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A controvérsia da recusa terapêutica

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A lei permite (e até obriga, a depender da interpretação do artigo 135 do CP) ao médico agir contra a decisão de recusa terapêutica, apenas nos casos de risco iminente de vida do paciente. Não há lei que proíba esse modo de agir.

1. INTRODUÇÃO

Em sua sétima edição, o Congresso Brasileiro de Direito Médico, promovido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), em Brasília, nos dias 3 e 4 de agosto de 2017, reuniu médicos e advogados para debater diversos temas, entre eles o da recusa terapêutica, da responsabilidade civil do médico e da judicialização da saúde.

Em 03.08.2017, a primeira conferência foi proferida pelo advogado e professor de direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) Nelson Nery Júnior, que falou sobre a “RECUSA TERAPÊUTICA”. No entender do militante do direito, a Constituição Federal, o Código de Processo Civil, diversas Leis e a Resolução do CFM 1.995/12 (que trata das Diretivas Antecipadas de Vontade), validam o direito do paciente de recusar qualquer tratamento. Ele, assim se expressou:

"Entendo a posição do médico, que fez o juramento de Hipócrates para salvar vidas e teme ser processado por omissão de socorro, mas nas situações em que o paciente se recusar, conscientemente, a não se submeter a determinado tratamento, o profissional estará apenas respeitando a vontade daquele a quem assiste"[1].

Nelson Nery salientou ainda que, no caso de crianças não se deve aceitar a vontade dos pais, visto que nesses casos o direito da criança à vida deve ser assegurado. Em todos os demais casos, ele defende que a vontade do paciente deve ser respeitada.

Na ocasião o professor Nelson Nery comentou que o Conselho Federal de Medicina deverá revisar a Resolução CFM nº 1.021/80 que normatiza, no âmbito ético, como o médico deve proceder diante da recusa de pacientes testemunhas de Jeová à transfusão de sangue.

Entretanto, salientou que o CFM deverá editar uma norma ética mais abrangente, que contemple não apenas a recusa de transfusão de sangue, mas a recusa de qualquer procedimento terapêutico em pacientes com ou sem risco de vida.

O assunto, portanto, se reveste de grande complexidade e controvérsia, eis que envolve análise no plano constitucional e infraconstitucional e ainda, questões de índole ética, moral e religiosa. Nota-se, através de artigos e jurisprudências publicadas, que a polêmica acerca da recusa do paciente em sujeitar-se a determinado tratamento tem ganhado cada vez mais destaque. No entanto, observa-se que não tem obtido respostas isonômicas.

Sendo o paciente, pessoa adulta, capaz e esclarecida dos riscos de sua decisão, e NÃO ESTANDO EM RISCO IMINENTE DE VIDA, parece não haver maior dúvida de que a sua vontade deva ser sempre respeitada.

A CONTROVÉRSIA cinge-se às situações nas quais o PACIENTE ESTANDO EM RISCO IMINENTE DE VIDA, manifesta sua vontade de recusa terapêutica ou, na impossibilidade de expressá-la, esta é manifestada por familiares ou representantes legais no mesmo sentido de recusa, sendo o procedimento (por exemplo, a transfusão de sangue) o único meio para lhe salvar a vida.


2. OS LADOS DA CONTROVERSIA E SEUS FUNDAMENTOS

2.1.  NÃO DEVE SE RESPEITAR A VONTADE DO PACIENTE.

Parte da doutrina e jurisprudência defende que em situações de risco iminente de vida do paciente, o médico tem o dever/obrigação de intervir, mesmo sem o consentimento do mesmo ou contrariando sua recusa, e realizar o procedimento médico e/ou cirúrgico necessário para que o enfermo não venha a óbito, alegando que a proteção à vida prevalece sobre a liberdade religiosa, quando há possível conflito entre os mesmos.

Um dos argumentos levantados para justificar a recusa terapêutica por parte de pacientes é o de que “não existiria lei que os obrigue a aceitar e consentir tratamento médico e/ou cirúrgico”. Assim, referido argumento, sustenta-se no artigo 5º, II da Constituição Federal[2]:

II - Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. (grifei)

Trata-se do Princípio Constitucional da Legalidade, sob cuja égide devem ser criadas Leis que “obriguem alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa”. O princípio da legalidade apresenta um perfil diverso no campo do Direito Público e no campo do Direito Privado.

No Direito Privado, tendo em vista seus interesses, as partes poderão fazer tudo o que a lei não proíbe; no Direito Público, diferentemente, existe uma relação de subordinação perante a lei, ou seja, só se pode fazer o que a lei expressamente autorizar ou determinar.

Ensina HELY LOPES MEIRELLES que:

A Legalidade é intrínseca a ideia de Estado de Direito, pensamento este que faz que ele próprio se submeta ao direito, fruto de sua criação, portanto esse é o motivo desse princípio ser tão importante, um dos pilares do ordenamento. É na legalidade que cada indivíduo encontra o fundamento das suas prerrogativas, assim como a fonte de seus deveres. A administração não tem fins próprios, mas busca na lei, assim como, em regra não tem liberdade, escrava que é do ordenamento.     

Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza [3].

No mesmo sentido, o professor PEDRO LENZA aponta que no âmbito das relações particulares pode-se fazer tudo o que a lei não proíbe, vigorando o princípio da autonomia de vontade[4]. O particular tem então autonomia para tomar as suas decisões da forma como melhor lhe convier, ficando apenas restrito às proibições expressamente indicadas pela lei. O princípio da legalidade não se refere somente à lei em sentido estrito ou formal (salvo nos casos de reserva legal), mas em sentido amplo ou material, a todo e qualquer ato normativo que inove o ordenamento jurídico, criando direitos e deveres, e que formam os chamados blocos de legalidade.

Destarte, já resta claro que constitucionalmente tanto o médico quanto o paciente podem fazer o que a lei permite (deve, quando a lei obrigue) ou aquilo que não proíbe.

Caberia se perguntar então:

  • Existe lei que permita ou proíba ao paciente exercer a recusa terapêutica?

  • Existe lei que permita ou proíba ao médico agir contra a vontade do paciente quando este manifesta sua recusa terapêutica?

Versa o artigo 15 do CÓDIGO CIVIL (Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002) em vigor, “in verbis”:

Art.15 - ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. (grifei)

De acordo com o teor do artigo supracitado, surgem duas possíveis interpretações:

a) A condição de “risco de vida” ser do paciente. Neste caso uma redação mais apropriada do referido artigo seria: “ninguém que esteja em risco de vida pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Aqui certamente caberia a interpretação de que mesmo nos casos em que o paciente se encontrasse em situação de risco de vida, não poderia ser submetido a tratamento médico ou cirúrgico sem o seu consentimento.

b) A condição de “risco de vida” ser do procedimento médico ou cirúrgico ao qual o paciente deveria se submeter. Talvez neste caso uma redação mais apropriada seria: “ninguém pode ser constrangido a submeter-se a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica que envolva risco de vida”. Aqui então, a interpretação seria de que ninguém poderia ser obrigado a ser submetido a tratamento médico ou cirúrgico que provoque risco a sua vida.

Apesar das possíveis interpretações citadas, fica clara que a intenção do legislador ao redigir o teor do artigo 15 do C.C. era atribuir a condição de risco de vida ao procedimento médico ou cirúrgico. É assim que a doutrina entende.

O douto consultor jurídico NELSON NERY JUNIOR ensina sobre o art. 15 do CC:

(....) a disposição legal nos convida, imediatamente, a duas reflexões:

a)no choque entre direitos fundamentais (vida x liberdade), a opção do legislador é a de prestigiar a vida que corre perigo. A predominância do valor vida norteia a ação de quem se encontra, v.g., por dever legal, na contingência de proceder manobras médicas para salvar o que carece de tratamento médico ou de intervenção cirúrgica imediata.

b)A escolha de tratamento médico ou cirúrgico que imponha risco de vida ao paciente deve ser a ele comunicada pelo médico responsável, com minuciosa descrição das consequências danosas, especialmente daquelas que possam impor ao paciente risco de vida. Ainda que o diagnóstico médico da doença aponte para tratamento ou intervenção cirúrgica arriscada, não pode ser o paciente constrangido a suportá-los. É o dever legal de informação que se impõe aos médicos com relação a seus pacientes.

Mais adiante afirma:

5.- Risco de vida. A expressão “risco de vida” do CC 15 deve ser entendida como sendo relativa ao “risco que será criado ou agravado” pelo tratamento ou intervenção cirúrgica que se pretende empregar. Em suma: o doente não pode ser constrangido a se submeter a tratamento ou cirurgia arriscada, nem o médico pode depender da autorização de quem não pode dá-la para realizar as manobras técnicas e cientificamente necessárias para tirar o paciente do iminente perigo de vida em que se encontra[5].

No mesmo sentido, o ilustre médico e advogado NERI TADEU CAMARA SOUZA:

Já o artigo 15, do mesmo Código Civil determina: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou à intervenção cirúrgica”. Serve este artigo como um reforço na determinação de se obter um consentimento informado, obviamente esclarecido (senão estaria com o vício da ignorância sobre o assunto por parte do paciente), já que exige o consentimento do mesmo para a execução de tratamentos e medidas que atuem, com risco de vida, no corpo humano. Como se vê, as leis em nosso direito se direcionam no sentido de exigir o consentimento informado dos pacientes quando em tratamento médico[6]. (grifei)

Ainda, na lição do professor CARLOS ROBERTO GONÇALVES:

A regra desse artigo 15 [do Código Civil de 2015] obriga os médicos, nos casos mais graves, a não atuarem sem prévia autorização do paciente, que tem a prerrogativa de se recusar a se submeter a um tratamento perigoso. A sua finalidade é proteger a inviolabilidade do corpo humano[7]. (grifei)

O atual Min. do STF, LUÍS ROBERTO BARROSO, em 2010, ainda como procurador do Estado do Rio de Janeiro, exarou parecer sobre a legitimidade da recusa de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová[8]. Daquele parecer, extrai-se:

O art. 15, por sua vez, não diz nada a respeito das situações em que a recusa de tratamento médico possa ocasionar ou agravar um risco para a vida do paciente. Ao contrário, ele permite a recusa de tratamento que seja, em si mesmo, arriscado. (grifei)

Como visto, a correta interpretação do artigo 15 do CC, leva a inequívoca conclusão de que ele se refere apenas aos procedimentos médicos e/ou cirúrgicos que envolvam risco de vida e não à condição do paciente. Sendo assim, o C.C., ao vedar a imposição de tratamento médico e/ou cirúrgico que envolva risco de vida, limita o direito de recusa do paciente apenas para esse tipo de situações. Em consequência, a lei civil não proíbe que o paciente possa ser compelido a se submeter a procedimentos médicos e/ou cirúrgicos que não envolvam risco de vida. Menos ainda garante o direito de recusa terapêutica em pacientes que se encontrem, pela sua doença, em risco iminente de vida.

