal, abordará nos tópicos seguintes as dimensões da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido, correlacionando aos institutos jurídicos penais de modo a sistematizar a aplicação do referido princípio.