IV – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA COMO LIMITADOR DO INDEVIDO MANEJO DA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Após a presente explanação se constata que a condição de procedibilidade para a ação de improbidade administrativa contra agentes públicos lotados em órgãos tributários, somente poderá ser efetivada após a constituição definitiva do crédito tributário lançado, devendo estar também configurada a má-fé do responsável pelo ato revisto administrativamente.
Este liame, entre revogação administrativa, pelo órgão hierarquicamente responsável e o dolo do Auditor Fiscal é necessário, do contrário, não haverá tipicidade para a subsunção na Lei de Improbidade Administrativa.
Sem tipicidade da conduta do agente público haverá infringência ao princípio da legalidade e da dignidade da pessoa humana, sendo que este último princípio que tomou assento nos diversos textos constitucionais dos países que preconizam o Estado de Direito após o término da Segunda Grande Guerra, onde a preocupação com valores civilizatórios, trouxe a necessidade de voltar o poder das nações para o homem, até então totalmente abandonado, colocado em plano secundário. [26]
Não tardou, por outro lado, que, criada a Organização das Nações Unidas, fosse recuperada e consagrada a Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada e adotada, sob seus auspícios, em 1948, sendo entendida "como um conjunto de normas que visam defender a pessoa humana contra os excessos do poder cometidos pelos órgãos do Estado." [27]
No ano seguinte, após a benéfica influência da ONU, a Lei Fundamental de Bonn, da República Federal da Alemanha, a qual se reconhece, geralmente, o pioneirismo da iniciativa, sem embargo de haver a Itália, na sua Constituição de 1947 (art. 3º), referido a dignidade social de que igualmente desfrutam todos os cidadãos. Sem a intenção de fazer um inventário exauriente, pode dizer-se que também houve a disseminação desse salutar princípio nas Constituições de Portugal, em 1976, Espanha, em 1978, e Brasil, em 1988. Os anos 90, do mesmo século, marcaram a influência do princípio por numerosos outros países, sobretudo no Leste Europeu. [28]
Segundo Paulo Otero, [29] o princípio da dignidade da pessoa humana é "dotado de uma natureza sagrada e de direitos inalienáveis, afirma-se como valor irrenunciável e cimeiro de todo o modelo constitucional, servindo de fundamento do próprio sistema jurídico: O Homem e a sua dignidade são a razão de ser da sociedade, do Estado e do Direito."
Para José Afonso da Silva, [30] o princípio sub oculis é "um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida, ou "o valor supremo da ordem jurídica" em que a transformou, "reconhecendo a sua existência e a sua eminência", a Constituição."
Extraídas as lições de Juarez Tavares, [31] tem-se que "a ordem jurídica não pode tomar o cidadão como simples meio, mas como fim."
Invocando lição de Günther Dürig, resumiu-lhe o significado originário o Ministro Gilmar Mendes: [32] O princípio da proteção à dignidade da pessoa humana "proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais."
Mais uma vez, se faz necessário aderir-se ao pensamento de Juarez Tavares: [33] "a proteção à dignidade serve de parâmetro ao legislador" na positivação do "pressuposto da culpabilidade".
Por este princípio, torna-se necessário ao regular o exercício do poder sancionatório a sólida demonstração, prima facie, de que a acusação não pode ser temerária ou leviana, ela deve ser baseada em um mínimo de prova e de solidez jurídica. Devendo a acusação fundar-se em robustos elementos jurídicos e em provas cabais, para que não ocorra excesso ou abuso de poder do direito de acionar.
Visa, portanto, a dignidade da pessoa humana estabelecer a mínima garantia de que o direito público fornecerá "adequada protecção jurídica aos particulares contra os atropelos, as arbitrariedades, as discriminações, as perseguições políticas, que faz em relação aos cidadãos." [34]
Ou, como averbado sensatamente pelo Min. Victor Nunes Leal, [35] "o poder de denúncia não existe para atormentar as pessoas." Nos dias de hoje e sob o primado da proteção à dignidade da pessoa humana, não há sequer como levar a sério uma ação de improbidade administrativa que é distribuída sem que ocorra o julgamento definitivo da última instância da esfera hierárquica administrativa, onde ocorra a constituição do crédito tributário, com a inequívoca demonstração de que houve a má-fé do agente público responsável pelo ato revisto, após o devido processo legal, com a garantia da ampla defesa a que impõe o art. 5º, LV, da CF.
Atinge o status dignitatis do agente público, quando ele é vítima de uma impotente acusação, baseada em posição jurídica ainda não estabilizada pelo órgão administrativo competente. Sendo certo, que pela simples revogação de um posicionamento adotado anteriormente, sem a demonstração da má-fé, consistente no dolo, não há que se falar em ação de improbidade administrativa.
É preciso que se dê um basta nas ações de improbidade administrativa irresponsáveis, onde o subscritor da exordial, sem nenhum escrúpulo, acusa mesmo não tendo base de sustentação ou prova cabal de que houve um ato ímprobo.
