5. A ESSENCIALIDADE SOBREPÕE-SE À CONTINUIDADE?
É imperioso esclarecer que a essencialidade da garantia à saúde tem previsão na CR/88, arts. 6º e 196, os quais integram os direitos fundamentais. Também está disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, em seu art. 25-1: “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde [...]” (ONU, 1948).
Nas brilhantes palavras de José Joaquim Gomes Canotilho:
[...] as normas consagradoras de direitos sociais, como direito à saúde, individualizam e impõem políticas públicas socialmente ativas. Os poderes públicos têm uma significativa quota de responsabilidade no desempenho de tarefas econômicas, sociais e culturais, incumbindo-lhes pôr à disposição dos cidadãos prestações de vária espécie, como instituições de ensino, saúde, segurança, transportes, telecomunicações, etc. (CANOTILHO, 2003, p. 478).
Vale dizer que os significados da palavra essencial são: a) imprescindível; b) necessário; c) que não pode ser deixado de lado ou ignorado; d) fundamental. Por outro lado, os significados do vocábulo contínuo são: a) ininterrupção; b) consecutiva; c) continuada; d) seguida; d) sucessiva. Cabe lembrar que no inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/93 não consta o adjetivo “essencial”.
Cabe ressaltar que o intérprete deve aplicar as normas infraconstitucionais à luz da Constituição Federal. Portanto, a essencialidade sobrepõe-se à continuidade, uma vez que o legislador constitucional, ao redigir o art. 196 – “A saúde é direito de todos e dever do Estado [...]” – e obrigar os entes da Federação nos termos do inciso II – “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais” –, implicitamente traz o conceito de essencialidade e, mais, coaduna com o princípio da eficiência, o qual requer do gestor público a satisfação do interesse público.
Nesse sentido, leciona Hely Lopes Meirelles:
A Eficiência e o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros (MEIRELLES, 1988, p. 90).
Com efeito, conforme os respectivos significados, o adjetivo “essencial” sobrepõe-se ao adjetivo “contínua”, seja pelo fato de que o legislador constitucional consignou como norma constitucional o caráter da essencialidade, seja pela circunstância de que os significados de essencial são mais amplos, abrangendo com maior clareza o interesse público, a garantia à saúde pública.
Segundo Alvaro Luis de Araujo Ciarlini:
[...] na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, o direito à saúde figura como algo dotado de um grau de fundamentalidade que o colocaria acima de qualquer outra regra ou princípio constitucional. Esse direito é percebido como absoluto, podendo ser afirmado em detrimento de quaisquer outros interesses do Estado (CIARLINI, 2008, p. 4).
6. CONCLUSÃO
Posto isso, entendo ser possível que a Administração Pública prorrogue o contrato administrativo, cujo objeto consiste no fornecimento contínuo de medicamentos por iguais e sucessivos períodos até o limite de sessenta meses, com fundamento no inciso III do art. 1º (a dignidade da pessoa humana) e nos arts. 6º, 196 e 198 da Constituição Federal de 1988, bem como na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, em seu art. 25-1: “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde [...]” (ONU, 1948).
É imperioso dizer que o fornecimento de medicamentos tem respaldo constitucional, devendo ser disponibilizado aos usuários dessas substâncias até mesmo em detrimento de outras ações quaisquer. Portanto, o gestor deve fazer remanejamento de recursos e buscar mecanismos para atingir esse objetivo.
Assim, fica claro que o fornecimento de medicamentos tem natureza contínua e, sobretudo, essencial, pois a falta ou até mesmo atrasos na disponibilidade deles causam prejuízos à saúde dos usuários e, conforme o caso, podem levá-los à morte.
Diante da observância da continuidade de serviços públicos no caso de fornecimento de medicamentos, que possui caráter de essencialidade e, por conseguinte, continuidade, e na busca de atendimento dos princípios da dignidade da pessoa humana, da economicidade na gestão dos recursos públicos, aplica-se a interpretação extensiva do art. 57 da Lei nº 8.666/93.
