Legitimidade do ativismo judicial na saúde pública

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08/10/2018 às 08:09
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4-ATIVISMO JUDICIAL

Determinar-se-á aqui a distinção entre termos que comumente se confundem: o ativismo judicial e a judicialização da política. Como aduz BARROSO (2012, p.25) em seu trabalho sobre o tema:

“A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.”

Pode-se observar que a judicialização é um fato que decorre do modelo constitucional adotado no Brasil, ou seja, não é um exercício voluntário da vontade política por parte dos juízes, há um respaldo constitucional; já o ativismo diverge por haver uma maior atitude volitiva por parte do julgador.

VIANNA(2008, p.3), em seu artigo aponta no sentido de que a judicialização não foi causada por atitudes ou protagonismos dos juízes, mas por iniciativa da sociedade que bate às portas da justiça. Segundo o autor, dessa forma, a origem da judicialização deveria ser buscada, por um lado, na iniciativa do legislador, e, de outro, nas demandas dos indivíduos no sentido de encontrar a tutela dos seus direitos contra o Estado e as Corporações. A origem de um processo social, porém, não contém em si todas as possibilidades do desenvolvimento da sua trajetória, sujeito, no seu curso, a muitas outras influências. Essa iniciativa de procura da Sociedade ao Judiciário, por si só, já poderia ser entendido como uma demonstração de legitimidade das decisões judiciais.

Aqui reside uma enorme diferença entre judicialização e ativismo: naquela, os juízes decidem, porque é uma atribuição constitucional, como no controle abstrato de constitucionalidade, já no ativismo há uma atitude voluntária, um modo de interpretar a constituição, aumentando em conteúdo, o seu alcance, o que será visto mais adiante em seus aspectos positivos e negativos.

Entretanto, entende-se que, para que haja ativismo judicial é necessária à omissão ou ineficácia do Poder Legislativo no desempenho de suas funções precípuas. É na escolha do Magistrado de atuar de forma proativa ao interpretar a Constituição, face à omissão do Poder Legislativo, suprindo eventuais lacunas ao julgar o caso concreto, que suscitam as atuais críticas, a esse ativismo.

De forma oposta ao ativismo judicial, ter-se-ia a autocontenção judicial em que há pouca ou nenhuma intervenção do judiciário na esfera dos outros poderes. Dessa forma, o judiciário evita aplicar diretamente a Constituição a situações em que não estejam expressas explicitamente em seu texto, utilizando-se de critérios mais rígidos para o controle de constitucionalidade, e consequentemente a não interferência nas políticas públicas.

O fato é que a atual constituição fortaleceu sobremaneira o Poder Judiciário, ao prover algumas “ferramentas” constitucionais, dando aos julgadores, importante papel na consolidação da democracia e na concretização dos Direitos Fundamentais. O Judiciário dessa forma tem uma participação mais efetiva na sociedade, inclusive nas camadas mais baixas, através da instituição dos juizados especiais, por exemplo. BARROSO(2012, p.24), que denomina esse feito de “Judicialização da vida”, aduz que:

“Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro.”

A atuação dos julgadores em certas questões decorre da própria exigência do texto constitucional, não se trata meramente de opções ideológicas. A atual Constituição “municia” o Judiciário com diversos, dispositivos que dão legalidade e porque não dizer também, legitimidade às suas decisões, como: os Controles de Constitucionalidade (ADIN, ADC, ADO e ADPF), Súmulas Vinculantes e Mandado de Injunção. Dessas ferramentas, talvez as que ilustrem de forma mais clara o Ativismo, são a ADO e o Mandado de Injunção, quanto às omissões legislativas.

Serão vistos agora alguns julgados que foram bem emblemáticos na utilização dessas ferramentas e que a atuação do Judiciário foi fundamental na tutela dos bens pleiteados.

