Legitimidade do ativismo judicial na saúde pública

Exibindo página 1 de 3
08/10/2018 às 08:09
Leia nesta página:

Estuda-se a atuação dos órgãos jurisdicionais nas questões relacionadas à saúde pública, resolvidas pelo Judiciário, que sofrem fortes críticas quanto à legitimidade de suas decisões.

INTRODUÇÃO

Esse artigo tem por finalidade mostrar um fenômeno, que apesar de existir já há alguns anos, ainda se mostra atual e que suscita grande polêmica e muitos debates, dividindo opiniões: a Legitimidade do Ativismo Judicial.

Embora na jurisdição infraconstitucional se veja de forma clara a atuação de magistrados ativistas, quando da tutela do interesse de crianças, consumidores e do meio ambiente, o ativismo se torna mais contundente e polêmico no controle concentrado de constitucionalidade. As questões relacionadas à saúde, resolvidas pelo judiciário, são fortemente questionadas quanto à legitimidade de suas decisões, porque essas teriam cunho eminentemente político. Nesse artigo será tratado com maior ênfase o ativismo no controle abstrato de constitucionalidade, bem como no controle difuso, no que tange às questões de saúde, pois é aqui que ocorrem as maiores polêmicas entre o Judiciário e o Legislativo.

Durante o desenvolvimento do artigo serão conceituados alguns temas correlatos, e que são fundamentais, para que se possa atingir com mais profundidade o tema central do trabalho. Serão abordados os seguintes itens: Democracia com uma breve conceituação genérica, Tripartição dos Poderes em breves linhas de forma conceitual, um enfoque sobre a Legitimidade e o Estado Democrático de Direito, Conceitos de Ativismo Judicial, Judicialização da Política e Autocontenção Judicial e suas consequências no cenário político brasileiro em face das crescentes demandas no judiciário em busca da tutela pelos medicamentos.


1-DEMOCRACIA

São vários os conceitos de Democracia, já consagrados por autores de renome. Será conceituado de forma básica, utilizando-se primeiramente o significado original do termo: demos=povo; kraiten= governo, que foi instituído pela Teoria política da Grécia Antiga, com o significado de “governo do povo”.

BOBBIO(1983, P.79) conceitua a democracia da seguinte forma:

“Acredita-se que o conceito de democracia seja um conceito elástico, que se pode puxar de um lado e do outro à vontade. Desde que mundo é mundo, democracia significa governo de todos ou de muitos ou da maioria, contra o governo de um só ou de poucos ou de uma minoria.”

A concepção deliberativa defendida por Aristóteles ressalta que a democracia é o governo de muitos, assim como em Bobbio. A pluralidade dos pontos de vista sobre bem comum que comunicados no debate público dão à democracia um caráter deliberativo, racional. O homem é concebido como um animal dotado de logos (palavra/razão). Cabe à democracia canalizar os diversos pontos de vista e argumentos para deliberar coletivamente.

Segundo HABERMAS(2003. p.153-154), que cita Rousseau e Kant em sua obra, teria como entendimento do que é Democracia:

“A compreensão moderna da democracia distingue-se da clássica por se relacionar com um tipo de direito dotado de três características principais, a saber: o direito moderno é positivo, cogente e estruturado individualisticamente. Ele resulta de normas produzidas por um legislador e sancionadas pelo Estado, tendo como alvo a garantia de liberdades subjetivas. [...] Todavia, nem Rousseau, nem Kant conseguiram aproveitar o conceito de autonomia para a fundamentação inequívoca da democracia, em termos de um Estado de direito. Rousseau atribuiu racionalidade à vontade do povo ligando o processo democrático à forma de leis gerais e abstratas. Ao passo que Kant procurou atingir esse mesmo objetivo através da subordinação do direito à moral. Entretanto, ainda tentarei demonstrar que esse nexo interno entre razão e vontade só pode se desenvolver, na dimensão do tempo, como um processo histórico que se corrige a si próprio.”