A dignidade da pessoa humana "é um valor espiritual e moral inerente à pessoa" [36], devendo ser preservado, em todos os sentidos, "o direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, entre outros." [37]
Sendo certo que "o sistema jurídico hodierno vive a denominada fase do pós-positivismo ou Estado principiológico na lição de Norberto Bobbio, de sorte que, na aplicação do direito ao caso concreto é mister ao magistrado inferir a ratio essendi do princípio maior informativo do segmento jurídico sub judice. Conseqüentemente, a aplicação principiológica do direito implica em partir-se do princípio jurídico genérico ao específico e deste para a legislação infraconstitucional, o que revela, in casu, que a solução adotada pelo Tribunal a que adapta-se ao preceito constitucional da defesa da dignidade da pessoa humana." [38]
Essa salutar evolução constitucional (art. 1º, III) trouxe para o Poder Judiciário a responsabilidade de preservar eficaz o princípio da dignidade da pessoa humana, como "fundamento do próprio Estado Democrático de Direito, que constitui a República Federativa do Brasil." [39]
Ciente de sua indelegável missão constitucional, o Poder Judiciário não tem se furtado a conter pseudos discricionarismos administrativos, tendo em vista que não há poder maior que os direitos consagrados na Magna Carta:
"(...)
2.Releva notar que uma Constituição Federal é fruto da vontade política nacional, erigida mediante consulta das expectativas e das possibilidades do que se vai consagrar, por isso cogentes e eficazes suas promessas, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel. Ressoa inconcebível que direitos consagrados em normas menores como Circulares, Portarias, Medidas Provisórias, Leis Ordinárias tenham eficácia imediata e os direitos consagrados constitucionalmente, inspirados nos mais altos valores éticos e morais da nação sejam relegados a segundo plano. Trata-se de direito com normatividade mais do que suficiente, porquanto se define pelo dever, indicando o sujeito passivo, in casu, o Estado.
3. Em função do princípio da inafastabilidade consagrado constitucionalmente, a todo direito corresponde uma ação que o assegura, sendo certo que todos os cidadãos residentes em Cambuquira encartam-se na esfera desse direito, por isso a homogeneidade e transindividualidade do mesmo a ensejar a bem manejada ação civil pública.
4. A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados, quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea.
5. Um país cujo preâmbulo constitucional promete a disseminação das desigualdades e a proteção à dignidade humana, alçadas ao mesmo patamar da defesa da Federação e da República, não pode relegar a saúde pública a um plano diverso daquele que o coloca, como uma das mais belas e justas garantias constitucionais.
6. Afastada a tese descabida da discricionariedade, a única dúvida que se poderia suscitar resvalaria na natureza da norma ora sob enfoque, se programática ou definidora de direitos.
7. As meras diretrizes traçadas pelas políticas públicas não são ainda direitos senão promessas de lege ferenda, encartando-se na esfera insindicável pelo Poder Judiciário, qual a da oportunidade de sua implementação.
8. Diversa é a hipótese segundo a qual a Constituição Federal consagra um direito e a norma infraconstitucional o explicita, impondo-se ao judiciário torná-lo realidade, ainda que para isso, resulte obrigação de fazer, com repercussão na esfera orçamentária.
9. Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública implica em dispêndio e atuar, sem que isso infrinja a harmonia dos poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada, assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a realização prática da promessa constitucional (...)"
O princípio da dignidade da pessoa humana possui assento em todos os ramos do direito, em face da sua projeção constitucional.
Nesse sentido, o Direito Penal tem sido favorecido, por igual, com claras incidências do princípio. Deu-se numa delas há uma década, a propósito de tortura, que o Supremo Tribunal definiu "como prática inaceitável de ofensa à dignidade da pessoa". [40] Recentemente, há pouco mais de um ano, quando lhe coube apreciar longamente a rumorosa questão das discriminações contra judeus, o STF qualificou-as como crime de racismo, vinculando a uma "concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica conveniência no meio social." [41]
Em outro memorável julgado do STF, o Min. Gilmar Mendes, [42] refutou "denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação" por não se coadunar "com os postulados básicos do Estado de Direito" violando também o "princípio da dignidade da pessoa humana."
O mesmo princípio mereceu destaque no excesso de prazo de decisão cautelar, ofensiva ao postulado constitucional da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que é direito fundamental do indivíduo ter à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII), e com todas as garantias reconhecidas pela Magna Carta, inclusive a de não sofrer arbítrio da coerção estatal. Nesse sentido, o eminente Min. Celso de Mello, [43] deixou registrado: "A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (Cf, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo vigente em nosso país e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição / Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, nos 5 e 6)."