Inicia-se, pois, pela ADPF 54, em que o Relator era o Ministro Marco Aurélio, em que através de uma ação se pede ao STF, que interprete conforme a Constituição os artigos do Código Penal que tratam do aborto para declarar que eles não incidem na hipótese de interrupção da gestação de fetos anencefálicos. Foram envolvidos vários segmentos da Sociedade, inclusive mulheres que passaram pela experiência de ter uma gestação nessas condições. A ADPF depois de muitas idas e vindas, e uma duração muito longa no julgamento, por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente o pedido contido na ADPF 54, ajuizada na Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), para declarar a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do Código Penal.

Vê-se no voto do Excelentíssimo Ministro uma relativização na interpretação da rigidez imposta pelo Constituinte quanto ao Direito à vida, e pela inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do Código Penal brasileiro:

“A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher. No caso, ainda que se conceba o direito à vida do feto anencéfalo – o que, na minha óptica, é inadmissível, consoante enfatizado –, tal direito cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde, previstos, respectivamente, nos artigos 1º, inciso III, 5º, cabeça e incisos II, III e X, e 6º, cabeça, da Carta da República.

Os tempos atuais, realço, requerem empatia, aceitação, humanidade e solidariedade para com essas mulheres. Pelo que ouvimos ou lemos nos depoimentos prestados na audiência pública, somente aquela que vive tamanha situação de angústia é capaz de mensurar o sofrimento a que se submete. Atuar com sapiência e justiça, calcados na Constituição da República e desprovidos de qualquer dogma ou paradigma moral e religioso, obriga-nos a garantir, sim, o direito da mulher de manifestar-se livremente, sem o temor de tornar-se ré em eventual ação por crime de aborto.

Ante o exposto, julgo procedente o pedido formulado na inicial, para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do Código Penal brasileiro.”

Outro caso que suscitou muita polêmica foi a ADIN 3.510 que tratava da Constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias. Por maioria, a Corte julgou improcedente ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-Geral da República contra o art. 5º da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2205). O referido artigo, em seus diferentes dispositivos, autorizava e disciplinava as pesquisas científicas com embriões humanos resultantes dos procedimentos de fertilização in vitro, desde que inviáveis ou congelados há mais de três anos. Prevaleceu o voto do relator, Ministro Carlos Ayres Britto, no sentido de que não havia, na hipótese, violação ao direito à vida, nem tampouco ao princípio da dignidade da pessoa humana. Tendo como base nos seguintes dispositivos constitucionais, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o direito à livre expressão da atividade científica (art. 5º, IX), o direito à saúde (art. 6º), o dever do Estado de promover políticas públicas que promovam a saúde (art. 196), e de promover e incentivar o desenvolvimento científico e a pesquisa (art. 218).

A posição do relator, julgando a ação totalmente improcedente, prevaleceu por seis votos a cinco. Colaciona-se a seguir o seu voto:

É assim ao influxo desse olhar pós-positivista sobre o Direito brasileiro, olhar conciliatório do nosso Ordenamento com os imperativos de ética humanista e justiça material, que chego à fase da definitiva prolação do meu voto. Fazendo-o, acresço às três sínteses anteriores estes dois outros fundamentos constitucionais do direito à saúde e à livre expressão da atividade científica para julgar, como de fato julgo, totalmente improcedente a presente ação direta de inconstitucionalidade. Não sem antes pedir todas as vênias deste mundo aos que pensam diferentemente, seja por convicção jurídica, ética, ou filosófica, seja por artigo de fé. É como voto.

A lista de outros tantos julgados que poderia ser citada aqui seria muito grande, extrapolando-se o escopo principal desse trabalho, mas através desses poucos exemplos se ilustrou, a firme atuação da Suprema Corte, na tutela de questões em que a clara omissão do Legislativo, faz com que nasça a evidente necessidade de uma tutela jurisdicional.