De forma bem simples e genérica, pode-se conceituar então, da seguinte forma: “Democracia é a forma de governo em que a soberania é exercida pelo povo. É um regime de governo em que todas as importantes decisões políticas estão com o povo, que elegem seus representantes por meio do voto.” Na prática, a democracia é uma forma de governo e de organização de um Estado. Através de mecanismos de participação direta ou indireta, o povo elege os seus representantes.


2-TRIPARTIÇÃO DOS PODERES

De acordo com MONTESQUIEU (1998, p.168), consoante a Teoria do Estado liberal, no fim do século XVIII, como oposição ao antigo modelo absolutista de Estado, o sistema liberal se baseava em dois alicerces fundamentais: a limitação do Poder do Estado sobre os indivíduos e instrumentos que traduzissem os anseios dos indivíduos, aos seus representantes eleitos.

Dessa forma, o Poder Legislativo, ocupa uma posição privilegiada em relação aos Poderes Executivo e Judicial, tendo em vista que aquele criaria a normatização a ser seguida por esses últimos. Assim a função jurisdicional é apenas garantidora da soberania popular, representada pelos legisladores eleitos livremente pelo povo. É o modelo de estado de Direito, em que governados e governantes se submetem aos ditames da lei. Dessa forma a criação de leis pelos legisladores eleitos pelo povo, que confeccionam leis para serem cumpridas por esse mesmo povo, de forma a satisfazerem todos os seus anseios e sem deixar “brechas e lacunas” na sua formulação, deveria, pois, ser considerada como perfeita e por todos, seguida.

Destaca-se o pensamento de HABERMAS(2010, p.113), dentro da ideia central do estado liberal:

“O direito moderno tira dos indivíduos o fardo das normas morais e as transfere para as leis que garantem a compatibilidade das liberdades de ação. Estas obtêm sua legitimidade através de um processo legislativo que, por sua vez, se apoia no princípio da soberania do povo. Com o auxílio dos direito que garantem aos cidadãos o exercício de sua autonomia política, deve ser possível explicar o paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da legalidade.”

Assim percebe-se que essa Teoria discernia claramente a existência de distintas funções dos poderes estatais. Não é correto afirmar, contudo, que a distinção elaborada implicava o exercício isolado e exclusivo de cada um por diferentes órgãos do Estado.

Há que se deixar claro que quando se fala em divisão de poderes, para alguns existe a errônea impressão de que existe mais de um poder, no caso três; o que se constitui um engano, pois, o Poder é uno. O que há é uma mera divisão funcional, com o claro intuito de repartir as funções estatais, para evitar os abusos ditatoriais da concentração do poder nas mãos de um só indivíduo, garantindo assim, um Estado Democrático. Portanto, uma das características fundamentais à existência de um Estado realmente democrático é a divisão, isto é, a separação dos Poderes. Tal a importância desse instituto para o nosso ordenamento jurídico, que além de expresso no artigo 2º da Constituição, também se encontra como garantia pétrea explícita no artigo 60, §4º inc.III, tornando-se um dos pilares do ordenamento jurídico brasileiro.

Em uma concepção mais moderna da Tripartição de Poderes, vê-se cada vez mais sua mitigação pela interpretação dada pela inteligência do artigo 2º da Carta Maior.

Pode-se observar essa mitigação em um dos vários julgados do STF, como o trecho abaixo colacionado da Ilustríssima Ministra Carmen Lúcia, no Recurso Extraordinário com Agravo 858.889:

DECISÃO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REALIZAÇÃO DE OBRAS PÚBLICAS DE REPARO E CONTENÇÃO DE ENCOSTAS EM RODOVIA ESTADUAL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. DIREITO À VIDA, SAÚDE E SEGURANÇA. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO: SÚMULA N. 279 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AUSÊNCIA DE OFENSA CONSTITUCIONAL DIRETA. AGRAVO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO “(...) o tema envolve as controvérsias ínsitas aos mecanismos de “controle judicial de política pública”, cujo papel do Poder Judiciário deve respeitar os limites do Poder Constituinte ao estabelecer a separação de Poderes (CF, art. 2º), sem abnegar do sistema de proteção dos direitos individuais e coletivos em face de omissões do Estado, dentre as quais prepondera o interesse à vida daqueles que estariam sendo expostos a perigo por uma atividade administrativa deficitária, omissa ou ineficiente.

