Sumário: I. Introdução II. Pensão por morte: análise dogmática. 2.1 Conceito e fundamento. 2.2 Requisitos para a concessão do benefício. 2.3 Exceção à regra geral: possibilidade de se conceder pensão por morte mesmo havendo perda da condição de segurado. III. Conclusões IV. Bibliografia
I. Introdução
É muito comum o ajuizamento de ação previdenciária objetivando a implantação de pensão por morte quando o segurado instituidor já perdeu a condição de segurado. Na defesa dessa tese, aqueles que assim agem sustentam que por não ser necessário o cumprimento do período de carência o benefício pode ser concedido mesmo após a perda dessa qualidade.
Entretanto, conforme se demonstrará no desenvolver deste trabalho, para que o dependente do falecido faça jus ao benefício, é necessário que o de cujus fosse, à época do óbito, segurado da Previdência Social; tal requisito se mostra explícito na legislação atinente ao assunto. Também será analisada a exceção à regra geral, destacando casos em que não se exige o cumprimento simultâneo dos requisitos, bastando provar a dependência econômica.
II. Pensão por morte: análise dogmática
2.1 Conceito e fundamento
A Constituição da República, ao trazer disposições sobre o sistema previdenciário, prediz que a Previdência Social terá caráter contributivo e, dentre os variados tipos de fatores aos quais oferece proteção, encontra-se o evento morte [1].
Wladimir Novaes Martinez, ao dissertar sobre a natureza jurídica do benefício, explica que a pensão por morte existe para dar azo à proteção social tão garantida constitucionalmente, esclarecendo que
"A pensão por morte é prestação dos dependentes necessitados de meios de subsistência, substituidora dos seus salários, de pagamento continuado, reeditável e acumulável com aposentadoria.
Sua razão de ser é ficar sem condições de existência quem dependia do segurado. Não deriva de contribuições aportadas, mas dessa situação de fato, admitida presuntivamente pela lei [2]".
Enfim, a razão de ser do benefício é possibilitar que o dependente supérstite promova sua própria existência, visto que contava com um mantenedor e, após o falecimento deste, viu-se em situação de excepcionalidade.
2.2 Requisitos para a concessão do benefício
Pelo caput do art. 74 da Lei 8.213/91 se extraem os requisitos para que o dependente tenha direito ao recebimento da pensão por morte, a saber: a existência de beneficiários na condição de dependentes do falecido e a condição de segurado do de cujus [3].
Uma vez conhecidos os requisitos para a percepção do benefício, passa-se à análise de cada um deles e, após, algumas ponderações de ordem prática que constantemente surgem no cotidiano forense.
2.2.1 Dependência econômica
Para fazer jus ao benefício não é necessário ser filiado à Previdência ou ser contribuinte: basta ser o dependente do falecido [4]. Martinez leciona que
"A pensão por morte tem como titulares, em primeiro lugar, os dependentes presumidos do segurado (a) – cônjuges, companheiros e filhos – e, secundária e concorrentemente, sem a admissão prévia da dependência econômica, os pais e irmãos [5]".
A dependência, para fins previdenciários, pode ser presumida ou não. Nos casos em que for beneficiário "o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido" (art. 16, inciso I, da Lei 8.213/91) presume-se a dependência, por força de expressa disposição constante no § 4° do mesmo artigo [6].
Nos demais casos, deve-se fazer prova da dependência por meio de no mínimo três dos documentos indicados no art. 22, § 3°, do Decreto 3.048/99. Havendo falta ou insuficiência de prova documental, pode-se utilizar o expediente de justificação administrativa (ou até mesmo judicial [7]), previsto no art. 142 e seguintes do referido decreto.
2.2.2 Qualidade de segurado
Sobre a necessidade de o falecido ser ou não segurado da Previdência Social é que pairam inúmeras discussões no Poder Judiciário. Contudo, a legislação previdenciária, em todo o tempo, afirma que a pensão por morte apenas "é devida ao conjunto de dependentes do segurado que falecer", conforme o caput do art. 74 da Lei de Benefícios. Ao se falar em segurado fica ressaltado que é necessário manter esse vínculo com o sistema previdenciário. Ora, ser segurado é estar efetivamente vinculado à Previdência, e uma vez perdido esse elo não há como se pretender que seja devido o benefício.
Afirmar que o instituidor não possui qualidade de segurado implica em dizer que, necessariamente, não está vinculado à Previdência, pois a ligação que os une está quebrada. O TRF da 3ª Região já teve a oportunidade de se manifestar sobre o assunto e, na ocasião, assim julgou:
"Previdenciário. Pensão por morte. Lei nº 8.213/91. Carência. Período de graça. Ausência da condição de segurado do falecido. Sentença procedente. Apelação e remessa oficial providas.