Há que se comentar também, que a busca pela tutela jurisdicional nesses feitos representa o descontentamento das pessoas, com o Poder Legislativo. O STF tem sido cauteloso evitando o ativismo, mas aos poucos vem deixando de lado sua postura de mero coadjuvante, para cada dia mais se tornar um guardião ferrenho dos Direitos Fundamentais e da dignidade da pessoa humana. Quanto mais as pessoas conhecerem seus direitos e a utilização dessas ferramentas expressas na Constituição, mais ativa será a partição do judiciário. Pode-se inferir então, que o povo clama pela tutela judicial, face à inércia e imobilidade do Legislador.

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5-ATIVISMO NAS QUESTÕES DE SAÚDE

O Direito à Saúde está previsto de forma explícita em na Carta Maior em seu artigo 6º, no Capítulo – Dos Direitos e Garantias Fundamentais -, apontado como direito social oponível ao Estado, por todos quantos vivem no território brasileiro, bem como mais especificamente no, artigo 196, ipsis litteris:

“Art. 6 São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Pode-se concluir pela leitura desses dispositivos, que o Direito à Saúde corresponde a um direito fundamental, portador de todas as garantias decorrentes desse status constitucional, consolidando-se assim em razão de uma evolução lenta e gradual iniciada há dois séculos, segundo BARROSO (2009, p.12), em artigo desenvolvido por solicitação da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, quando ainda era Procurador da Instituição. O autor disse que a trajetória da saúde pública no Brasil se iniciou em meados do século XIX, com a vinda da Corte portuguesa. Nesse período, eram realizadas apenas algumas ações de combate à lepra e à peste, e algum controle sanitário, especialmente sobre os portos e ruas. É somente entre 1870 e 1930 que o Estado passou a praticar ações mais voltadas em matéria de saúde, com a adoção de um modelo “campanhista”, caracterizado pelo uso da autoridade e com auxílio de força policial. Apesar de eventuais abusos, esse modelo teve algum sucesso no controle de doenças epidêmicas, onde conseguiu erradicar a febre amarela da cidade do Rio de Janeiro. Durante esse período, não havia, contudo, ações públicas curativas, que ficavam reservadas aos serviços privados e à caridade. Somente a partir da década de 30, há a estruturação básica do sistema público de saúde, que passa a realizar também ações curativas. Nessa época foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública e os Institutos de Previdência, os conhecidos IAPs, que ofereciam serviços de caráter curativo. A saúde pública não era universalizada em sua dimensão curativa, restringindo-se a beneficiar os trabalhadores que contribuíam para os institutos de previdência. Ao longo do regime militar, os antigos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs) foram unificados, com a criação do INPS – Instituto Nacional de Previdência Social. Vinculados ao INPS, foram criados o Serviço de Assistência Médica e Domiciliar de Urgência e a Superintendência dos Serviços de Reabilitação da Previdência Social. Todo trabalhador urbano com carteira assinada era contribuinte e beneficiário do novo sistema, tendo direito a atendimento na rede pública de saúde.

No entanto, grande contingente da população brasileira, que não integrava o mercado de trabalho formal, continuava excluído do direito à saúde, ainda dependendo, como ocorria no século XIX, da caridade pública.

A partir da Constituição de 1988, o direito à saúde não mais se restringiria aos trabalhadores formais, mas deveria ser garantida a todos os trabalhadores e cidadãos brasileiros, consolidando-se como Princípio constitucional.

A estrutura da saúde pública no Brasil conta também com atuação das Secretarias Estaduais e municipais de saúde. A Constituição Federal de 1988 deu um importante passo na garantia do direito à saúde com a criação do Sistema Único de Saúde, o SUS. Seus princípios apontam para a democratização nos serviços de saúde, que deixam de ser restritos e passam a ser universais. Da mesma forma, deixam de ser centralizados e passam a ser norteados pela descentralização, com os estados e municípios assumindo suas responsabilidades e prerrogativas diante do SUS, bem como desenvolvendo ações que deem prioridade à prevenção e à promoção da saúde.