Enfatizo que essa condição, inclusive na eficácia dos direitos fundamentais, e requer anualmente do gestor público adequação do planejamento orçamentário referente à aplicação em ações e serviços públicos de saúde.
Todavia, a meu juízo, o gestor público deve demonstrar na execução contratual que a empresa contratada atende aos objetivos da administração pública, procedendo da seguinte forma nos autos da comprovação técnica: a) comprovar a economicidade por meio de realização de ampla pesquisa de preços no mercado; b) consignar no edital de licitação a possibilidade de prorrogação por iguais e sucessivos períodos, até o limite de sessenta meses; c) consignar que o quantitativo é estimado e, por isso, não gera a obrigação de pedir sua totalidade; d) apresentar cronograma de desembolso, além de demonstrar o critério de continuidade. Desse modo, o gestor estará adequando o planejamento do fornecimento de medicamentos, e, desse modo, não mais comprará sob demanda, mas, sim, com critérios objetivos, com base nos gastos dos últimos meses e ano; e) deve efetuar a compra mediante estas modalidades: pregão, tomada de preços e concorrência.
Por fim, se a administração pública licitar por meio da modalidade Sistema de Registro de Preços, não poderá prorrogar o contrato administrativo, visto que essa modalidade tem validade por um ano nos termos do inciso III do parágrafo 3º do art. 15 da Lei nº 8.666/93. Nesse sentido, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo firmou o entendimento de que não se pode prorrogar Ata de Registro de Preços, pois as características essenciais desta são a eventualidade do fornecimento e a imprevisibilidade da demanda, o que é incompatível com os contratos nos quais o objeto seja quantificado, e a entrega, feita em período certo ou previsível.
Referências
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Manual das Ações Constitucionais. São Paulo: Del Rey, 2007.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 15 ago. 2018.
BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8666cons.htm>. Acesso em: 10 ago. 2018.
BRASIL. Tribunal de Contas do Distrito Federal. Decisão Normativa nº 3, de 10 de novembro de 1999. Disponível em: <http://www.tc.df.gov.br/SINJ/Norma/69734/Decis_o_Normativa_3_10_11_1999.htm>. Acesso em: 26 jul. 2018.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 766 – Relatório de auditoria. Interessado: Tribunal de Contas da União. Relator: José Jorge. Brasília, DF, 14 de abril de 2010. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/pesquisaJurisprudencia/#/detalhamento/11/%252a/NUMACORDAO%253A766%2520ANOACORDAO%253A2010/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/false/1/false>. Acesso em: 26 julho de 2018.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. São Paulo: Almedina, 2003.
CIARLINI, Alvaro Luis de Araujo. O direito à saúde entre os paradigmas substanciais e procedimentais da Constituição: para uma compreensão agonística dos direitos fundamentais sociais, na busca do equilíbrio entre autonomia e bem-estar. 2008. Tese (Doutorado em Direito)–Universidade de Brasília, Brasília, 2008. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/1069/3/2008_AlvaroLuisAraujoCiarlini.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2018.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HELY, Lopes Meirelles. Direito administrativo brasileiro. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1988.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentário à lei de licitações e contratos administrativos. 15. ed. São Paulo: Dialética, 2012.
ONU – Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 10 dez. 1948. Disponível em: <http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2018.
RIGOLIN, Ivan Barbosa. Publicidade institucional e serviço contínuo. Boletim de Licitações e Contratos Administrativos, v. 12, n. 12, p. 593–595, dez.1999.
ROSA, Márcio Fernando Elias. Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
SÃO PAULO. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Processo TC-000178/026/06. Interessado: Luiz Elias Tambara. Relator: Sidney Estanislau Beraldo. São Paulo, SP, 9 de janeiro de 2006. Disponível em: <https://www.tce.sp.gov.br/processos>. Acesso em: 25 julho de 2018.