Esta interpretação mostra-se harmônica com outros dispositivos legais em vigor que, no plano infraconstitucional permitem ao médico desconsiderar a opção de recusa de pacientes a tratamentos médicos e/ou cirúrgicos.

Veja-se ainda na esfera do Código Civil:

Art. 11: Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.

Na sua interpretação literal, o art. 11 parece consagrar a tese de que os direitos da personalidade – entre os quais se incluem os direitos à vida e à integridade física – seriam insuscetíveis de qualquer limitação, inclusive voluntária.

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

Do teor do artigo 13, poder-se-ia entender que, o paciente que se nega a receber um tratamento médico e/ou cirúrgico seguro (que não envolva risco de vida) e que possam salvar-lhe a vida, estaria dispondo não apenas do seu próprio corpo, mas da sua própria vida.

Resta saber, portanto, se em virtude da Lei (conforme o art. 5º inc. II da C.F.) o paciente pode ser obrigado a se submeter SEMPRE a procedimentos que NÃO envolvam risco de vida.

A resposta é obtida a partir do CÓDIGO PENAL (Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940) que de forma harmônica define quais são os casos em que o paciente pode ser obrigado a se submeter a procedimentos que NÃO envolvam risco de vida. Esta conclusão pode ser extraída a partir do disposto nos artigos 135 e 146 que consideram crime:

Art. 135. Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:

[...] § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo:

I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida;

II - a coação exercida para impedir suicídio. (grifei)

Da interpretação dos dispositivos supracitados, desprende-se que o paciente pode ser obrigado a se submeter a procedimentos que não envolvam risco de vida, apenas quando sua própria condição seja de IMINENTE PERIGO DE VIDA. Não fazê-lo, poderá levar esse paciente à inevitável morte e o médico responder por omissão de socorro (art. 135), caso assim seja entendido. Percebe-se que pela exceção posta pelo inc. I, &3º do art. 146, a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, não constitui constrangimento ilegal.

Para muitos, o médico vive um constante dilema que envolve o risco latente de ser processado ao se deparar com pacientes em iminente risco de vida que recusam tratamento médico e/ou cirúrgico que possa evitar sua morte. É como se em qualquer cenário o profissional de saúde corresse o risco de processo: pelo paciente, se sua vontade for violada ao receber um tratamento que não desejava; pelo Ministério Público, acusando o médico por omissão de socorro; pelos familiares, acusando o médico de matar um ente querido; ou até pelo Conselho de Medicina, submetendo o profissional a processo ético-disciplinar por ato negligente ao não cumprir com seu dever ético de agir para salva a vida.

Ao profissional médico, sempre lhe foi ensinado que, pelas normas legais e éticas em vigor, era seu dever/obrigação prestar assistência a paciente em risco iminente de vida, mesmo contra vontade do mesmo, e que não fazê-lo significaria uma omissão passível de ser penalizada na esfera penal por eventual crime de omissão de socorro (art. 135 do C.P.) em razão de negligencia (art. 18, inc. II)[9], e ainda incorrer nas disposições do artigo 951 do Código Civil (que trata sobre indenização na esfera cível), que assim dispõe:

Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho. (grifei)

Ora, deixar de proceder ao tratamento médico adequado nesses casos de emergência, seja clínico ou cirúrgico, poderá configurar negligência médica, que implicará em sanções civis e até mesmo penais.

Ainda, em que pese a não serem normas legais em sentido estrito, as normas éticas em vigor insculpidas no CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA de 2010 que norteiam o correto exercício da profissão médica também são consoantes em obrigar ao médico a respeitar a vontade do paciente, mas ao mesmo tempo intervir contra sua vontade, nos casos de RISCO IMINENTE DE VIDA. Isto já é colocado desde os Princípios Fundamentais contidos nos referido Código:

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

[...] VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

[...] XVI - Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente. (grifei)

Essa obrigação ética é ainda reforçada no teor de diferentes artigos do mesmo Código de Ética:

É vedado ao médico:

[...] Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

[...] Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.

[...] Art. 26. Deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz física e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente, devendo cientificá-la das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de risco iminente de morte, tratá-la.

[...] Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte[10]. (grifei)

Percebe-se que na esfera ética a atuação do médico pauta-se pelo equilíbrio entre os princípios de autonomia e beneficência. Entretanto, consoante com a Lei, a autonomia do paciente tem seu limite nas situações de RISCO IMINENTE DE VIDA, nas quais o médico estará também eticamente autorizado a intervir contra a vontade do paciente.

É assim o entendimento da RESOLUÇÃO CFM Nº 1.021/80 que versa:

Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta:

1º - Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis.

2º - Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis[11]. (grifei)

Nessa mesma ceara ética, o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ) editou a Resolução nº 136/1999, cujo art. 3º reza[12]:

Art.  3º  O  médico,  verificando  a  existência  de  risco  de  vida  para  o  paciente,  em  qualquer  circunstância, deverá fazer uso de todos os meios ao seu alcance para garantir a saúde do mesmo, inclusive efetuando a transfusão  de  sangue  e/ou  seus  derivados,  comunicando,  se  necessário,  à  Autoridade  Policial  competente sobre sua decisão, caso os recursos utilizados sejam contrários ao desejo do paciente ou de seus familiares.

Trata-se, portanto, da supremacia do direito à vida defendida por alguns doutrinadores.

MARIA HELENA DINIZ, defende que o direito à vida, diante de sua essencialidade ao ser humano, condiciona os demais direitos da personalidade. Por ser objeto de direito personalíssimo e decorrente de norma de direito natural deve ser salvaguardado contra tudo e todos, inclusive contra seu próprio titular, ainda que não houvesse proteção constitucional ao direito à vida:

A vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido. Consequentemente, o direito à vida prevalecerá sobre qualquer outro, seja ele de liberdade religiosa, de integridade física ou mental, etc. Havendo conflito ente dois direitos, incidirá o princípio do primado do mais relevante. Assim, por exemplo, se se precisar mutilar alguém para salvar sua vida, ofendendo sua integridade física, mesmo que não haja seu consenso, não haverá ilícito nem responsabilidade penal médica[13].

Desse modo, Maria Helena Diniz pontua que a vida é superior à liberdade, pois esta só pode subsistir se houver observância daquela. Sobre isso afirma:

A liberdade pessoal não pode ser tolerada quando implica retirada da própria vida, por não ser absoluta, visto que está juridicamente limitada por princípios de ordem pública, como os de não matar, não induzir ao suicídio, não omitir socorro e o ajudar a quem está prestes a falecer.

[...] As normas constitucionais que resguardam os direitos à vida e à crença religiosa têm eficácia absoluta e geram uma antinomia real ou lacuna de conflito, que só pode ser solucionada pelo critério do justum, aplicando-se os arts. 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Por meio de uma interpretação corretiva percebe-se que o direito à vida tem posição privilegiada, antecedendo a todos os demais direitos da personalidade, pois sem ele de nada valem os demais. Para que o ser humano possa exercer as liberdades que lhe são outorgadas constitucionalmente, a vida ser-lhe-á imprescindível. O Estado é o guardião da vida, pois o seu titular sobre ela não tem poder decisório[14].

[...] Entende, assim, que, embora o direito à liberdade de crença seja um direito humano fundamental, reconhecido constitucionalmente, não pode se sobrepor à vida, visto que esta é anterior àquela. Nesse caso, havendo uma situação que coloca ambos os direitos em colisão, de forma que apenas um deles possa ser atendido, deve incidir o princípio do primado do direito mais relevante, na hipótese, o direito à vida[15].

Por essa razão, segundo a autora, a ofensa à liberdade religiosa, ainda que contrária à manifestação expressa de vontade do paciente ou de familiares, como é o caso de transfusão de sangue em pacientes testemunhas de Jeová, não pode ser considerada ato ilícito. Nessa hipótese, Diniz comunga com as disposições da Resolução do Conselho Federal de Medicina 1021/80 de 26 de setembro de 1980, citada anteriormente.

Portanto, na concepção da autora, estando o paciente em iminente risco de vida, a recusa à transfusão de sangue como medida salvadora de vida, tratar-se-á de um caso de colisão entre o direito à vida e à liberdade de crença, onde aquele se sobrepõe a este devido ao seu caráter superior.

PABLO STOLZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO, ao discorrerem sobre o dever de prestar socorro dentro do tema responsabilidade civil do médico, argumentam que para entender a questão é necessário ter em mente três premissas básicas:

O direito de disposição sobre o próprio corpo pertencente ao paciente, de modo que o médico não pode ministrar-lhe qualquer tratamento sem o seu consentimento, salvo em caso de iminente perigo de vida;

O direito à liberdade religiosa tanto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto pela Constituição (art. 5º, VI), o que significa que ninguém pode ser compelido a realizar prática condenada por sua fé e consciência;

O reconhecimento de um direito à vida, também assegurado constitucionalmente (art. 5º, caput), determina que todos têm direito à vida, mas não sobre a vida, o que implica a não-aceitação pelo nosso sistema jurídico de práticas como aborto e a eutanásia, pois a pessoa não teria direito sobre a própria vida. Entende-se, inclusive, que o Estado tem interesse em prolongar a vida das pessoas, pois cada uma representa um papel social relevante[16]. (grifei)

Os autores, assim como Diniz, entendem o assunto como um caso de colisão entre direitos fundamentais (direito à vida versus direito à liberdade religiosa) que, por sua vez, classificam-se como princípios jurídicos. Assim, entendem que o choque não implica a declaração de invalidade ou exclusão de um deles, mas a busca pela sua compatibilização em cada caso concreto.