Esse acesso à Saúde por todos trouxe também um novo fenômeno: uma demanda por medicamentos que lastreiam os tratamentos oferecidos pela saúde pública em seus diversos âmbitos. Ainda segundo BARROSO (2009, p.3) no trabalho citado anteriormente:

“Nos últimos anos, no Brasil, a Constituição conquistou, verdadeiramente, força normativa e efetividade. A jurisprudência acerca do direito à saúde e ao fornecimento de medicamentos é um exemplo emblemático do que se vem de afirmar. As normas constitucionais deixaram de ser percebidas como integrantes de um documento estritamente político, mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo, e passaram a desfrutar de aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais. Nesse ambiente, os direitos constitucionais em geral, e os direitos sociais em particular, converteram-se em direitos subjetivos em sentido pleno, comportando tutela judicial específica. A intervenção do Poder Judiciário, mediante determinações à Administração Pública para que forneça gratuitamente medicamentos em uma variedade de hipóteses, procura realizar a promessa constitucional de prestação universalizada do serviço de saúde.”

Depreende-se então que em função da formação desse direito subjetivo que passou a se formar, tem ocorrido atualmente uma grande demanda de ações judiciais em busca desses medicamentos face à negativa do Estado de atender a todos os pedidos escudando-se na simples alegação da “Reserva do Possível”, para o não cumprimento e não implementação das políticas públicas.

CARNEIRO (2104, p.94) em sua obra, em defesa de um ativismo judicial em face de mera alegação da reserva do possível aduz que, a questão que envolve as necessidades humanas básicas, por conseguinte, a reserva do possível, seria muito mais uma garantia da dignidade humana do que seriam as escusas dos poderes públicos em face dessas necessidades. Em síntese o que se refere ao paradigma das necessidades básicas, cabe ao Legislativo, Executivo e à Sociedade Civil definirem o que seria uma reserva do possível, mas caberia também ao Judiciário intervir quando necessário através de um ativismo positivo, fato que não pode simplesmente sucumbir ao tecnicismo formal. O que significaria dizer que, o Judiciário tem que tomar a iniciativa e decidir exercer um controle de constitucionalidade, bem como tomar medidas impositivas que até então se escudariam sob o véu do mérito administrativo, e, ao que nos parece, nesse sentido tem andado bem nossos Tribunais, como a discussão do controle de constitucionalidade da lei orçamentária.

Na mesma linha de raciocínio também a posição de MASSON (2016, p.293), em que a brilhante autora aduz que sobre esta dimensão da teoria da "reserva do possível", a impossibilidade da cláusula da reserva do possível servir de escusa do Estado, para impedir e inviabilizar a efetivação de políticas públicas expressas na própria Constituição. Nesse sentido, ressalvada a ocorrência de um motivo justo e objetivamente verificável, a reserva do possível não pode ser alegada pelo Estado no intuito de recusar-se ao cumprimento de suas obrigações firmadas no texto constitucional, especialmente quando dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. A alegação da cláusula é, portanto, um ônus que recairia sobre o Poder Público que alegaria em sua defesa face ao não cumprimento das prestações solicitadas, cabendo a ele o dever de comprovar de forma incisiva, não sendo suficiente a mera alegação de que não há possibilidade financeira e também orçamentária do não cumprimento do direito, será preciso demonstrá-la cabalmente. O Estado é quem deve trazer para os autos os elementos orçamentários e financeiros capazes de justificar, eventualmente, a não efetivação do direito fundamental.

Já o Ilustre Doutrinador BARROSO (2009, p.24), assume em seu trabalho uma posição mais branda:

“Talvez a crítica mais frequente seja a financeira, formulada sob a denominação de “reserva do possível”. Os recursos públicos seriam insuficientes para atender às necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis. Investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros. De fato, o orçamento apresenta-se, em regra, aquém da demanda social por efetivação de direitos, sejam individuais, sejam sociais48. Em diversos julgados mais antigos, essa linha de argumentação predominava. Em 1994, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao negar a concessão de medida cautelar a paciente portador de insuficiência renal, alegou o alto custo do medicamento, a impossibilidade de privilegiar um doente em detrimento de outros, bem como a impropriedade de o Judiciário “imiscuir-se na política de administração pública”.