- Aplicável in casu a Lei nº 8.213/91, tendo em vista que o óbito do segurado ocorreu em 01/10/1995.
- O benefício de pensão por morte é devido desde que comprovada a condição de segurado do de cujus e a qualidade de dependente de quem ajuíza a demanda.
- Carência, para fins previdenciários, é o período de contribuição exigido para que o contribuinte adquira o título de segurado e o direito de utilizar a Previdência. Nota-se que para o benefício em questão, o artigo 26 em seu inciso I da Lei 8.213/91, dispõe que independe de carência, entretanto é necessário que ostente a condição de segurado, ou seja esteja o de cujus à época do óbito vinculado ao Instituto ou sob a guarda do período de graça previsto no artigo 15 da referida Lei previdenciária.
- Entende-se por período de graça, o período mínimo que o contribuinte, já detentor de carência, portanto já com o título de segurado, fica sem contribuir e mesmo assim conserva o direito de utilizar a Previdência Social.
- Ausente o requisito legal da condição de segurado do falecido, impõe-se negativa à concessão do benefício pleiteado (pensão por morte).
(...)
- Precedentes do STJ.
- Apelação e remessa oficial providas [8]".
Carência é o número mínimo de contribuições para adquirir a condição de segurado (Lei 8.213/91, arts. 24-27). Martinez é bem sucinto ao definir o referido instituto: afirma apenas que "carência é o número de contribuições vertidas [9]". A condição de segurado, por sua vez, refere-se diretamente ao vínculo mantido com a Previdência. Portanto, não há que se pretender afastar uma das exigências legais apenas pelo fato de não se exigir um certo número de contribuições mínimas. No campo doutrinário encontra-se a seguinte definição:
"Qualidade de segurado é a denominação legal indicativa da condição jurídica de filiado, inscrito ou genericamente atendido pela previdência social. Quer dizer o estado do assegurado, cujos riscos estão previdenciariamente cobertos [10]".
Assim, fica claro que carência e qualidade de segurado são institutos diversos: embora se completem, não possuem o mesmo significado. Em assim sendo, a inexigibilidade de se cumprir o período carencial (Lei 8.213/91, art. 26, inciso I) não afasta a incidência do outro quesito. Analisando o tema, o Juiz Federal Ricardo César Mandarino Barretto assim dissertou, com muita propriedade:
"A pensão por morte constitui benefício orientado a amparar os dependentes do segurado falecido, fazendo-lhe as vezes quanto ao oferecimento de meios mínimos de subsistência em favor de quem restou contemplado pelo art. 16, da Lei 8.213/91. O fato que lhe serve de ensejo – o óbito – evento imprevisível, justifica a dispensa de um número mínimo de contribuições prévias (carência). Com isso, deixa-se bem traçada a álea subjacente em tal relação jurídica e se estabelece perfeita consonância com a natureza de seguro social do Regime Geral de Previdência, nos moldes preconizados pela Constituição Federal de 1988.
Por outro lado, referidas circunstâncias não elidem a necessidade de se verificar a condição de segurado à época em que se concretizou o fato gerador da pensão. A exigência é lógica: excepcionado, em parte, o propósito de equivalência entre custeio e prestação por ter sido eliminada a carência, a contrapartida incontornável é circunscrever o benefício aos efetivos integrantes do grupo segurado, sob pena de desvirtuar-se Previdência em Assistência, confundido-se dois sistemas absolutamente distintos, apesar de insertos ambos no âmbito da Seguridade Social [11]".
A própria Constituição Federal trata previdência e assistência sociais em seções diversas, estabelecendo o caráter contributivo da primeira (art. 201, caput) e a natureza assistencial da última, assegurando a sua prestação aos necessitados, independentemente de contribuição.
De todo o exposto, conclui-se que caso o segurado não detenha essa qualidade ao tempo do seu óbito, os dependentes não fazem jus à pensão. Entender o contrário acarretaria violação aos princípios constitucionais do caráter contributivo e do equilíbrio financeiro e atuarial da Previdência (Constituição Federal, art. 201, caput), pois estaria se concedendo benefício previdenciário, que é de natureza contributiva, sem a correspondente fonte de custeio prevista em lei [12].