Afirmam ainda estarem convictos da sobreposição do direito à vida em face do direito à liberdade religiosa, uma vez que a vida é o pressuposto da aquisição de todos os demais direitos. Argumentam que a manutenção da vida é interesse da sociedade e não do indivíduo; portanto, mesmo que, por força de seu fervor, o transfundido sinta-se violado em sua dignidade, o interesse social na manutenção de sua vida justificaria a conduta cerceadora de sua opção religiosa.

Ainda expõem que, no caso de pacientes maiores e capazes, estando ausente o risco de morte, e, somente nessa hipótese, o médico não deve ministrar sangue se não houver o consentimento do paciente, sob pena de estar constrangendo-o ilegalmente. Assim, caso não observe essa determinação, o médico corre o risco de ser responsabilizado.

Argumentam, por fim, que em uma situação de perigo de morte quando da realização do procedimento transfusional, ainda que sem êxito, com o eventual falecimento do enfermo, não deve ser imposta uma responsabilização civil do médico, pois este estaria cumprindo o seu dever por força da interpretação dos artigos 56 e 59 do Código de Ética Médica[17].

A JURISPRUDÊNCIA, no caso específico de recusa de transfusão de sangue por parte de testemunhas de Jeová, andou sempre alinhada com a doutrina e legislação supracitada, adotando também entendimento da supremacia do direito à vida sobre os outros direitos fundamentais, inclusive o de crença religiosa. Para alguns julgadores inclusive não haveria necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever, havendo iminente perigo de vida, de empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares.

Esse posicionamento fica evidente nos julgados:

EMENTA: Indenizatória - Reparação de danos - Testemunha de Jeová - Recebimento de transfusão de sangue quando de sua internação – Convicções religiosas que não podem, prevalecer perante o bem maior tutelado peta Constituição federal que é a vida - Conduta dos médicos, por outro lado, que pautou-se dentro da lei e ética profissional, posto que somente efetuaram as transfusões sanguíneas após esgotados todos os tratamentos alternativos - Inexistência, ademais, de recusa expressa a receber transfusão de sangue quando da internação da autora — Ressarcimento, por outro lado, de despesas efetuados com exames médicos, entre outras, que não merece acolhido, posto não terem sido os valores despendidos pela apelante - Recurso improvido.

Do voto do relator, desprende-se:

[...] Entretanto, em que pesem as convicções religiosas da apelante que, frise-se, lhe são asseguradas constitucionalmente, a verdade é que o que deve prevalecer, acima de qualquer credo, religião, é o bem maior tutelado pela Constituição Federal, a vida.

Ora, sendo o direito à vida o principal direito individual, o bem jurídico de maior relevância tutelado pela ordem constitucional, à evidência que os demais direitos individuais dependem de sua existência.

De que valeria a Constituição Federal tutelar direitos como a liberdade, igualdade, integridade moral, entre outros, sem que fosse assegurado o direito à vida?

Como ensina JOSÉ AFONSA DA SILVA, o direito à vida deve ser compreendido de forma extremamente abrangente, incluindo o direito de nascer, de permanecer vivo, de defender a própria vida, enfim, de não ter o processo vital interrompido senão pela morte espontânea e inevitável. (TJSP. Terceira Câmara Cível de Direito Privado. APELAÇÃO CÍVEL N° 123.430-4/400. V.U. 07.05.2002) (grifei)

EMENTA: Testemunhas de Jeová. Necessidade de transfusão de sangue, sob pena de risco de morte, segundo conclusão do médico que atende o paciente. Recusa dos familiares com apoio na liberdade de crença. Direito à vida que se sobrepõe aos demais direitos. Sentença autorizando a terapêutica recusada. Recurso desprovido.

Do voto do Relator:

[...] não se pode negar, todavia, que os vários direitos previstos nos incisos do art. 5o da Constituição Federal ostentam uma certa gradação em relação a outro direito, este estabelecido no caput do referido artigo: o direito à vida. Assim, se com base em sólido entendimento médico-cientifico, ainda que divergências existam a respeito, para a preservação daquele direito seja necessária a realização de terapias que envolvam transfusão de sangue, mesmo que atinjam a crença religiosa do paciente, estas terão de ser ministradas, pois o direito à vida antecede o direito à liberdade de crença religiosa (TJSP. Quinta Câmara Cível de Direito Privado. APELAÇÃO CÍVEL N° 132.720-4/9-00. V.U. 26.06.2003) (grifei)

PROCESSO CAUTELAR. Ação cautelar inominada. Embora a regra seja a de que a cautelar seja preparatória, admite-se, excepcionalmente, tenha natureza satisfativa quando a liminar, necessária diante do risco de dano irreparável, esgota o objeto da ação principal. Preliminar rejeitada.

Ação cautelar inominada. Hospital que solicita autorização judicial para realizar transfusão de sangue em paciente que se encontra na UTI, com risco de morte, e que se recusa a autorizá-la por motivos religiosos. Liminar bem concedida porque a Constituição Federal preserva, antes de tudo, como bem primeiro, inviolável e preponderante, a vida dos cidadãos. Jurisprudência deste TJSP. Recurso improvido. (TJSP. Sétima Câmara Cível de Direito Privado. AGRAVO DE INSTRUMENTO n° 307.693-4/4. V.U. 22.10.2003) (grifei)

PLANO DE SAÚDE. Cirurgia autorizada. Recusa da ré em garantir a restrição de transfusão de sangue. Convicção religiosa do paciente. Dano moral não configurado.

Realização fora da rede credenciada. Reembolso não previsto no contrato.

Indenização por dano material indevida. Recurso improvido. (TJSP. Oitava Câmara Cível de Direito Privado. APELAÇÃO CÍVEL N° 442.163-4/1-00. V.U. 13.06.2007)

Do voto do Relator:

[...]A questão é polêmica, mas a jurisprudência tem decidido no sentido de que o direito à vida se sobrepõe à liberdade de crenças religiosas. Nesse sentido os julgados: INDENIZAÇÃO - Responsabilidade civil - Danos moral e material - Desrespeito a crença religiosa ~ Transfusão de sangue - Autora Testemunha de Jeová - Não cabimento - Intervenção médica procedida tão-somente após esgotados outros tratamentos alternativos - Prevalência da tutela ã vida sobre suas convicções religiosas - Recurso não provido - JTJ 256/125. Ainda: MEDIDA CAUTELAR - Autorização judicial para cirurgia e transfusão de sangue em paciente necessitada que se recusa à prática do ato por questão religiosa - Desnecessidade - Estrito cumprimento do dever legal do médico - Recurso não provido. (Ap. n. 264.210-1, 6a Câmara de Direito Privado, Rei. TESTA MARCHI, 01.08.96). E por fim: TESTEMUNHAS DE JEOVÁ - Necessidade de transfusão de sangue, sob pena de risco de morte, segundo conclusão de médico que atende o paciente - Recusa dos familiares com apoio na liberdade de crença - Direito à vida que se sobrepõe aos demais direitos - Sentença autorizando a terapêutica recusada - Recurso desprovido. (Ap. n. 132.720-4/9, 5ª Câmara de Direito Privado, Rei: BORIS KAUFFMANN, 26.06.03) (grifei)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Recurso desprovido. (TJRS. Apelação Cível Nº 70020868162, Quinta Câmara Cível, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 22/08/2007) (grifei)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA ANTECIPADA. Testemunha de Jeová. Recusa à transfusão de sangue. Risco de vida. Prevalência da proteção a esta sobre a saúde e a convicção religiosa, mormente porque não foi a agravante, senão seus familiares, que manifestaram a recusa ao tratamento. Asseveração dos responsáveis pelo tratamento da agravante, de inexistir terapia alternativa e haver risco de vida em caso de sua não realização. Recurso desprovido. (TJRJ. AI 00098131320048190000, Décima Oitava Vara Cível, Relator: CARLOS EDUARDO DA ROSA DA FONSECA PASSOS, Julgado em 05/10/2004.

CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, AUTORIZAR OU ORDENAR TRATAMENTO MÉDICO-CIRÚRGICOS E/OU HOSPITALARES, SALVO CASOS EXCEPCIONALÍSSIMOS E SALVO QUANDO ENVOLVIDOS OS INTERESSES DE MENORES. SE IMINENTE O PERIGO DE VIDA, É DIREITO E DEVER DO MÉDICO EMPREGAR TODOS OS TRATAMENTOS, INCLUSIVE CIRÚRGICOS, PARA SALVAR O PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DESTE, E DE SEUS FAMILIARES E DE QUEM QUER QUE SEJA, AINDA QUE A OPOSIÇÃO SEJA DITADA POR MOTIVOS RELIGIOSOS. IMPORTA AO MÉDICO E AO HOSPITAL É DEMONSTRAR QUE UTILIZARAM A CIÊNCIA E A TÉCNICA APOIADAS EM SÉRIA LITERATURA MÉDICA, MESMO QUE HAJA DIVERGÊNCIAS QUANTO AO MELHOR TRATAMENTO. O JUDICIÁRIO NÃO SERVE PARA DIMINUIR OS RISCOS DA PROFISSÃO MÉDICA OU DA ATIVIDADE HOSPITALAR. SE TRANSFUSÃO DE SANGUE FOR TIDA COMO IMPRESCINDÍVEL, CONFORME SÓLIDA LITERATURA MÉDICO-CIENTÍFICA (NÃO IMPORTANDO NATURAIS DIVERGÊNCIAS), DEVE SER CONCRETIZADA, SE PARA SALVAR A VIDA DO PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, MAS DESDE QUE HAJA URGÊNCIA E PERIGO IMINENTE DE VIDA (ART-146, PAR-3, INC-I, DO CÓDIGO PENAL). CASO CONCRETO EM QUE NAO SE VERIFICAVA TAL URGÊNCIA. O DIREITO À VIDA ANTECEDE O DIREITO À LIBERDADE, AQUI INCLUÍDA A LIBERDADE DE RELIGIÃO E FALÁCIA ARGUMENTAR COM OS QUE MORREM PELA LIBERDADE POIS, AÍ SE TRATA DE CONTEXTO FÁTICO TOTALMENTE DIVERSO. NÃO CONSTA QUE MORTO POSSA SER LIVRE OU LUTAR POR SUA LIBERDADE. HÁ PRINCÍPIOS GERAIS DE ÉTICA E DE DIREITO, QUE ALIÁS NORTEIAM A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, QUE PRECISAM SE SOBREPOR ÀS ESPECIFICIDADES CULTURAIS E RELIGIOSAS; SOB PENA DE SE HOMOLOGAREM AS MAIORES BRUTALIDADES; ENTRE ELES ESTÃO OS PRINCÍPIOS QUE RESGUARDAM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS RELACIONADOS COM A VIDA E A DIGNIDADE HUMANAS. RELIGIÕES DEVEM PRESERVAR A VIDA E NÃO EXTERMINÁ-LA. (Apelação Cível Nº 595000373, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Gischkow Pereira, Julgado em 28/03/1995)." (grifei)