Mais recentemente, vem se tornando recorrente a objeção de que as decisões judiciais em matéria de medicamentos provocam a desorganização da Administração Pública. São comuns, por exemplo, programas de atendimentos integral, no âmbito dos quais, além de medicamentos, os pacientes recebem atendimento médico, social e psicológico. Quando há alguma decisão judicial determinando a entrega imediata de medicamentos, frequentemente o Governo retira o fármaco do programa, desatendendo a um paciente que o recebia regularmente, para entregá-lo ao litigante individual que obteve a decisão favorável50. Tais decisões privariam a Administração da capacidade de se planejar, comprometendo a eficiência administrativa no atendimento ao cidadão. Cada uma das decisões pode atender às necessidades imediatas do jurisdicionado, mas, globalmente, impediria a otimização das possibilidades estatais no que toca à promoção da saúde pública.

Essas demandas têm números grandiosos, onde é fácil perceber que diante da negativa do Estado no fornecimento de medicamentos, as pessoas se socorrem do Judiciário em busca de sua tutela, em um número cada vez maior.

Segundo MENDES (2016, p.18) - Presidente da Federação Nacional de Saúde Suplementar – FenaSaúde, no Brasil, os gastos com a judicialização da saúde subiu 500% entre 2010 e 2014, somando R$ 2,1 bilhões nesse período, segundo o Ministério da Saúde. O Estado de São Paulo gastaria em média R$ 1 bilhão por ano com ações judiciais enquanto seu custo total para a assistência farmacêutica em todo o SUS é de R$ 600 milhões. Um estudo dessas ações no estado mostraram uma grande incidência de prescrições incorretas e com uma justificativa clínica e probatória sem fundamentos consistentes, e sem uma solicitação prévia, 70% de prescrições particulares, desconhecimento dos médicos do CONITEC e do RENAME, 24% pedem marcas específicas, 90% não listados pelo SUS e 5% não possuem registro da ANVISA.

Segundo dados do Ministério da Saúde, R$ 5 bilhões foi o valor gasto por municípios, Estados e União com a judicialização em 2015 e R$ 7 bilhões é quanto governos deverão gastar em 2016. O valor inclui decisões judiciais que determinam a compra de remédios, equipamentos e outros suprimentos da área que não são cobertos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Um fato muito importante deve ser considerado como grave consequência da resistência do Estado na concessão desses medicamentos. O atendimento dessas demandas sem a necessidade de ações judiciais denotaria economia de dinheiro público, porque as compras realizadas de um momento para o outro, como aquelas através de liminares judiciais, costumam ser mais caras do que aquelas planejadas e realizadas através de um processo licitatório. Dessa forma pode-se concluir que há um aumento expressivo no custo das políticas públicas via judicialização individualizada.

Foi realizado em 18 e 19 de novembro de 2010, o I Encontro do Fórum Nacional do Judiciário para Saúde. Criado pela Resolução 107/2010 do CNJ, o Fórum da Saúde tem por objetivo equacionar as demandas relacionadas ao direito à saúde e diminuir o impacto da judicialização da saúde no orçamento de estados e municípios. Foram aprovados vários enunciados que partem do pressuposto de que a atuação do Judiciário é crucial para o resgate efetivo da cidadania e realização do direito à saúde, mesmo sob o argumento de que do seu exercício advêm tensões com a administração pública. Interessante notar inclusive, a auto‑compreensão de que os magistrados possuem uma relevante missão na influência das políticas públicas de saúde.

Como exemplo desse Encontro, pode-se ilustrar através dos seguintes enunciados lá produzidos, ipsis litteris:

“ENUNCIADO N.º 5

Deve-se evitar o processamento, pelos juizados, dos processos nos quais se requer medicamentos não registrados pela Anvisa, off label e experimentais, ou ainda internação compulsória, quando, pela complexidade do assunto, o respectivo julgamento depender de dilação probatória incompatível com o rito do juizado.

