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Importunação sexual deixou de ser contravenção e virou crime.

Análise do delito criado pela Lei nº 13.718/2018

15/02/2019 às 17:55
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A Lei 13.718/2018 criou um sucessor para a antiquada contravenção penal da importunação ofensiva ao pudor, mais rigoroso e com a missão de atender a atual demanda social de combate mais efetivo ao assédio e abuso sexual.

INTRODUÇÃO E ANTECEDENTES

No aniversário de 12 anos da Lei Maria da Penha, foi aprovado no Congresso Nacional o projeto de lei 618/2015 (PLS), dando origem à Lei 13.718 de 24 de setembro de 2018, que, dentre outras importantes alterações no tocante aos crimes contra a dignidade sexual [1], buscou encerrar a polêmica envolvendo a aplicação da caquética contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, tipificando um novo delito destinado a substituí-la: a importunação sexual. Terá o novo texto legal cumprido essa missão a contento? Importante, nesse diapasão, conhecer a estrutura e repercussão da alteração legislativa, e é o que propõe o presente ensaio.

No ano de 2017, foi amplamente noticiado na impressa nacional um caso, ocorrido no Estado de São Paulo, acerca de uma mulher que estava em um ônibus quando foi pega de surpresa pela ação de um homem que, ao se masturbar, ejaculou, respingando nela. O suspeito foi preso em flagrante delito por crime de estupro, mas, pouco depois, posto em liberdade pelo Judiciário sob a justificativa de subsunção do fato à contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor – infração de menor potencial ofensivo que não comportava a manutenção da prisão. Potencializada pelo sensacionalismo midiático, foi enorme a repercussão negativa da soltura do réu – depois, soube-se, tinha passagens anteriores pela Polícia em casos semelhantes e sofria de problemas mentais.

Esse incidente ressuscitou um antigo debate jurídico, colocando em questão se alguns atos libidinosos, cometidos sem violência ou grave ameaça, a exemplo do episódio citado, configurariam crime de estupro ou a mencionada contravenção. Não obstante as correntes existentes nos dois sentidos, fato era que vinha prevalecendo a tese de enquadramento desses casos como contravenção, cuja redação melhor os abarcaria que a do crime inscrito no Código Penal, em observância, especialmente, ao princípio da proporcionalidade. Nesse sentido, a mencionada decisão do magistrado de São Paulo foi, de fato, tecnicamente acertada.

Esse quadro gerou indignação popular e a sensação de insuficiência punitiva da lei. A discussão acabou movimentando o Legislativo a trabalhar pela mudança da norma penal para torná-la mais rigorosa. O resultado foi a criação do novo crime de importunação sexual através da Lei 13.718/2018. A seguir, realizaremos uma análise do delito, para melhor compreendê-lo em seu alcance.


ANÁLISE DA FIGURA TÍPICA

O art. 61 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais), que previa a contravenção de importunação ofensiva ao pudor, vedava a conduta de: “Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor: Pena - multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis”.

A doutrina há muito tempo criticava a inadequação da contravenção nos dias de hoje, da forma como disposta no ordenamento, sugerindo sua abolição. Seu texto estava mais preocupado em proteger o pudor (sentimento de vergonha, timidez, pudicícia), a moralidade e os (antigos) bons costumes do que a liberdade sexual. As Leis 11.106, de 2005, e 12.015, de 2009, já haviam modificado profundamente o Código Penal no tocante aos crimes do título VI, estabelecendo uma bem-vinda modernização de perspectiva em relação aos tipos penais que resguardam a dignidade sexual, mas a Lei de Contravenções Penais, até então, ainda pendia arcaica.

Com a entrada em vigor da Lei 13.718/2018, foi criado, para substituir a contravenção, o crime de importunação sexual, tipificado no artigo 215-A, com a seguinte redação: “Praticar, contra alguém e sem a sua anuência, ato libidinoso, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: Pena – reclusão, de um a cinco anos, se o ato não constitui crime mais grave.”

Importunar significa incomodar, perturbar, tirar a paz. Se não houver importunação e a ação é acatada pelo alvo dela, não há que se falar no delito em tela.

O bem/objeto jurídico protegido é a dignidade sexual, enquanto o objeto material é a pessoa perturbada em decorrência do ato.

Com relação aos sujeitos do crime, tanto o ativo como passivo, podem ser qualquer pessoa, homem ou mulher. É uma infração comum e unissubjetiva.

O tipo objetivo, por sua vez, consiste na conduta comissiva de praticar (executar, realizar - de forma livre) ato libidinoso (ato lascivo cuja finalidade é a satisfação do prazer sexual do autor. A conjunção carnal, não obstante seja uma espécie de ato libidinoso, não está contemplada) contra [2] (em direção oposta a) alguém (pessoa determinada), sem sua anuência (consentimento, permissão). Trata-se de delito instantâneo (a consumação é imediata, não se protraindo no tempo) e de mera conduta (não requer efetivo prejuízo para sua configuração).