Também administrativa é a índole de significativa aplicação do princípio sub examem, utilizado pelo STF para impedir a exploração iníqua, pelo homem, do trabalho do homem, cronicamente propiciada pelo Município do Rio de Janeiro por insólito sistema de licenciamento de táxis e credenciamento de taxistas, que ficou assim ementado: "(...) Sendo fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana, o exame da constitucionalidade de ato normativo faz-se considerada a impossibilidade de o Diploma Maior permitir a exploração do homem pelo homem (...)" [44]
Nesse último julgado, ficou estabelecido que a "Administração Pública submete-se, nos atos praticados, e pouco importando a natureza destes, ao princípio da legalidade."
O grau de importância desse julgado é inegável, pois cai o "véu" do ato administrativo discricionário, que para grande parte da doutrina nacional não poderia ser analisado quanto ao seu conceito de oportunidade e de conveniência.
Com o fim do "império da lei", que vincula-se diretamente às normas e princípios constitucionais, o direito administrativo constitucional permite ao Poder Judiciário que verifique a zona de livre exercício da Administração para que ela fique vinculada aos direitos fundamentais da sociedade, elencados como garantias indissociáveis de todos.
Assim, os atos administrativos, discricionários ou não, [45] deverão preservar o princípio da dignidade da pessoa humana em todos os seus sentidos e formas, para que não ocorram abusos intoleráveis do Poder Público.
E, por fim, por inexistir ato de má-fé do Administrador Público de Diadema, que agindo de boa-fé na tentativa de ajudar o Município vizinho de Avanhandava a solucionar um problema iminente de saúde pública gerado por contaminação na merenda escolar, dispensou a prática de formalidades licitatórias que poderiam colocar em risco a vida, a integridade das pessoas, bens e serviços, ante o retardamento da prestação necessária. Com base no cânone da dignidade da pessoa humana, dentre outros princípios, o STJ [46] rejeitou iniciativa do Ministério Público de ingressar com pedido de improbidade administrativa contra agente público, como se infere da longa ementa: "Ação de Improbidade Administrativa. Ausência de má-fé do Administrador Público. 1. A Lei 8.429/92 da Ação de Improbidade Administrativa, que explicitou o cânone do art. 37, § 4º da Constituição Federal, teve como escopo impor sanções aos agentes públicos incursos em atos de improbidade nos casos em que: a) importem em enriquecimento ilícito (art.9º); b) que causem prejuízo ao erário público (art. 10); c) que atentem contra os princípios da Administração Pública (art. 11), aqui também compreendida a lesão à moralidade administrativa. 2. Destarte, para que ocorra o ato de improbidade disciplinado pela referida norma, é mister o alcance de um dos bens jurídicos acima referidos e tutelados pela norma especial. 3. No caso específico do art. 11, é necessária cautela na exegese das regras nele insertas, porquanto sua amplitude constitui risco para o intérprete induzindo-o a acoimar de ímprobas condutas meramente irregulares, suscetíveis de correção administrativa, posto ausente a má-fé do administrador público e preservada a moralidade administrativa. 4. In casu, evidencia-se que os atos praticados pelos agentes públicos, consubstanciados na alienação de remédios ao Município vizinho em estado de calamidade, sem prévia autorização legal, descaracterizam a improbidade strictu senso, uma vez que ausentes o enriquecimento ilícito dos agentes municipais e a lesividade ao erário. A conduta fática não configura a improbidade. 5. É que comprovou-se nos autos que os recorrentes, agentes políticos da Prefeitura de Diadema, agiram de boa-fé na tentativa de ajudar o município vizinho de Avanhandava a solucionar um problema iminente de saúde pública gerado por contaminação na merenda escolar, que culminou no surto epidêmico de diarréia na população carente e que o estado de calamidade pública dispensa a prática de formalidades licitatórias que venha a colocar em risco a vida, a integridade das pessoas, bens e serviços, ante o retardamento da prestação necessária. 6. É cediço que a má-fé é premissa do ato ilegal e ímprobo. Consectariamente, a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvados pela má-fé do administrador. A improbidade administrativa, mais que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade, o que não restou comprovado nos autos pelas informações disponíveis no acórdão recorrido, calcadas, inclusive, nas conclusões da Comissão de Inquérito. 7. É de sabença que a alienação da res publica reclama, em regra, licitação, à luz do sistema de imposições legais que condicionam e delimitam a atuação daqueles que lidam com o patrimônio e com o interesse públicos. Todavia, o art. 17, I, "b", da lei 8.666/93 dispensa a licitação para a alienação de bens da Administração Pública, quando exsurge o interesse público e desde que haja valoração da oportunidade e conveniência, conceitos estes inerentes ao mérito administrativo, insindicável, portanto, pelo Judiciário."
Portanto, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, o Poder Público não poderá ser irresponsável ao ponto de manejar ações de improbidade administrativa sem um mínimo de plausibilidade jurídica, pois o poder de acionar não é discricionário, ele deve estar em conformidade com o texto legal, sendo defesa a invasão de privacidade alheia.