Assim, o princípio da separação dos Poderes passou a sofrer mitigação, pelo que não mais pode o Executivo escudar-se no princípio da autonomia administrativa, para defender a valoração da oportunidade e conveniência do ato administrativo como decisão exclusivamente sua, porquanto na atualidade até mesmo o mérito administrativo está sujeito ao controle judicial.(Grifo nosso)

Ademais, a teoria da reserva do possível, que determina a liberdade de escolha do administrador quanto a suas políticas públicas prioritárias, somente pode ser invocada quando não se encontra em discussão o mínimo existencial.

Por esta razão, não há falar em ofensa ao princípio da separação dos poderes previsto no artigo 2º da Constituição da República, bem assim na teoria da reserva do possível. (STF - ARE: 858889 RJ, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 15/02/2015,  Data de Publicação: DJe-034 DIVULG 20/02/2015 PUBLIC 23/02/2015)


3-LEGITIMIDADE E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A sociedade, nas suas mais diversas formas de organização, demonstra a necessidade do estabelecimento de uma ordem política. Essa ordem política, oriunda do Estado, é a forma de garantir o desenvolvimento da sociedade e sua regulação harmônica. O surgimento do Direito é necessário na sociedade, para que regule e legitime o poder político. Esse poder político seria responsável por controlar a produção e aplicação das normas jurídicas, e pela intervenção de um poder coercitivo, que é imprescindível para a manutenção da Ordem Social.

Para KELSEN(1998, p.146), a legitimidade fica equiparada à legalidade, todas as normas que respeitam a relação de derivação e fundamentação, ou seja, que estão em consonância com as normas superiores, até a norma fundamental, seriam legítimas. Por outro lado, ele reconhece que esse pensamento tem um limite, que é o da estabilidade do ordenamento. Isto porque, em casos de movimentos revolucionários, o fundamento de validade do ordenamento jurídico é substituído por um novo. E continua o autor dizendo que:

“Este princípio, no entanto, só é aplicável a uma ordem jurídica estadual com uma limitação muito importante: no caso de revolução, não encontra aplicação alguma. Uma revolução no sentido amplo da palavra, compreendendo também o golpe de Estado, é toda modificação ilegítima da Constituição, isto é, toda modificação da Constituição, ou a sua substituição por uma outra, não operadas segundo as determinações da mesma Constituição. [...] Decisivo é o fato de a Constituição vigente ser modificada ou completamente substituída por uma nova Constituição através de processos não previstos pela Constituição até ali vigente.”

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Segundo BONAVIDES(2010, p.139), em sua obra, a legitimidade seria a legalidade acrescida de sua valoração. Seria um critério em que se buscaria menos para que se pudesse compreender e aplicar do que para aceitar ou negar a adequação do poder às situações da vida social em que ele é chamado a disciplinar. No conceito de legitimidade entrariam as crenças de uma determinada época, que mostrariam à manifestação do consentimento e da obediência. A legalidade de um regime democrático seria a sua adequação nos moldes de uma constituição observada e praticada; sua legitimidade será sempre o poder inserido naquela constituição, exercendo-se de conformidade com as crenças, os valores e os princípios da ideologia dominante, no caso a ideologia democrática.

A legalidade do regime democrático é a sua adequação ao expresso na constituição, a observação e conservação dos seus princípios, exercendo-se de conformidade com as crenças, os valores e da ideologia dominante, no caso a ideologia democrática. O Brasil configura-se como um Estado Democrático de Direito e a sua legitimidade, fundamenta-se essencialmente no respeito e garantia dos Direitos Fundamentais e na Soberania Popular.