No tocante ao tipo subjetivo, a figura só pode ser dolosa, exigindo-se a finalidade específica de satisfazer a lascívia (prazer/desejo sexual ou sensualidade) própria (do executor) ou de terceiro (doutra pessoa), não se admitindo a forma culposa.

Admite ainda a modalidade tentada, por ser plurissubsistente, vez que, via de regra, a ação é formada por vários atos.

Como exemplos de atos que antes se ajustavam à contravenção de importunação ao pudor, podemos elencar: 1) passar mão em partes íntimas (seios, genitália, nádegas), 2) o encoxamento, 3) esfregar órgãos sexuais em locais de aglomeração de pessoas (típico em transportes públicos), 4) levantar uma peça de roupa para contemplar a intimidade do corpo, 5) a masturbação direcionada à pessoa objeto da ação delituosa (como ocorreu na casuística citada no início do artigo) [3]. Estas ações, ordinariamente furtivas (rápidas, praticadas de surpresa, dissimuladas), serão punidas, doravante, pela nova tipificação da importunação sexual [4].

Por óbvio que se houver incidência de violência ou grave ameaça, o crime passa a ser de estupro (art. 213). Elementares dispensadas caso a vítima seja menor de 14 (catorze) anos ou vulnerável, ocorrendo então estupro de vulnerável (art. 217-A). Conforme dita a própria redação do artigo 215-A, a importunação só se configura “se o ato não constitui crime mais grave”, mostrando-se subsidiária em relação a estes delitos.

O simples ato de exibir o órgão sexual em lugar público ou aberto ou exposto ao público configura crime de ato obsceno, descrito no artigo 233 do Código Penal (cf. NUCCI, 2016, p. 1.204) e não o ora comentado. Neste caso, o sujeito passivo é a coletividade e não uma pessoa determinada (alguém).

Por derradeiro, observa-se que a limitação espacial imposta pelo texto da antiga contravenção, ao vincular que o fato deveria ocorrer “em lugar público ou acessível ao público” caiu por terra, podendo agora a conduta ser praticada em qualquer lugar, público ou particular, mesmo que não acessível ao público [5].


A PENA E SUAS IMPLICAÇÕES

A pena cominada pela infrigência do artigo em tela é de reclusão de um a cinco anos. A majoração da penalidade não retroage para prejudicar os praticantes de fatos cometidos antes da mudança, por ser lei mais gravosa (novatio legis in pejus). A punição diminuta da velha contravenção fazia com que os casos recaíssem no brando tratamento da Lei dos juizados especiais criminais (Lei 9.099, de 1995), ocasionando que o suspeito conduzido fosse posto em liberdade logo após o atendimento policial, ao assinar termo de compromisso de comparecimento posterior ao juízo.

Agora o termo circunstanciado não é mais o procedimento policial a ser confeccionado, dando lugar ao inquérito, com possibilidade de lavratura de auto de prisão em flagrante (sem fiança) pelo delegado de Polícia, nas hipóteses em que ocorrer. Ademais, o procedimento judicial sumaríssimo dos juizados foi substituído pelo ordinário, previsto no Código de Processo, permitindo, inclusive, a decretação da cautelar preventiva pelo judiciário, preenchidos os requisitos legais.


MUDANÇA NA AÇÃO PENAL

O art. 2º da lei em análise mudou ainda o art. 225, do capítulo VI (das disposições gerais) para acabar com a ação pública condicionada à representação nos crimes sexuais definidos nos capítulos I (art. 213 a 216-B) e II (art. 217-A a 218-D) do título VI, do Código Penal, relativo aos crimes contra a dignidade sexual, revogando também o seu parágrafo único.

A ação pública incondicionada, que antes estava reservada aos casos em que a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoal vulnerável, passa, de agora em diante, a ser a regra, dispensando-se consulta à vontade do sujeito passivo para o início da persecução penal. Localizado o artigo 215-A topograficamente no capítulo I, aplica-se ao crime de importunação sexual esta disposição.


A VIGÊNCIA DA LEI

Com a entrada em vigor da Lei na data de sua publicação, 25.09.2018, a redação do vetusto art. 61 da Lei das Contravenções Penais, que previa a importunação ofensiva ao pudor, foi revogada, deixando clara a intenção do legislador de extinguir qualquer resquício da antiga infração, evitando que seja invocada no futuro pelos operadores do Direito concomitantemente ao novo tipo.

Ao que parece, o assédio verbalizado, praticado por convites sexuais reiterados, provocações lascivas, cantadas despudoradas (condutas estas antes enquadradas na contravenção penal), foi atingido pela abolitio criminis, a ensejar a aplicação dos efeitos benéficos e retroativos constantes no artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal [6].

O mesmo não ocorre com os atos libidinosos praticados sob a vigência da contravenção, ocorrendo com eles o fenômeno da ultratividade da lei penal.


CONCLUSÃO

A novíssima Lei 13.718/2018 criou um sucessor para a antiquada infração penal da importunação ofensiva ao pudor, mais rigoroso e com a missão de atender a atual demanda social de combate mais efetivo ao assédio e abuso sexual, especialmente praticado contra as mulheres. Foi pensando nelas, vítimas da maior parte das importunações sexuais, que o tipo foi formulado. A aprovação do projeto no décimo segundo aniversário da Lei Maria da Penha consubstancia ato simbólico que reforça a mensagem que se deseja passar. Deve-se, pois, encarar o esforço legislativo como uma medida positiva e muito bem-vinda.


BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO, Tiago Lustosa Luna de. Da posse à violação sexual mediante fraude. O novo alcance do art. 215 do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2241, 20 ago. 2009. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/13361>. Acesso em: 17 ago. 2018.

BRASIL. Lei n° 13.718 de 24 de setembro de 2018. Sítio da Presidência da República. 2018. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13718.htm >. Acesso em: 25 set. 2018.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crimes contra a dignidade sexual: temas relevantes. Curitiba: Juruá, 2010.

CARAMIGO, Denis Caramigo Ventura. Importunação ofensiva ao pudor: uma contravenção penal sexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4845, 6 out. 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/45772>. Acesso em: 18 ago. 2018.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 16. ed rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2016.

_______. Lei penais e processuais penais comentadas Vol. 1. 9. ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2015

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SILVA, Tadeu Antônio Dix. Crimes Sexuais: reflexões sobre a nova Lei 11.106/2005. Leme: J. H. Mizuno, 2006.


NOTAS

1 Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecer causas de aumento de pena para esses crimes e definir como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo; e revoga dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais).

2 A redação anterior do art. 215-A, proposta no substitutivo da Câmara dos Deputados, exigia apenas que os atos libinosos ocorressem “na presença” da vítima, ou seja, ela estaria na posição de quem assiste ou vê, como um voyeur. Nesta hipótese, as ações cometidas mediante contato físico estariam fora da abrangência do novo crime, o que poderia causar frustração para os destinatários da proteção normativa, uma vez que o assédio desse espectro ocorre com grande frequência no dia a dia e não poderia simplesmente desaparecer do alcance punitivo do direito penal. Em tempo, esta falha foi sanada na versão final do projeto, que foi aprovada.

3 A doutrina buscou enquadrar algumas hipóteses de atos libidinosos furtivos no crime de violação mediante fraude (v. CABETTE, 2010, p. 54, ao usar o exemplo da apalpação rápida de seios, sem chance de reação), mas a interpretação majoritária restringiu a abrangência da tipificação, exigindo a fraude para sua configuração. Vide também (ARAÚJO, 2009).

4 Uma questão interessante surge: o beijo furtivo, conhecido como beijo “roubado”, poderia ser também considerado importunação sexual? Depende. Quando dado de forma irreverente, gaiata, sem qualquer conotação sexual, não, ante a ausência do elemento subjetivo específico do tipo (a satisfação da lascívia). Antes essa conduta, quando rejeitada pela vítima, se amoldava à contravenção (cf. CARAMIGO, 2016), mas com a mudança do texto, incluindo a citada circunstância subjetiva, ao que parece, ficou de fora do novo crime. Por outro lado, se o beijo furtivo é lascivo, configura a infração penal em comento.

5 A redação antiga do substitutivo da Câmara criava, nas disposições gerais do capítulo VI, um novo inciso I para art. 226, estabelecendo causa de aumento de pena, aplicável à importunação e outros crimes, de um terço na hipótese de serem cometidos em local público, aberto ao público ou com grande aglomeração de pessoas (ex. filas, espetáculos, eventos, etc.), ou em meio de transporte público (ex. ônibus, trem, metrô, etc). No texto final esta majorante foi descartada.

6 Quiçá surja corrente no sentido de que estas manifestações, subsidiariamente, se enquadrariam na injúria (art. 140), havendo, claro, ânimo de ofender.

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Sobre o autor
Tiago Lustosa Luna de Araújo

Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Pós-graduado em Ciências Penais pela UNISUL-IPAN-Rede LFG. Mestre em direitos humanos pela Universidade Tiradentes - UNIT. Delegado da Polícia Civil no Estado de Sergipe.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Tiago Lustosa Luna Araújo. Importunação sexual deixou de ser contravenção e virou crime.: Análise do delito criado pela Lei nº 13.718/2018. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5707, 15 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69222. Acesso em: 25 abr. 2024.

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