EMENTA: DIREITO À VIDA. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. DENUNCIAÇÃO DA LIDE INDEFERIDA. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA E DIREITO À VIDA. IMPOSSIBILIDADE DE RECUSA DE TRATAMENTO MÉDICO QUANDO HÁ RISCO DE VIDA DE MENOR. VONTADE DOS PAIS SUBSTITUÍDA PELA MANIFESTAÇÃO JUDICIAL. (TRF-4. AC 155 RS 2003.71.02.000155-6. Terceira Turma. Rel. Des. VÂNIA HACK DE ALMEIDA. DJ 01/11/2006 PÁGINA: 686. Julgamento 24 de outubro de 2006). (grifei)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PARA TRATAMENTO ONCOLÓGICO.LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. MEDICAMENTO DE EFICÁCIA NÃO COMPROVADA. SUBSITITUIÇÃO DE TRANSFUSÃO SANGÜINIA. IMPOSSIBILIDADE.

Em razão da demora em surtir efeito da medicação requerida como alternativa a transfusão de sangue, não se inibe o risco na fase aguda de comprometimento medular, nem se afasta a necessidade de transfusão sanguínea, não sendo recomendável a utilização de medicamento do qual a eficácia não está comprovada adotada somente como terapêutica alternativa, quando há alguma restrição clínica ao uso de hemoderivados. (TRF-4. A.I. Nº 2005.04.01.047458-2/RS. Primeira Turma Suplementar. Rel. Des. LUIZ CARLOS DE CASTRO LUGON. Julgamento 25 de abril de 2006).

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Conclui-se, portanto, do anteriormente exposto, que a lei permite (e até obriga, a depender da interpretação do artigo 135 do C.P.) ao médico agir contra a decisão de recusa terapêutica, apenas nos casos de risco iminente de vida do paciente. No ordenamento jurídico em vigor, não há lei que proíba esse modo de agir.

2.2. DEVE SE RESPEITAR A VONTADE DO PACIENTE.

Entretanto, outra parte da doutrina e jurisprudência defende que mesmo nas situações de iminente risco de vida deve haver respeito por parte do médico à escolha do indivíduo adulto, com capacidade civil plena, com capacidade normal de discernimento e ciente dos riscos de sua decisão, pautado nos princípios de autonomia, autodeterminação e da dignidade humana.

Inequivocamente a lei garante ao paciente não somente o direito do consentimento esclarecido (devidamente informado), mas também o de recusa terapêutica. A Lei nº 8.080/90 (Lei do SUS), artigo 7º, II, IV e V, garante a preservação da autonomia do paciente na defesa de sua integridade física e moral, o atendimento sem preconceitos e o direito à informação adequada.

No mesmo sentido, é de se observar que o artigo 17 do Estatuto do Idoso (lei nº 10.741/2003) assegura àqueles que estiverem no domínio de suas faculdades mentais o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável.

A Portaria n.º 1.820/09 do Ministério da Saúde, com texto atual e bem elaborado, também sedimenta o direito ao consentimento informado e prevê uma série de direitos ao paciente. Por exemplo, nos artigos 4 e 5, inclui o direito a recusa de tratamento a qualquer tempo durante a internação e a obrigatoriedade de adaptação da terapêutica aos valores e limites pessoais do paciente.

O Código de Defesa do Consumidor (lei nº 8.078/1990) garante no artigo 8.º o direito a informações adequadas a respeito da prestação de serviços, o que pode ser traduzido no campo da saúde como o exercício do consentimento informado. Também veda no artigo 39, III e IV o fornecimento de serviços sem solicitação, bem como o ato de prevalecer-se da fraqueza do consumidor em razão de seu estado de saúde, o que excluiria a possibilidade de tratamento médico compulsório.

É digno de nota que a Lei Estadual 10.241/99 garante ao usuário do serviço de saúde no âmbito do Estado de São Paulo o direito de consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados; de recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida; e de optar pelo local de morte. (art. 2º, inc. VII, XXIII e XXIV). Destarte, o ordenamento jurídico garante ao paciente o direito de consentimento e de dissentimento (recusa) terapêutico.

Vejamos entendimento de renomados juristas e doutrinadores:

Na lição de NELSON NERY JUNIOR em relação à recusa de transfusão de sangue por paciente Testemunha de Jeová:

Obrigar alguém a realizar tratamento médico quando este é atentatório à sua dignidade e liberdade não possui respaldo nem na Constituição Federal nem na Legislação, assim, decisão nesse sentido será inconstitucional por violação expressa ao princípio da legalidade (CF, 5º II) [18].

O autor assevera que:

[...] em um Estado Constitucional Democrático de Direito, o direito à livre manifestação da fé não se exaure na liberdade de culto. Para ele, envolve também a impossibilidade de o Estado impor uma conduta que atente contra a dignidade e a convicção religiosa do cidadão. Tal limitação é resultado da dimensão da liberdade de religião enquanto direito subjetivo público, garantindo a todos o acesso às manifestações culturais e tradições, posto serem essenciais para a formação da identidade pessoal do indivíduo[19].

Nessa perspectiva, defende então, como legítima a possibilidade de recusa de procedimentos médicos que envolvam transfusão sanguínea por pacientes testemunhas de Jeová. Ademais, afirma:

Não obstante, não raro, encontram-se decisões judiciais em que os praticantes da religião Testemunhas de Jeová são condenados a se submeter compulsoriamente ao tratamento médico que envolva transfusão de sangue. De ordinário, verifica-se na fundamentação dessas decisões a manifestação de um pensamento que se pretende fundado em uma ponderação de interesses entre dois direitos fundamentais: liberdade religiosa versus direito à vida, optando-se em dar prevalência a este último em detrimento da liberdade de religião. Todavia, conforme passaremos a demonstrar, esse suposto conflito entre dois direitos fundamentais (liberdade religiosa vs direito à vida) apresentando-se como um falso problema, não havendo na hipótese um autêntico conflito entre o bem jurídico vida e a liberdade religiosa[20].

Destarte, não temos receio em afirmar ser ilegítima e inaplicável a invocação da teoria da ponderação de interesses para pretender respaldar decisões judiciais que obrigam praticantes de determinada religião a realizarem a transfusão de sangue. Nesse quadro, a suposta ponderação de interesses entre vida e a liberdade religiosa apresenta-se como um falso problema. [...] Decisões judiciais que imponham essas condutas carecem de fundamentação jurídica consistente, bem como de adequação social. Em geral, tais decisões se baseiam em uma suposta existência de colisão entre direitos fundamentais, a qual, todavia, conforme demonstramos, não existe, seja em sentido amplo ou estrito[21].

Ou seja, a liberdade de um cidadão não pode ser ignorada/vilipendiada sob a frágil alegação de que sua vida será salva; esse fundamento além de não consistência jurídica, camufla um preconceito em relação a uma minoria. Exemplos que ilustrem nosso ponto de vista são facilmente demonstráveis, e.g., não se cogita de submeter contra sua vontade um cidadão que se recuse a praticar uma quimioterapia para tratar câncer, ou que obrigue determinada pessoa a compulsoriamente se submeter a um transplante de órgão. Entretanto, quando se trata de respeitar a recusa de um praticante da religião Testemunhas de Jeová em realizar uma transfusão de sangue, de maneira estarrecedora, a maioria, incluindo parcela do Judiciário, não admite essa recusa como legítima, privando assim os praticantes dessa religião de seu direito fundamental de liberdade[22].

Ao defender que a problemática do caso das testemunhas de Jeová se trata de um falso conflito, Nery salienta que:

[...] a colisão de direitos fundamentais em sentido estrito somente é verificada quando a realização de um direito fundamental, no caso a liberdade religiosa, causar dano ao direito fundamental de outrem[23].

Sustenta que, quando um praticante dessa religião se recusa a aceitar uma transfusão sanguínea, de forma alguma está pondo em risco direito fundamental de outro indivíduo, mas apenas exercendo seu direito público subjetivo de liberdade de religião.

No entender do nobre consultor, somente poderia ser desrespeitada a vontade do paciente em risco iminente de vida, quando por algum motivo, o mesmo não tiver possibilidade de manifestar sua vontade (paciente em choque, desacordado em coma ou em qualquer estado de total impossibilidade de expressar sua vontade), presumindo-se em tais casos, que o paciente deseja ser tratado.

Resta claro, que para o preclaro jurista, numa eventual situação de risco iminente de vida, em que o paciente puder manifestar sua vontade de recusa, esta prevalecerá à do médico. Assim, esta interpretação poder-se-ia estender aos casos de testemunha de Jeová, que manifestando por antecipado e por escrito ou através de um representante legal sua vontade de não ser transfundido mesmo em casos de risco iminente de vida, essa decisão deveria ser respeitada.

No mesmo sentido, ÁLVARO VILLAÇA DE AZEVEDO, por entender que cada direito fundamental contém uma expressão de dignidade, por assim dizer, de autonomia e liberdade, defende que o direito à vida garantido no artigo 5º, caput, de nossa Constituição Federal, não se resume simplesmente ao direito de existir em termos biológicos. Com base em tal raciocínio, a vida garantida constitucionalmente é a vida digna, ou seja, a vida com autonomia e liberdade. E, resguardar a vida vai além de preservar seu aspecto físico, envolvendo, também, os valores de cunho moral, espiritual e psicológicos que lhes são inerentes.

Assim, no que se refere ao caso das testemunhas de Jeová, quando um paciente de tal credo procura um médico, solicitando um tratamento de saúde e faz a opção de receber um tratamento alternativo à hemotransfusão, ocorre, na realidade, o exercício do direito à vida em seu sentido mais pleno, posto que está exercendo seu direito à vida com autonomia e liberdade.

Conforme Azevedo defende, não há que se falar em colisão entre direitos fundamentais, pois, de fato, o que ocorre é o exercício do direito à vida e da liberdade religiosa. Isso porque ao procurar um médico e buscar um tratamento de saúde que evita todos os riscos envolvidos em um procedimento de transfusão de sangue, o paciente está salvaguardando sua vida biológica e, também, está exercendo sua autonomia e liberdade na escolha de tratamento médico conforme suas motivações religiosas.

No entendimento de Azevedo, a excludente do inciso I do parágrafo 3º do artigo 146 do Código[24] refere-se apenas às situações em que o consentimento é presumido, ou seja, estando o paciente em iminente perigo de vida, não podendo expressar sua vontade ou não tendo feito previamente de outra forma - como em um documento com diretrizes antecipadas sobre tratamentos de saúde - o médico deve agir presumindo a anuência do paciente, isto é, “sem” o seu consentimento. Entretanto, caso o paciente tenha manifestado sua vontade de forma expressa, a inobservância dela não significa agir sem seu consentimento, mas contra sua vontade, caracterizando, assim, mesmo nesses casos de iminente risco de vida, constrangimento ilegal.[25]

Ressalte-se que essa influência doutrinaria vem dos anos 2009 e 2010 com a publicação dos ensinamentos doutrinários dos professores Nelson Nery Junior e Álvaro Villaça de Azevedo.

O próprio CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM) através do Parecer 12/2014 o CFM da lavra do ilustre Conselheiro, Dr. Carlos Vital Tavares Correia (hoje presidente desse Conselho) reconheceu que a Resolução CFM nº 1021/80 necessitava de uma revisão e atualização à luz dos avanços técnicos, éticos morais e legais, principalmente para definir de forma mais precisa o conceito de risco iminente de vida[26]. Entretanto, até a presente data a Resolução supracitada continua em pleno vigor e não há outros pareceres similares, o que denota a complexidade e delicadeza do assunto.

Muito citado tem sido o PARECER DO HOJE MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, LUÍS ROBERTO BARROSO, quando ainda era Procurador do Estado do Rio de Janeiro (Parecer 01/2010 – LRB[27]), titulado “Legitimidade de Recusa de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais” publicado Revista Trimestral de Direito Civil de RJ[28], para defender a tese que deve ser respeitada a recusa de transfusão de sangue de paciente testemunha de jeová, mesmo nos casos de risco iminente de vida.

Deve-se salientar que o parecer foi desenvolvido a partir de uma divergência de opiniões gerada entre dois procuradores do Estado do RJ a quem lhes foi delegada a tarefa de exarar parecer sobre recusa de transfusões de sangue por parte de pacientes testemunhas de Jeová nesse Estado.

A hipótese do trabalho do hoje ilustre Ministro do STF assim foi colocada:

I. A HIPÓTESE

1. Trata-se de consulta formulada pela Excelentíssima Senhora Procuradora-Geral do Estado do Rio de Janeiro, Dra. Lúcia Léa Guimarães Tavares, acerca da atitude a ser tomada pelos médicos do Estado em face da recusa de determinados pacientes, testemunhas de Jeová, a receber transfusão de sangue e hemoderivados, por fundamentos religiosos. Ao que noticia o processo administrativo respectivo, o problema tem se repetido com frequência no Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), motivando o encaminhamento da matéria a esta Procuradoria por parte do Diretor Jurídico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Professor Maurício Mota, com pedido de elaboração de parecer normativo.

2. Distribuído o processo à Procuradoria de Serviços Públicos, foi oferecido parecer pelo Procurador Gustavo Binenbojm, que se manifestou favoravelmente ao direito de recusa de tratamento2. Submetido à aprovação superior, o parecer recebeu visto divergente do Procurador-Chefe, Flávio de Araújo Willeman, que não reconheceu o direito de recusa de transfusão de sangue por parte de pacientes testemunhas de Jeová. A divergência de opiniões apenas confirma a complexidade do tema, que suscita debates jurídicos, morais e religiosos em diferentes partes do mundo.

Cita ainda parte das opiniões de cada procurador:

Procurador Gustavo Binenbojm: Após anotar que o paradigma do paternalismo médico vem sendo substituído pela autonomia do paciente, destacou o parecerista, em síntese, que: (i) o item nº 2 da Resolução CFM nº 1.021/80 deve ser visto como “expressão atávica do paternalismo ou beneficência médica”, na medida em que deixa de respeitar a vontade do paciente quando há risco de morte; (ii) a objeção de consciência das testemunhas de Jeová corresponde ao exercício da autonomia privada do indivíduo, materializada nos direitos fundamentais à privacidade – autodeterminação no plano das escolhas privadas –, ao próprio corpo e à liberdade religiosa; (iii) não cabe ao médico substituir-se a um paciente maior, capaz e informado para reavaliar sua escolha existencial; (iv) o direito à diferença exige do Estado que tolere e proteja posições jurídicas, ainda que consideradas exóticas pelos demais; (v) a decisão do paciente, que se recusa a receber tratamento, é auto executória em relação ao médico, na medida em que se funda diretamente nos direitos fundamentais envolvidos, de modo que não se exige a judicialização do tema; e, a despeito de a consulta não abranger o ponto, (vi) no caso de a recusa dizer respeito à saúde de menor de idade, sua manifestação de vontade poderia ser submetida ao Poder Judiciário, a fim de se aferir sua maturidade para tomar essa decisão.

Procurador-Chefe, Flávio de Araújo Willeman: não seria aceitável que alguém, “sob o fundamento de professar crença religiosa, dentro de um hospital (público ou privado) [possa] impedir o médico de cumprir com sua histórica missão de salvar vidas” (p. 6). Sustenta, em suma, que: (i) a legislação pertinente não faculta às pessoas a disposição da própria vida por razões de ordem religiosa; (ii) as diretivas éticas dos Conselhos de Medicina obrigam os médicos a proceder ao tratamento necessário para salvar a vida do paciente, sem o seu consentimento ou a despeito da sua recusa; (iii) o Código Civil de 2002, “em franca interpretação autêntica da CRFB/88” (p.14), determina a irrenunciabilidade dos direitos da personalidade, bem como a indisponibilidade do corpo humano; (iv) “o direito fundamental à vida humana deve ser considerado um direito universal quase que absoluto, não podendo ser relativizado e/ou flexibilizado para atender a culturas regionais, religiosas e/ou fundamentalistas” (p. 20; destacado no original); (v) o valor da dignidade humana engloba a possibilidade de o ser humano responder pelas suas decisões existenciais, mas “essa concepção não pode ser levada ao extremo, sobretudo em um país como o Brasil, dotado de quantidade imensa de seitas e religiões” (p. 23); (vi) a liberdade religiosa não pode impedir o Estado de “agir em defesa da vida humana ao ter ciência de que pessoas estão colocando em risco as próprias vidas – por fundamento religioso – e podem vir a atingir a esfera jurídica de terceiros”, já que os médicos poderiam estar sujeitos a sanções administrativas, civis e criminais (p. 25; destacado no original); (vii) a liberdade religiosa deve ser exercida de modo razoável e proporcional, e “a opção do Testemunha de Jeová viola (...) o princípio da razoabilidade (...)”, na medida em que sacrifica o seu direito à vida (p. 29; destacado no original); (viii) “a paciente, ao se dirigir ao hospital, optou pela salvação de sua vida, cabendo, portanto, o método e o tratamento final ao médico” (p. 33).

A seguir, o então procurador Luís Roberto Barroso, discorre na primeira parte, dedicada aos fundamentos teóricos relevantes para o deslinde da questão, analisando a mudança de paradigma na ética médica e explorando os sentidos possíveis da ideia de dignidade da pessoa humana, bem como o conteúdo dos dois principais direitos fundamentais que concorrem na hipótese: o direito à vida e a liberdade religiosa. Na segunda parte, fez a aplicação das categorias teóricas à situação específica em exame, para concluir que a dignidade da pessoa humana, na sua dimensão de autonomia privada do indivíduo, confere legitimidade à decisão de recusa de tratamento médico por fundamento religioso.

Ao analisar o aspecto da vida como direito fundamental e como valor objetivo ressalta que o direito à vida apesar de indisponível, não é absoluto admitindo-se sua flexibilização:

[...] Em suma: o valor objetivo da vida humana desfruta de uma posição preferencial no ordenamento jurídico, podendo o direito à vida ser considerado indisponível prima facie. Nada obstante, não se trata de um direito absoluto, havendo hipóteses constitucionais e legais em que se admite a sua flexibilização. A assunção do risco de morte poderá ser legítima quando se trate do exercício de outras liberdades básicas pelo titular do direito. Impõe-se, nesse ambiente, uma análise caso a caso, na qual se possam analisar os diferentes elementos em jogo, com destaque para a repercussão.

Já quanto ao aspecto da liberdade religiosa, o eminente constitucionalista assevera que se trata de um direito fundamental, expressão da dignidade humana, que a recusa terapêutica por motivos de crença religiosa como manifestação de vontade da pessoa deve, em determinadas circunstâncias, ser respeitada pelo Estado e pela sociedade, como manifestação da autonomia do paciente, mesmo nos casos de risco de vida:

[...] A liberdade de religião é um direito fundamental, uma das liberdades básicas do indivíduo, constituindo escolha existencial que deve ser respeitada pelo Estado e pela sociedade. 2. A recusa em se submeter a procedimento médico, por motivo de crença religiosa, configura manifestação da autonomia do paciente, derivada da dignidade da pessoa humana

[...] Em conclusão: a liberdade religiosa é um direito fundamental, que integra o universo de escolhas existenciais básicas de uma pessoa, funcionando como expressão nuclear da dignidade humana. O Poder Público, como consequência, não pode impor uma religião nem impedir o exercício de qualquer delas, salvo para proteger valores da comunidade e os direitos fundamentais das demais pessoas. A pergunta que resta responder é a seguinte: pode o Estado proteger um indivíduo em face de si próprio, para impedir que o exercício de sua liberdade religiosa lhe cause dano irreversível ou fatal? Este é um caso-limite que contrapõe o paternalismo à autonomia individual.

[...] A crença religiosa constitui uma escolha existencial a ser protegida, uma liberdade básica da qual o indivíduo não pode ser privado sem sacrifício de sua dignidade. A transfusão compulsória violaria, em nome do direito à saúde ou do direito à vida, a dignidade humana, que é um dos fundamentos da República brasileira (CF, art. 1º, IV).

[...] Relembre-se, como já assinalado, que a ordem jurídica respeita até mesmo decisões pessoais de risco que não envolvam escolhas existenciais, a exemplo da opção de praticar esportes como o alpinismo e o paraquedismo, ou de desenvolver atuação humanitária em zonas de guerra. Com mais razão deverá respeitar escolhas existenciais. Por tudo isso, é legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue por parte das testemunhas de Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como expressão da autonomia privada, não sendo permitido ao Estado impor procedimento médico recusado pelo paciente. Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida como expressão de sua dignidade.

Entretanto, o Ministro da Suprema Corte exara entendimento de que não basta a simples manifestação de vontade para que ela seja respeitada. No seu entendimento, essa manifestação de vontade deve ser válida e inequívoca e, para tanto, deve cumprir certos critérios e requisitos:

O sujeito do consentimento é o titular do direito fundamental em questão, que deverá manifestar de maneira válida e inequívoca a sua vontade. Para que ela seja válida, deverá ele ser civilmente capaz e estar em condições adequadas de discernimento para expressá-la. Portanto, além da capacidade, o titular do direito deverá estar apto para manifestar sua vontade, o que exclui as pessoas em estados psíquicos alterados, seja por uma situação traumática, por adição a substâncias entorpecentes ou por estarem sob efeito de medicamentos que impeçam ou dificultem de forma significativa a cognição. Para que se repute o consentimento como inequívoco, ele deverá ser, ainda, personalíssimo, expresso e atual. Personalíssimo exclui a recusa feita mediante representação, somente se admitindo que o próprio interessado rejeite a adoção do procedimento. A decisão, ademais, haverá de ser expressa, não se devendo presumir a recusa de tratamento médico. Ainda que essa exigência possa não ser absoluta, ela certamente é recomendável, inclusive para resguardo do médico e do Estado. Por fim, a vontade deve ser atual, manifestada imediatamente antes do procedimento, e revogável.

Para que seja considerado genuíno, o consentimento precisará também ser livre, fruto de uma escolha do titular, sem interferências indevidas. Isso significa que ele não deve ter sido produto de influências externas indevidas, como induções, pressões ou ameaças. Por derradeiro, o consentimento tem de ser informado, o que envolve o conhecimento e a compreensão daquele que vai consentir acerca de sua situação real e das consequências de sua decisão. Nessa linha, os elementos relevantes devem ser transmitidos em linguagem acessível ao indivíduo, conforme indicado na Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (Portaria MS nº 675/2006), em seu Terceiro Princípio, item IV, e na Lei Estadual (RJ) nº 3.613/2001. (grifei)

Ainda, faz uma análise dos dispositivos infraconstitucionais (Código Civil, Código Penal e Código de Ética Médica) tecendo ponderações a respeito de sua interpretação à luz dos Princípios Constitucionais:

Código Civil.

Na sua dicção literal, o art. 11 parece consagrar a tese de que os direitos da personalidade – entre os quais se incluem os direitos à vida e à integridade física – seriam insuscetíveis de qualquer limitação, inclusive voluntária. O dispositivo requer algum esforço hermenêutico, sob pena de incorrer em flagrante inconstitucionalidade, esvaziando os direitos que se destina a proteger, bem como a liberdade individual. Isso porque, como demonstrado, o exercício da autonomia pessoal envolve escolhas que, vistas por um observador externo, poderiam ser facilmente enquadradas no conceito de renúncia. Não é o caso de repisar os muitos exemplos que foram fornecidos. No momento, basta constatar que o excesso retórico do art. 11 deve ser harmonizado com o restante da ordem jurídica.

Em uma sociedade plural, é inevitável que os direitos da personalidade entrem em conflitos potenciais ou reais entre si, exigindo temperamentos e até a imposição de restrições recíprocas ou condicionadas. O ponto não é minimamente controverso, aceitando-se de forma pacífica, como já registrado, que não há direitos absolutos. Nesse sentido, um enunciado normativo que pretenda estabelecer a impossibilidade genérica de restrição aos direitos da personalidade, ainda que voluntária, acaba por evocar uma realidade não apenas contra factual, mas também incompatível com o pluralismo consagrado pela Constituição. A única leitura possível de tal dispositivo seria no sentido de entender que ele veda disposições caprichosas ou fúteis, sem prejuízo da possibilidade de que a convivência entre direitos distintos imponha escolhas e compromissos. De outra forma, o art. 11 será, mais do que inconstitucional, verdadeiramente inaplicável. Afinal, em um conflito entre direitos da personalidade, simplesmente não há como figurar uma solução em que ambos incidam sem qualquer temperamento.

O art. 15, por sua vez, não diz nada a respeito das situações em que a recusa de tratamento médico possa ocasionar ou agravar um risco para a vida do paciente. Ao contrário, ele permite a recusa de tratamento que seja, em si mesmo, arriscado. Veja-se que o dispositivo não faz nenhuma ressalva, não se cogitando da possibilidade de que o médico imponha o tratamento arriscado por considerar que a inação levaria à morte certa. Assim, o dispositivo não consagra a ideia de que a vida deva ser mantida a qualquer custo. Em vez disso, respeita a escolha pessoal, que pode ter se baseado na perspectiva de uma sobrevida ou mesmo no receio da perda da consciência e da autonomia moral. Nesse sentido, é até possível enxergar o dispositivo como – mais uma – confirmação de que o valor objetivo da vida humana não é tratado de forma absoluta na ordem jurídica brasileira, devendo ceder espaço diante de escolhas existenciais especialmente relevantes.

Essa leitura se compatibiliza com aquela que se acaba de fazer a respeito do art. 11, também do Código Civil: as recusas de tratamento – como eventuais restrições ou conformações de direitos fundamentais – são legítimas desde que não sejam caprichosas, i.e., desde que haja um fundamento consistente associado ao exercício da capacidade de autodeterminação, derivada da dignidade como autonomia. Com isso, evita-se a funcionalização dos direitos, sem recair em um individualismo exagerado. (grifei)

Código Penal.

O Código Penal também não traz nenhum dispositivo específico sobre a questão. A única menção próxima consta do art. 146, que criminaliza o constrangimento ilegal, mas ressalva a conduta do médico que realiza procedimento sem obter o consentimento do paciente em casos de iminente risco de vida.

Como é fácil perceber, o artigo não trata como crime a conduta do médico que respeite a vontade do paciente. Nesse sentido, o máximo que se poderia extrair diretamente da disposição seria a inexistência de responsabilidade penal do médico em caso de imposição do tratamento.

Na verdade, porém, é perfeitamente possível dar ao referido artigo uma interpretação conforme a Constituição, limitando sua aplicação aos casos em que, havendo iminente risco de vida, não seja possível a obtenção do consentimento. Tal leitura se harmoniza com as conclusões obtidas no presente estudo, em que se assentou a necessidade de consentimento personalíssimo, livre e informado para a recusa de tratamento por motivação religiosa. No entanto, obedecidos esses requisitos, a manifestação da vontade deverá ser respeitada por força dos princípios constitucionais que incidem diretamente na hipótese. Por tais fundamentos, seria impossível qualificar a conduta do médico como homicídio ou omissão de socorro, ou ainda enquadrá-la em qualquer outro tipo em tese cogitável. (grifei)

Código de Ética Médica.

Ainda em reforço a tais afirmações, o Código proíbe o médico de “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”. Ao mesmo tempo, impõe ao profissional que se valha de todos os meios de diagnóstico e tratamento que estejam ao seu alcance e sejam cientificamente reconhecidos. Como é intuitivo, ambas as disposições devem ser interpretadas à luz do direito humano de decidir sobre a realização de tratamentos, estabelecido de forma taxativa e sem reservas.

Assim, a ressalva relativa ao risco iminente de morte só pode ser compreendida como uma dispensa da obtenção de consentimento nos casos em que isso seja impossível, e.g., em razão do estado de inconsciência. Aliás, tal leitura vai ao encontro da ressalva, feita no presente estudo, de que se deve realizar a transfusão de sangue nas situações em que não seja possível obter ou confirmar a recusa personalíssima, expressa e informada do paciente, mesmo contra a vontade de familiares ou amigos. Da mesma forma, a exigência de que sejam empregados todos os recursos disponíveis não autoriza que estes sejam impostos ao paciente. Em vez disso, o dispositivo parece impedir que meios disponíveis ao médico e consentidos pelo paciente deixem de ser utilizados por fatores externos, como os eventuais custos.

Finalmente, duas previsões que tratam sobre tema diverso e igualmente polêmico ilustram a prevalência da dignidade como autonomia na sistemática do Código de Ética. A primeira, incluída no capítulo dos princípios fundamentais, estabelece que, em situações de doença irreversível ou terminal, o médico se abstenha de empreender medidas obstinadas e se concentre na melhoria da qualidade de vida do paciente. Tal disposição é complementada por outra de mesmo teor, na qual se faz referência expressa ao necessário respeito à vontade do paciente. O conjunto formado por esses dois artigos corrobora a conclusão de que o novo Código de Ética do Conselho Federal de Medicina se pauta pela ideia de dignidade como valor complexo, e não pela atribuição de peso supostamente absoluto ao valor objetivo da vida humana. Basta essa constatação para que o diploma se abra a uma interpretação conforme ao sistema constitucional, permitindo que se leve em conta a dignidade, em sua dupla perspectiva. Na hipótese de que se trata – recusa de determinados tratamentos por testemunhas de Jeová – tal interpretação conduz à prevalência da autonomia em respeito à decisão existencial fundada em convicção religiosa.