2.3 Exceção à regra geral: possibilidade de se conceder pensão por morte mesmo havendo perda da condição de segurado
Como demonstrado, para o dependente fazer jus à pensão por morte é realmente necessário que o falecido fosse segurado à época da morte, sem o qual não gerará direito ao benefício. Exceção a essa regra apenas se observa no art. 102, § 2°, da Lei 8.213/91, acrescentado pela MP 1.523/97, que fora reeditada até sua conversão na Lei 9.528/97. Verifica-se que em 1997 a matéria em exame foi disciplinada pelo mencionado § 2º, do art. 102, afastando-se, expressamente, a concessão de pensão por morte aos dependentes de segurado que falecer após a perda desta qualidade, salvo se à época do óbito se encontrassem preenchidos os requisitos para obtenção de aposentadoria, qualquer que seja.
Ressalte-se que o art. 102, ao estabelecer que a perda da qualidade de segurado para a concessão de aposentadoria não importa em extinção do direito ao benefício, condiciona sua aplicação ao preenchimento de todos os requisitos exigidos em lei para a sua concessão anteriormente a essa perda. O texto legal assim dispõe:
A perda da qualidade de segurado importa em caducidade dos direitos inerentes a essa qualidade."Art. 102.
§ 1º A perda da qualidade de segurado não prejudica o direito à aposentadoria para cuja concessão tenham sido preenchidos todos os requisitos, segundo a legislação em vigor à época em que estes requisitos foram atendidos.
§ 2º Não será concedida pensão por morte aos dependentes do segurado que falecer após a perda desta qualidade, nos termos do art. 15 desta Lei, salvo se preenchidos os requisitos para obtenção da aposentadoria na forma do parágrafo anterior".
Contudo, não se provando que o falecido poderia ter sido aposentado (antes de ter perdido a qualidade de segurado), seja por tempo de contribuição, por idade, etc, não há que se falar em direito ao benefício. Neste sentido é que a pacífica jurisprudência do STJ se posiciona:
"Pensão por morte. De cujus. Segurado. Perda da qualidade.
É devida a pensão aos dependentes do segurado de cujus, independente de ele ter perdido a qualidade de segurado, é necessário, porém, que os requisitos legais para a obtenção da aposentadoria tenham sido preenchidos, conforme exegese do art. 102 da Lei 8.213/1991 tanto como após a alteração dada pela Lei 9.528/1997. Não obstante, na hipótese, o de cujus não obtivera a aposentadoria por faltarem os requisitos legais, porquanto, à data do óbito, não atingira a idade legal nem trabalhara 15, 20 ou 25 anos em atividades perigosas, penosas ou insalubres, que sequer lhe conferisse o direito de aposentar por idade, tempo de serviço ou aposentadoria especial. Outrossim, descabe também a aposentadoria por invalidez por não ter sido alegada nos autos. Sendo assim, o dependente do de cujus não tem direito à pensão por morte. Embargos rejeitados. Precedentes citados: EDcl no REsp 314.402-PR, DJ 2/9/2002, e AgRg no REsp 543.853-SP, DJ 21/6/2004. EREsp 524.006-MG, Rel. Min. Laurita Vaz, julgados em 9/3/2005 [13]".
Precedente do STJ tem permitido conceder pensão por morte mesmo quando ausente a qualidade de segurado: trata-se da decisão tomada no Recurso Especial 263.005/RS [14], acórdão paradigma para muitos que pleiteiam o benefício quando inexiste condição de segurado. Entretanto, uma análise mais acurada de tal julgamento levará à certeza de que, naquele caso, o segurado instituidor já tinha preenchido os requisitos para a concessão de aposentadoria. Confira-se trecho do voto-condutor, proferido pelo Ministro Jorge Scartezzini:
"Tendo o ex-segurado vertido acima de 60 contribuições previdenciárias, já fazia jus à concessão do benefício de aposentadoria.
Se não implementou o requisito da idade, foi pelo fato de ter falecido com apenas 28 anos. Tal ocorrência, porém, não pode ser fato impeditivo a sua viúva em receber o benefício de pensão por morte, pois conforme a legislação previdenciária, a concessão do mencionado benefício independe de carência [15]".
No caso julgado pelo STJ no REsp 263.005/RS, o instituidor tinha recolhido mais de 60 contribuições previdenciárias, carência suficiente – naquele caso em específico – para obtenção do benefício, motivo pelo qual incidiu a exceção prevista em lei que autoriza a concessão do benefício sem haver condição de segurado do falecido.
2.2.1 Aspectos particulares: segurado instituidor que poderia ter sido aposentado por invalidez
Muitas vezes o segurado instituidor padece com alguma doença ou lesão que o impede de trabalhar e, via de conseqüência, de contribuir. Nesses casos, não há que se falar em perda da qualidade de segurado, pois o falecido apenas parou de recolher contribuições única e exclusivamente devido ao fato de sofrer com enfermidades incapacitantes, caso em que poderia –se vivo fosse – perceber algum benefício por incapacidade.
Neste sentido a jurisprudência mostra-se clara e tranqüila: "não perde a qualidade de segurado aquele que estava impossibilitado de trabalhar e de contribuir por motivo de doença incapacitante [16]". Por óbvio, a enfermidade deverá ter início quando o de cujus ainda era segurado da Previdência, sob pena de não incidir a regra do art. 102, § 2°, da Lei 8.213/91.
2.2.2 Peculiaridades: segurado instituidor que cumpriu a carência para ser aposentado por idade
A jurisprudência tem entendido que se o falecimento do segurado instituidor ocorreu antes de ser atingida a idade mínima para a aposentadoria por idade, os dependentes não fazem jus ao benefício de pensão por morte, em caso de perda da condição de segurado, independentemente do número de contribuições recolhidas.
Todavia, conforme brilhante lição do Desembargador Federal Sérgio do Nascimento, do TRF da 3ª Região, necessário se faz uma interpretação sistemática e teleológica da Lei 8.213/91 considerando-se a promulgação da Emenda Constitucional 20/98, que deu caráter contributivo à Previdência Social. Assim, não mais se justifica a interpretação de que é irrelevante a carência cumprida por quem faleceu após perder a qualidade de segurado sem alcançar a idade mínima para a aposentadoria por idade. Nessa seara, conclui o ilustre magistrado:
"Diante do exposto, com a edição da EC nº 20/98, a ressalva efetuada no parágrafo 2º, do art. 102, da Lei nº 8.213/91, passou a abranger também aquele que à época do óbito contava com a carência mínima necessária para a obtenção do benefício de aposentadoria por idade, mas perdeu a qualidade de segurado e veio a falecer antes de completar a idade para obtenção deste benefício.
Entendimento em sentido contrário subverte a lógica de um regime de previdência de caráter contributivo, pois, por exemplo, não teriam direito ao benefício de pensão por morte os dependentes do segurado que perdeu esta qualidade, mas recolheu anteriormente 29 anos e dez meses de contribuição e veio falecer com 64 anos e onze meses de idade; enquanto que teriam direito à pensão os dependentes de segurado que também perdeu esta qualidade, mas conta com 15 anos de contribuição e veio a falecer na data em que completou 65 anos.
(...)
Por derradeiro, revela-se importante destacar que o princípio da solidariedade na previdência social não deve ser levado em consideração somente no plano de custeio, mas também no de benefícios, além do que não seria racional e coerente que em um sistema previdenciário social a lei tenha levado em consideração apenas os casos de incapacidade presumida (evento idade), desprezando as situações de incapacidade comprovada (evento invalidez e doença), bem como à proteção à família (evento morte) [17]".
Destarte, para fins de pensão por morte, a exigência do requisito idade não é necessária para se comprovar o cumprimento dos requisitos à implementação de aposentadoria por idade, bastando-se, para tanto, o cumprimento do período de carência.
III. Conclusões
Pelas considerações expostas, é possível concluir:
1. Mesmo não se exigindo o cumprimento do período de carência, é necessário que o falecido seja segurado da Previdência Social à época da morte, sendo isso requisito essencial para o dependente fazer jus à pensão, sob pena de se desvirtuar um benefício previdenciário em assistencial, conforme a citada lição do Magistrado Ricardo César Mandarino Barretto.
2. Tendo o segurado instituidor perdido a qualidade de segurado, o benefício apenas é devido quando se provar que o de cujus já havia preenchido requisitos para a concessão de qualquer aposentadoria.
3. Não perde a qualidade de segurado aquele que estava impossibilitado de trabalhar e de contribuir por motivo de doença incapacitante.
4. Com propriedade, o Desembargador Federal Sérgio do Nascimento assevera que devido ao caráter contributivo da Previdência, o fator idade não é considerado como requisito essencial para implementação de aposentadoria por idade, quando analisado para fins de pensão por morte.
5. "A interpretação finalística a ser dada às normas de cunho social não tem o condão de subverter o sistema constitucional previdenciário, concedendo-se benefício a dependente de quem deixou de ser contribuinte do Regime Geral de Previdência [18]."
Em síntese, o ajuizamento de ações objetivando a condenação do INSS em conceder pensão por morte quando falecido não mais detinha a qualidade de segurado equivale a deduzir pretensão contra expresso dispositivo legal. Atitudes desse importe caracterizariam litigância de má-fé (CPC, art. 17, inciso I), inconformismo contra eventual sentimento de injustiça constante no texto da lei ou apenas refletem o direito fundamental de agir? Aos leitores, para reflexão.