ENUNCIADO N.º 6

A determinação judicial de fornecimento de fármacos deve evitar os medicamentos ainda não registrados na ANVISA, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei.”

Atualmente tramita no STF, o julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários (REs) 566471 e 657718. Os recursos, que tiveram repercussão geral reconhecida, tratam do fornecimento de remédios de alto custo não disponíveis na lista do Sistema Único de Saúde (SUS) e de medicamentos não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

Segundo reportagem do Jornal Folha de São Paulo onde assinam CANCIAN e MASCARENHAS, uma nova etapa do julgamento que avalia se os governos devem ser obrigados a dar remédios de alto custo fora da lista do SUS e sem registro no Brasil, três dos ministros do STF defenderam a possibilidade de medicamentos avalizados apenas fora do país serem fornecidos a pacientes, mas em caráter de exceção. Eles sugeriram a adoção de critérios na análise das ações judiciais que pedem acesso aos remédios em que pacientes poderão conquistar esse direito, mas mediante novas condições. A sessão do STF foi suspensa novamente depois de pedido de vista do ministro Teori Zavascki. O julgamento no STF é um marco na discussão sobre a judicialização da saúde. Para os Estados será um freio nos processos, devido ao grande impacto nas contas públicas para atender demandas individuais.

O ministro Marco Aurélio Mello mudou parte de seu voto anterior: mas manteve a opinião de que os governos devem custear tratamentos de alto custo e acrescentou que poderão arcar até com a importação de produtos sem registro na ANVISA. Ele determinou como condição que não haja similares no Brasil, que esse remédio seja ofertado em outros países e que o paciente apresente laudo para atestar que é indispensável à sua saúde. O ministro defendeu que os Estados possam requerer a solidariedade familiar no custeio de tratamentos caso se constate a capacidade financeira de parentes do doente.

Já o ministro Luís Roberto Barroso defendeu exceções, com base em cinco critérios: 1) a comprovação de que o paciente não tem como arcar com os custos; 2) que o medicamento não tenha sido recusado em análise da comissão que avalia a oferta de remédio no SUS; 3) que não haja alternativa disponível; 4) que tenha segurança e eficácia comprovadas; 5) que o custeio seja feito pela União, e não só por Estados ou municípios. Segundo ele: "Não há sistema de saúde que possa resistir a um modelo em que todos os remédios, independentemente do seu custo e impacto financeiro, possam ser oferecidos a todas as pessoas", afirmou. Em relação a remédios sem registro na ANVISA, defendeu que a exceção valeria somente para medicamentos "com segurança comprovada e testes concluídos", e diante de demora (mais de um ano) para a agência apreciar um registro, o que foge das raias da razoabilidade.

A adoção de critérios foi defendida pelo ministro Edson Fachin, para quem deve ser observado se houve "falha ou demora" na incorporação do remédio na rede pública. Fachin disse que a Justiça não pode, como regra, autorizar medicamento não registrado, mas pode determinar que a agência reexaminasse um registro e, "em última hipótese", autorizar o fornecimento.

A decisão sobre esses recursos tinha sido interrompida duas semanas, antes desse novo julgamento, por pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso, que proferiu seu voto, seguido pelo ministro Luiz Edson Fachin. Mas a análise da matéria foi novamente suspensa, dessa vez por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki, e novo julgamento ainda não tem prazo definido.

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Sobre o autor
Ernesto Portella

Advogado atuante no Direito Digital e Professor. Profissional Liberal. DPO as a service e Consultor LGPD. Membro da ANADD - Associação Nacional de Advogados do Direito Digital, Membro da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas (CDAP) da OAB/RJ. Atuou como Consultor autônomo e Profissional da área de TI durante 20 (Vinte) anos e na área de redes de computadores e segurança da informação, por 10(Dez)anos.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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