Veja-se que não se está propondo qualquer distorção dos enunciados contidos no referido diploma. Ao contrário, cuida-se apenas de interpretar os dispositivos supostamente lacônicos ou dúbios de forma a realizar a diretriz explícita do artigo que enuncia, como direito humano, a prerrogativa do paciente de decidir autonomamente sobre a realização de tratamentos, ao mesmo tempo em que proíbe o médico de se valer de coação. Ademais, convém lembrar uma vez mais que a possibilidade de recusa na situação em tela foi extraída diretamente da Constituição, de modo que a eventual incompatibilidade do Código de Ética nesse particular redundaria na sua invalidade, e não no afastamento das conclusões obtidas. O que se defende, no momento, é a possibilidade de conferir a esse ato normativo um sentido conforme a Constituição.

No entanto, se é verdade que as disposições do Código de Ética do CFM comportam esse tipo de leitura, o mesmo não se pode dizer da Resolução nº 136/99, do CREMERJ – Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, que trata especificamente da recusa em receber transfusão de sangue e hemoderivados. Esse ato determina que os médicos tentem evitar a necessidade de transfusões, mas prevê a sua realização forçada em caso de risco iminente à vida. Pelas razões expostas ao longo do estudo, verifica-se aqui uma incompatibilidade incontornável com o princípio da dignidade da pessoa humana na perspectiva da autonomia, bem como violações adicionais à liberdade de religião, à igualdade e ao pluralismo. Diante dessa constatação, sequer é necessário enveredar pela discussão da incompatibilidade entre a Resolução e o novo Código de Ética do CFM, interpretado à luz da Constituição. (grifei)

Conclui o Parecer da forma seguinte:

A. Nas últimas décadas, a ética médica evoluiu do paradigma paternalista, em que o médico decidia por seus próprios critérios e impunha terapias e procedimentos, para um modelo fundado na autonomia do paciente. A regra, no mundo contemporâneo, passou a ser a anuência do paciente em relação a qualquer intervenção que afete sua integridade.

B. A dignidade da pessoa humana é o fundamento e a justificação dos direitos fundamentais. Ela tem uma dimensão ligada à autonomia do indivíduo, que expressa sua capacidade de autodeterminação, de liberdade de realizar suas escolhas existenciais e de assumir a responsabilidade por elas. A dignidade pode envolver, igualmente, a proteção de determinados valores sociais e a promoção do bem do próprio indivíduo, aferido por critérios externos a ele. Trata-se da dignidade como heteronomia. Na Constituição brasileira, é possível afirmar a predominância da ideia de dignidade como autonomia, o que significa dizer que, como regra, devem prevalecer as escolhas individuais. Para afastá-las, impõe-se um especial ônus argumentativo.

C. É legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue, por parte das testemunhas de Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como expressão da autonomia privada, não sendo permitido ao Estado impor procedimento médico recusado pelo paciente. Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida como expressão de sua dignidade.

D. Tendo em vista a gravidade da decisão de recusa de tratamento, quando presente o risco de morte, a aferição da vontade real do paciente deve estar cercada de cautelas. Para que o consentimento seja genuíno, ele deve ser válido, inequívoco e produto de uma escolha livre e informada. (grifei)

Pode se concluir então que para o Min. Barroso, para que a MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DO PACIENTE RECUSANDO UMA TRANSFUSÃO DE SANGUE seja respeitada pelo médico, mesmo nos casos de risco iminente de vida, não basta que a pessoa seja apenas adulta, capaz e que manifestou explicitamente sua recusa, mas exige o cumprimento de todos os seguintes critérios e requisitos:

CRITÉRIOS:

a. VÁLIDA: exige do paciente os seguintes requisitos:

a.1 Capacidade civil plena (conforme dispõe o Código Civil).

a.2 Aptidão:  condições adequadas de discernimento para expressá-la. Portanto, exclui as pessoas em estados psíquicos alterados, seja por uma situação traumática, por adição a substâncias entorpecentes ou por estarem sob efeito de medicamentos que impeçam ou dificultem de forma significativa a cognição.

b. INEQUÍVOCA.  Para tanto deve cumprir os seguintes requisitos:

b.1 Personalíssima: exclui a recusa feita mediante representação, somente se admitindo que o próprio interessado rejeite a adoção do procedimento.

b.2 Expressa: não se devendo presumir a recusa de tratamento médico. Ainda que essa exigência possa não ser absoluta, ela certamente é recomendável, inclusive para resguardo do médico e do Estado.

b.3 Atual: manifestada imediatamente antes do procedimento.

b.4 Revogável.

b.5 Genuína: a recusa precisará também ser livre, fruto de uma escolha do titular, sem interferências indevidas. Isso significa que ele não deve ter sido produto de influências externas indevidas, como induções, pressões ou ameaças. Por derradeiro, terá também de ser informada, o que envolve o conhecimento e a compreensão daquele que vai recusar acerca de sua situação real e das consequências de sua decisão.

Outro fato importante a favor desta tese, foi o advento do ENUNCIADO 403 APROVADO NA V JORNADA DE DIREITO CIVIL, realizada entre os dias 8 e 10 de novembro de 2011, no Conselho de Justiça Federal (CJF)[29] que fez uma interpretação mais abrangente do disposto no artigo 15 do Código Civil, ampliando seu escopo:

403) Art. 15. O Direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante. (grifei)

Merecem destaque as condições sob as quais, na ótica dessa V Jornada, a decisão de recusa terapêutica deve ser respeitada independente do paciente/procedimento envolver ou não risco de vida:

a) Capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente.

b) Manifestação de vontade livre, consciente e informada.

c) Oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante.

Fazendo um paralelo com o parecer do Ministro Luís Barroso, o Enunciado 403, exigiria que a manifestação se vontade seja apenas válida (capacidade civil plena e consciente), personalíssima (excluído o suprimento pelo representante ou assistente) e genuína (manifestação de vontade livre e informada). Entretanto, nada exige a respeito da manifestação ser expressa, atual e revogável.

A JURISPRUDÊNCA também tem se mostrado alinhada com esta corrente. Veja-se alguns julgados:

EMENTA: PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. - No contexto do confronto entre o postulado da dignidade humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. - Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta hospitalar.

[...] Aparentemente, a direito à vida não se exaure somente na mera existência biológica, sendo certo que a regra constitucional da dignidade da pessoa humana deve ser ajustada ao aludido preceito fundamental para encontrar-se convivência que pacifique os interesses das partes. Resguardar o direito à vida implica, também, em preservar os valores morais, espirituais e psicológicos que se lhe agregam. (...) É necessário, portanto, que se encontre uma solução que sopese o direito à vida e à autodeterminação que, no caso em julgamento, abrange o direito do agravante de buscar a concretização de sua convicção religiosa, desde que se encontre em estado de lucidez que autorize concluir que sua recusa é legítima.

Sim, porque não há regra legal alguma que ordene à pessoa natural a obrigação de submeter-se a tratamento clínico de qualquer natureza; a opção de tratar-se com especialista objetivando a cura ou o controle de determinada doença é ato voluntário de quem é dela portador, sendo certo que, atualmente, o recorrente encontra-se em alta hospitalar e não há preceito normativo algum que o obrigue a retornar ao tratamento quimioterápico se houver a perspectiva de ocorrer a transfusão sanguínea.

É conveniente deixar claro que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer outro tratamento clínico, desde que não envolva a aludida transfusão; dessa forma, tratando-se de pessoa que tem condições de discernir os efeitos da sua conduta, não se lhe pode obrigar a receber a transfusão, especialmente quando existem outras formas alternativas de tratamento clínico, como exposto na petição recursal. (...) (TJMG. 1ª Câmara Cível. AI nº 1.0701.07.191519-6/001. Des. Relator Alberto Vilas Boas. Julgado em 14.08.2007).

Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENÇA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA. OPÇÃO POR TRATAMENTO MÉDICO QUE PRESERVA A DIGNIDADE DA RECORRENTE. A decisão recorrida deferiu a realização de transfusão sanguínea contra a vontade expressa da agravante, a fim de preservar-lhe a vida. A postulante é pessoa capaz, está lúcida e desde o primeiro momento em que buscou atendimento médico dispôs, expressamente, a respeito de sua discordância com tratamentos que violem suas convicções religiosas, especialmente a transfusão de sangue. Impossibilidade de ser a recorrente submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial. Tratamento médico que, embora pretenda a preservação da vida, dela retira a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido. Livre arbítrio. Inexistência do direito estatal de "salvar a pessoa dela própria", quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros. Proteção do direito de escolha, direito calcado na preservação da dignidade, para que a agravante somente seja submetida a tratamento médico compatível com suas crenças religiosas. AGRAVO PROVIDO. (TJRS. Agravo de Instrumento Nº 70032799041, Décima Segunda Câmara Cível, Relator: Cláudio Baldino Maciel, Julgado em 06/05/2010)

AGRAVO DE INSTRUMENTO (Decisão Monocrática) contra r. decisão copiada as fls. 17/18 ou 80/81 (ou fls. 25/26 dos autos principais) que, em medida cautelar inominada (petição inicial as fls. 55/59) movida pela agravada contra a agravante, autorizou a agravada a realizar transfusão de sangue na agravante, contrariando a vontade desta, sob o fundamento de que a vida é um bem maior que se sobrepõe a qualquer outro direito, inclusive o de liberdade religiosa. 2) A ação foi movida contra a paciente, razão pela qual a própria agravada reconhece estar ela em sua plena capacidade civil, ou seja, consciente e em condições de manifestar a sua livre e espontânea vontade. Não se confunde, portanto, com situações onde terceira pessoa (pais, curadores etc) manifesta a sua vontade em substituição ao do enfermo e, portanto, outros aspectos devem ser considerados. 2.1) Assim, considera-se válida a declaração manuscrita da agravante copiada as fls. 26, bem como em documento impresso da própria agravada (fl. 66); ela é clara no sentido de que está ciente dos riscos a que se submete, bem como diz: "não autorizo o tratamento indicado transfusão, de acordo com meus dogmas e crenças religiosas". Veja-se, como exemplo, na legislação, o art. 10 da Lei n. 9.434/97 e o art. 15 do Código Civil. Aliás, perante psicóloga da agravada (fl. 67), confirmou-se tal posicionamento, com apoio do marido (que, pelo que consta, não tem a mesma crença religiosa). Há manifestação médica (fl. 78 ou 79) apontando como sendo a melhor terapia aquela que tem a transfusão de sangue, sem a qual o risco de morte é muito superior (100%). 3) Estando a agravante em sua plena capacidade, deve ser respeitada a sua opção de natureza religiosa (testemunha de Jeová) que importa em recusa de terapia com transfusão de sangue, mesmo que seja o último recurso para salvar a vida física da agravante. Há o consentimento informado. Não pode, é evidente, a entidade médica e hospitalar ser penalizada com eventual insucesso de terapia ministrada, quando recomenda outra, recusada pelo paciente. A vida não está limitada à vida física, em especial para pessoas com crença religiosa arraigada, onde a salvação da alma está acima da salvação de seu corpo físico. Em outras palavras: salva-se o corpo, mata-se a alma. 3.1) DEFIRO, portanto, a liminar, para suspender a r. decisão recorrida. 4) Dê-se ciência ao MM. Juiz de Direito. 5) Processe-se o agravo de instrumento, intimando-se a agravada. 6) Com as informações, à d. Procuradoria Geral de Justiça. 7) Fica autorizado o Cartório o encaminhamento desta decisão ao MM. Juiz de Direito, para o fim indicado no item 3.1. Int.(TJSP. TJ/SP. 6ª. Câmara de Direito Privado. Agravo de Instrumento nº 0065972-63.2013.8.26.0000. Relator: Des. ALEXANDRE LAZZARINI, julgado em 09 de abril de 2013.)

AGRAVO DE INSTRUMENTO (Decisão Monocrática).

[...] Inicialmente, é necessário esclarecer que a escolha em receber transfusão de sangue está, no caso dos autos, ligada fundamentalmente à crença religiosa da paciente, ora agravante, e da dignidade decorrente destes valores religiosos nos quais acredita.

Sobre a questão, há divergência na jurisprudência, uma posição mais atual entende que a liberdade de crença deve prevalecer. Nesse caso, se fará a ponderação entre a liberdade de crença e a vida, mas não apenas a integridade física, a intelectual e psíquica também devem ser consideradas, ou seja, tutelar uma vida digna. Assim, admite-se o direito das minorias de não realizar a transfusão de sangue, pois se estaria violando o direito a uma vida digna de uma pessoa Testemunha de Jeová.

A respeito, destaca-se a seguinte jurisprudência:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENÇA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA. OPÇÃO POR TRATAMENTO MÉDICO QUE PRESERVA A DIGNIDADE DA RECORRENTE. A decisão recorrida deferiu a realização de transfusão sanguínea contra a vontade expressa da agravante, a fim de preservar-lhe a vida. A postulante é pessoa capaz, está lúcida e desde o primeiro Gabinete Des. Paulo Roberto Sartorato momento em que buscou atendimento médico dispôs, expressamente, a respeito de sua discordância com tratamentos que violem suas convicções religiosas, especialmente a transfusão de sangue. Impossibilidade de ser a recorrente submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial. Tratamento médico que, embora pretenda a preservação da vida, dela retira a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido. Livre arbítrio. Inexistência do direito estatal de "salvar a pessoa dela própria", quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros. Proteção do direito de escolha, direito calcado na preservação da dignidade, para que a agravante somente seja submetida a tratamento médico compatível com suas crenças religiosas. AGRAVO PROVIDO. (TJRS - Agravo de Instrumento nº 70032799041, Décima Segunda Câmara Cível, Rel. Des. Cláudio Baldino Maciel, j. em 06/05/2010).

Por outro lado, há uma outra corrente, a qual entende que deve ser realizada a transfusão de sangue, mesmo contra a vontade do paciente. Nesse caso, precisa-se defender a vida física sobre a liberdade de crença religiosa. O direito brasileiro não admite o testamento vital, isto é, não admite manifestação de vontade para dispor da vida. Nesse sentido, cita-se:

CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, AUTORIZAR OU ORDENAR TRATAMENTO MÉDICO-CIRÚRGICOS E/OU HOSPITALARES, SALVO CASOS EXCEPCIONALÍSSIMOS E SALVO QUANDO ENVOLVIDOS OS INTERESSES DE MENORES. SE IMINENTE O PERIGO DE VIDA, É DIREITO E DEVER DO MÉDICO EMPREGAR TODOS OS TRATAMENTOS, INCLUSIVE CIRÚRGICOS, PARA SALVAR O PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DESTE, E DE SEUS FAMILIARES E DE QUEM

QUER QUE SEJA, AINDA QUE A OPOSIÇÃO SEJA DITADA POR MOTIVOS RELIGIOSOS. IMPORTA AO MÉDICO E AO HOSPITAL E DEMONSTRAR QUE UTILIZARAM A CIÊNCIA E A TÉCNICA APOIADAS EM SÉRIA LITERATURA MÉDICA, MESMO QUE HAJA DIVERGÊNCIAS QUANTO AO MELHOR TRATAMENTO. O JUDICIÁRIO NÃO SERVE PARA DIMINUIR OS RISCOS DA PROFISSÃO MÉDICA OU DA ATIVIDADE HOSPITALAR. SE TRANSFUSÃO DE SANGUE FOR TIDA COMO IMPRESCINDÍVEL, CONFORME SÓLIDA LITERATURA MÉDICO-CIENTÍFICA (NÃO IMPORTANDO NATURAIS DIVERGÊNCIAS), DEVE SER CONCRETIZADA, SE PARA SALVAR A VIDA DO PACIENTE MESMO CONTRA A VONTADE DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, MAS DESDE QUE HAJA URGÊNCIA E PERIGO IMINENTE DE VIDA (ART. 146, § 3º, INC. I, DO CÓDIGO PENAL). CASO CONCRETO EM QUE NÃO SE VERIFICAVA TAL URGÊNCIA. O DIREITO À VIDA ANTECEDE O DIREITO À LIBERDADE, AQUI INCLUÍDA A LIBERDADE DE RELIGIÃO; É FALÁCIA ARGUMENTAR COM OS QUE MORREM PELA LIBERDADE POIS, AÍ SE TRATA DE CONTEXTO FÁTICO TOTALMENTE DIVERSO. NÃO CONSTA QUE MORTO POSSA SER LIVRE OU LUTAR POR SUA LIBERDADE. HÁ PRINCÍPIOS GERAIS DE ÉTICA E DE DIREITO, QUE ALIÁS NORTEIAM A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, QUE PRECISAM SE SOBREPOR AS ESPECIFICIDADES CULTURAIS RELIGIOSAS; SOB PENA DE SE HOMOLOGAREM AS MAIORES BRUTALIDADES; ENTRE ELES ESTÃO OS PRINCÍPIOS QUE RESGUARDAM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS RELACIONADOS COM A VIDA E A DIGNIDADE HUMANAS. RELIGIÕES DEVEM PRESERVAR A VIDA E NÃO EXTERMINÁ-LA. (TJRS - Apelação Cível nº 595000373, Sexta Câmara Cível, Rel. Des. Sérgio Gischkow Pereira, j. em 28/03/1995).

Diante da divergência dos posicionamentos acima expostos e, considerando a informação da agravante quanto à existência de outros procedimentos alternativos que podem ser empregados para salvaguardar a integridade de sua saúde, cuja vontade manifesta a agravante, ao menos até que seja a matéria melhor analisada pela câmara colegiada competente, entendo por bem suspender a decisão que concedeu a liminar, até a análise mais detida do mérito. (TJ/SC. Agravo de Instrumento n. 2011.016822-7, de Joinville. Decisão pelo Relator: Des. PAULO ROBERTO SARTORATO, julgado em 25 de março de 2011.

Em recente decisão monocrática, ao analisar a questão, o desembargador federal do TRF-1, Kassio Nunes Marques, citou o entendimento do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, expresso no parecer alhures citado, para suspender os efeitos de uma decisão, proferida pelo Juízo Federal da 18ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais (SJMG), que autorizou a equipe médica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, gerido pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), a realizar uma transfusão compulsória de sangue  numa paciente, então agravante no processo.

AGRAVO DE INSTRUMENTO (DECISÃO MONOCRÁTICA).

[...] Na mesma esteira, protagonizando este entendimento, o professor e Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso quando da elaboração do parecer intitulado "Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade Humana, liberdade religiosa e escolhas", analisou a colisão entre o Direito à Vida e Liberdade de Religião, fazendo as seguintes ponderações: [...] Todavia, em que pese a relevância e a riqueza do debate que se pode travar acerca do tema, verifico que, ao contrário do que alega a Agravada e aduz a decisão impugnada, há outro tratamento médico que poderá ser dispensado ao paciente – que não implique em transfusão de sangue -, como no caso do medicamento consentido pela paciente para a correção da anemia, que é a Eritropoetina (hormônio que atua na medula óssea para a produção de células sanguíneas. O medicamento referido está sendo administrado desde o dia 15/3/2015, um dia antes do ajuizamento da ação pela Agravante, conforme relatório médico acostado.

Nesta hipótese, fica diferida a aludida discussão doutrinária para outra ocasião, uma vez que não há no caso dos autos, ao meu sentir, colisão do direito invocado com o direito à vida. (TRF-1. AI Nº 0017343-82.2016.4.01.0000/MG -DECISÃO MONOCRÁTICA. Rel. Des. Fed. DESEMBARGADOR FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES. Julgado em 11 de abril de 2016. Data da publicação: 05/05/2016). (grifei)

Percebe-se que embora o Ilustre desembargador cite entendimento do Ministro Barroso, ele concedeu efeito suspensivo ao A.I., não por concordar com a tese levantada na sua fundamentação, mas pelo fato de não evidenciar no caso em tela, colisão com o direito à vida (risco iminente de vida).

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Sobre os autores
Diana Fontes de Barba

Advogada. Especialista em Direito Médico e Hospitalar.

Alejandro Enrique Barba Rodas

Médico. Especialista em Medicina Intensiva

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBA, Diana Fontes ; RODAS, Alejandro Enrique Barba. A controvérsia da recusa terapêutica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5565, 26 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69251. Acesso em: 6 mai. 2024.

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