Em um Estado Democrático de Direito, a Legalidade esta próxima da Legitimidade, isto é, não pode ser respeitada tão-somente a exigência de que a atuação estatal seja baseada na lei em sentido formal. O instrumento de atuação do Estado deve não só ser formal, mas também estar de acordo com os valores fundamentais do Estado brasileiro, tais como a dignidade da pessoa humana, a busca de uma sociedade justa, livre e igualitária, entre outros.

Existem questionamentos se haveria falta de legitimidade no ativismo, sendo que é o povo dono da titularidade da legitimidade e é ele que busca a tutela judicial.

Segundo MICHELMAN(1999, p.59) apud HABERMAS(2003, p.158), a legitimidade das decisões dos magistrados, se apoiaria na intuição segundo a qual o assédio discursivo do tribunal através de uma sociedade mobilizada produziria uma interação que seria capaz de gerar consequências boas e que seriam favoráveis para ambos os lados, porque, a ampliação das bases de decisões faria com que os tribunais, que continuariam a decidir de forma independente e aumentaria também o campo de visão dos especialistas. E, aos olhos dos indivíduos que tentam influir no tribunal através de uma opinião pública provocativa, cresce a legitimidade do procedimento que conduz à decisão.

De outra forma, segundo o constitucionalista STRECK(2004, p.80), que ressalta em seu artigo, que não haveria tal legitimidade:

“Parece inexorável – e isto não deveria causar nenhuma surpresa – que ocorra um certo tensionamento entre os Poderes do Estado: de um lado, textos constitucionais forjados na tradição do segundo pós guerra estipulando e apontando a necessidade da realização dos direitos fundamentais-sociais; de outro, a difícil convivência entre os Poderes do Estado, eleitos (Executivo e Legislativo) por maiorias nem sempre concordantes com os ditames constitucionais. Daí o questionamento – constante – da legitimidade de o Poder Judiciário (justiça constitucional) deter o poder de desconstituir atos normativos do Poder Executivo ou declarar a inconstitucionalidade de leis votadas pelo parlamento eleito democraticamente pelo povo. Esse tensionamento assume contornos mais graves quando o sistema se depara com decisões do Poder Judiciário (brasileiro) tidas como “invasoras de sub-sistemas” ou epitetadas como típicas decisões que “judicializam a política”, como é o caso de sentenças emanadas pelos juízes e tribunais brasileiros determinando a inclusão/criação de vagas em escolas públicas, fornecimento de remédios com  fundamento no art. 196 da Constituição, a extensão, com base no princípio da isonomia, de benefícios a categorias de trabalhadores não contempladas em ato normativo, o problema das ocupações de terras improdutivas por movimentos sociais que clamam pelo cumprimento do dispositivo constitucional que estabelece a função social da propriedade, só para citar alguns exemplos.”

Já para BARROSO(2012 p.25), que em seu artigo menciona que o Ativismo Judicial é uma escolha do juiz, é uma interpretação constitucional expansiva que visa à retratação do Poder Legislativo.

“A ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público”.

Dessa forma, não cumprindo os outros Poderes com o seu papel de garantidor, seja por ausência de recursos, seja por falta de políticas públicas, é evidente a possibilidade de se recorrer ao Judiciário a fim de efetivar um direito fundamental, outorgando tutela quando necessário.

Assim não há de se questionar se haveria ou não legitimidade, por se tratar na realidade, de efetividade dos direitos já garantidos na Constituição. O Judiciário como guardião-mor da Carta Magna tem o dever precípuo de buscar sempre a efetivação de suas Garantias e Direitos.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
ERNESTO PORTELLA

Advogado atuante no Direito Digital e Professor. Profissional Liberal. DPO as a service e Consultor LGPD. Membro da ANADD - Associação Nacional de Advogados do Direito Digital, Membro da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas (CDAP) da OAB/RJ. Atuou como Consultor autônomo e Profissional da área de TI durante 20 (Vinte) anos e na área de redes de computadores e segurança da informação, por 10(Dez)anos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos