Dos gastos dos contribuintes além do tributo em si, imposição de cunho patrimonial.
Antes de adentrarmos a análise do contexto que se desenvolve o comportamento do Fisco do Estado de São Paulo e seus reflexos quanto ao mandamento do princípio da moralidade, vale pontuar que o presente trabalho tem como premissa que a relação tributária não se limita ao recolhimento ordinário de tributos, mas também todos os esforços que o contribuinte empreende para atender ou se defender contra a regra de cobrança, especialmente as indevidas. Tal premissa não é nova, considerando que Adam Smith (2011, p. 1048) propugnava as “máximas” que devem ser seguidas pelas Administrações Tributárias, destacando quatro maneiras em que os contribuintes despendem muito mais riqueza do que é recolhido ao Erário.
No mesmo toar, o comportamento fiscal que cria indevidas exigências ao contribuinte, de maneira insensata, ou mesmo sujeita o contribuinte a uma fiscalização opressora, excessivamente desnecessária, afirma Smith, faz com que os tributos “frequentemente se tornam muito mais pesados ao povo de que benefícios ao soberano”. Neste raciocínio, alerta o indicado autor que os contribuintes (aplicável também aos responsáveis tributários) devem pagar ou desembolsar o mínimo possível além do que se recolhe ao Erário público.
No mesmo caminho, ou seja, que não só os tributos criam desembolsos aos contribuintes, Fritz Neumark, que laborou para formar um quadro resumo dos princípios tributários que devem nortear todo sistema tributário justo, se preocupa com criação de expedientes desarrazoados impondo indesejado custo ao contribuinte, e também ao Estado, pelo que leciona:
“La estructura del Sistema Tributario y la composición de sus elementos deben realizarse de tal forma que los gastos que ocasione a la Administración o a los contribuyentes la gestión, recaudación e inspección no sobrepasen el mínimo imprescindible para alancazar los princípios político-económicos y político-sociales de lá imposición.”[13]
E continua Neumark ao trazer quais seriam os custos de imposição que se deve incluir neste conceito, que seriam três, quais sejam: (i) custos de gestão do imposto da administração fiscal; (ii) os custos do contribuinte para o cumprimento das suas obrigações principal e “acessória”/deveres instrumentais; e, finalmente, (ii) custos que enfrenta o contribuinte (pessoa física e jurídica) em favor do fisco, para o cumprimento as obrigações de terceiros. Para o indicado autor alemão os dois últimos podem ser considerados um “tributo para pagar tributo” ou um tipo de "exação indireta", segundo já alertava Adam Smith.
A constatação que o contribuinte empreende riqueza para atendimento da Administração Tributária – o que pode ser aplicável ao responsável –, já foi também objeto de conclusão de diversos trabalhos[14], os quais destacamos a análise de Thaís Helena Morando[15], que dedicou estudo detido sobre a natureza jurídica da obrigação acessória tributária, a qual também se inclui o dever de “atender fiscalização do ente fazendário”, reconhecendo, dessa forma, seu conteúdo patrimonial.
Ou seja, a criação de um processo administrativo em face do contribuinte (ou responsável) antes de mais nada, deverá iniciar com uma responsável justificação fática e jurídica, além de levar em consideração os custos deles decorrentes e os seus potenciais efeitos, sob pena de aquelas restrições configurarem verdadeiras violações aos princípios que se sujeitam a atividade estatal tributária.
Até porque a criação de uma demanda infundada contra o contribuinte ou responsável, não só irá indevidamente penalizá-lo, já que precisará subsidiar e patrocinar esforços para se eximir da cobrança indevida, mas, posteriormente, impactará em toda a sociedade, considerando os custos da movimentação da máquina estatal, ressalte-se, que não são poucos. E não termina por aí, eis que caso a disputa alcance a via judicial, leia-se, a criação de exação indevida (que não se sustenta juridicamente) imporá à sociedade novo custo, por conta do ônus da sucumbência que o Erário terá que pagar, nos termos das regras processuais brasileiras.
Ou seja, não se pode sob a justificativa da praticabilidade, criar expedientes sem o respaldo da realidade fática e jurídica que se examina, em consonância com o Direito em atenção à Carta Política, sob pena de ser constatado “vícios da discricionariedade, ou seja, mau uso ou abuso da faculdade administrativa” como lembra Diogo de Figueiredo Moreira Neto [16].
Dessa forma, considerando os primados essenciais da relação tributária entre o fisco e o contribuinte, seja pela realidade comercial em que vivemos, não nos parece que a maneira que o Fisco Bandeirante trata este tema guarda consonância com o correto enquadramento jurídico constitucional, conforme abaixo será tratado.
Das práticas comerciais hodiernas. O contexto atual que não pode ser ignorado pela Administração Tributária antes de constituir lançamento.
Embora a ciência do Direito não se esgote na observação dos fatos, considerando que o fenômeno jurídico é algo mais complexo, mas como fenômeno, e englobado no mundo, deve ser extraído da compreensão da realidade, pois só nela surge ou não o fato jurídico tributário (ainda que sem atribuir a qualquer fato social um relevo excepcional e desmedido). Dessa forma, somente com a ocorrência no mundo fenomênico do comportamento suposto na norma, é que faz nascer a obrigação. Neste raciocínio, o Direito não deve desprestigiar o contexto atual da realidade, especialmente se passamos a identificá-la como relevante na relação jurídico-tributária[17].
E é por esta razão, que não se pode conceber a postura fiscal da Administração Tributária Bandeirante ao desprestigiar por completo a realidade, notadamente por influenciar na presente análise, que prejudica o contribuinte de boa-fé. Ora, nunca é demais lembrar que atualmente vivemos em um mundo extremamente dinâmico, retrato dos inúmeros e incessantes avanços tecnológicos, que arriscamos dizer, possibilitaram a medição da distância em razão do tempo.
O comércio, que não é um fenômeno recente, além de outros fatores, está intimamente ligado aos sistemas de transporte e informações concernentes à sua época, e por esta razão, face ao atual estágio da evolução tecnológica, proporciona o intercâmbio econômico em altas escalas, não só por conta do volume, mas também em relação ao âmbito geográfico, exercido por canais comerciais cada vez mais dinâmicos. Em outras palavras, o comércio hoje é caraterizado pela sua maior velocidade, volume, alcance geográfico e diversidade.
Dentro deste panorama desenvolveram-se as condições para a disseminação e expansão das práticas comerciais, especialmente beneficiadas por fatores como a livre circulação de capitais, eliminação gradual de barreiras comerciais, também propiciados pela agilidade e facilidade na comunicação.
Neste cenário, também foram alterados os modelos de operação, que na busca da eficiência e uma maior rentabilidade, alteraram seus, na medida em que passaram a utilizar não mais de um cenário local (municipal, estadual ou mesmo nacional), e sim de uma conjuntura nacional (ou mesmo global), na qual se verifica um modelo de cadeia de funções de financiamento, produção e distribuição.
E dentro desta perspectiva de integração, que trouxe possibilidades de novos modelos de negócios, foi possível a circulação de riquezas sobre novas perspectivas, suportando, portanto, o crescimento da economia.
Assim, foi possível ainda fracionar as atividades comerciais para aproveitar o benefício de cada região, aumentando, dessa forma, na busca de melhores preços, matéria-prima, capital. Na busca de eficiência o comércio é praticado sem limites geográficos, de maneira extremamente rápida e dinâmica.
As tecnologias da comunicação (financeira e comercial) exacerbaram as características de integração do mundo, conforme acima delineado, possibilitando a criação de novas particularidades, exacerbando as características de integração das regiões, como a maior utilização de ativos intangíveis e uso massivo de dados[18].
Ou seja, para a celebração de uma prática comercial não se coadunam com a época atual (marcada pelo dinamismo), a existência de extensas formalidades na compra de mercadorias, bastando apenas um telefonema, um e-mail ou mesmo um “clique” para contratar a compra ou o efetuar o pagamento de uma mercadoria.
Em outras palavras, não existe o cenário de contratação e compra que o Fisco Bandeirante ainda exige do adquirente de mercadoria, conforme se viu nos questionamentos presentes na notificação fiscal que ensejou a cobrança fiscal. Não é possível imaginar no mundo atual em que o comprador se desloque para o estabelecimento do vendedor para confirmar onde se localiza sua sede – mesmo porque muitas das empresas atualmente são virtuais e utilizam a prática de estoque em poder de terceiros –. Tampouco há de imaginar que o comprador saiba o nome completo, RG, CPF, endereço residencial e a ocupação profissional exercida na empresa vendedora.
Aqui vale relembrar algumas conclusões alcançadas por Hugo de Brito Machado Segundo (2016, p. 94) que afirma categoricamente que não se pode admitir esquecer dos fatos sobre as quais irão incidir o Direito, reforçando a ideia de zelo por esta “premissa óbvia”, reconhecendo que “o próprio Direito torna-se uma ideia vazia se não houver algum zelo na identificação e na determinação dos fatos sobre os quais suas disposições devem ser aplicadas”[19], donde podemos ir além para concluir que os fatos investigados pela Administração Tributária em suas questões, não existem na realidade que se apresenta atualmente, criando ônus ao contribuinte impossível de se desincumbir.
Em linhas claras, a realidade dos fatos imaginada pelo Fisco Bandeirante não se verifica na prática, tampouco se o adquirente terceirize o seu fornecimento de matéria-prima ou demais mercadorias para realização de seus objetivos sociais, demonstrando que as exigências fiscais impostas ao adquirente não guardam relação com o primados constitucional da relação tributária, que impedem os abusos contra o contribuinte (ou responsável), conforme acima destacado nos tópicos anteriores.
Do Princípio da Moralidade Tributária
No mesmo caminho deixado pelo tópico anterior, agora não mais tratando do contexto social que já seria capaz de impedir o comportamento fiscal inadequado, passaremos a tratar do contexto jurídico, considerando que não nos parece que as faculdades administrativas novamente não se atentaram para a ordem jurídica, o que levaria ao descumprimento do princípio da moralidade.
Inicialmente alude mencionar a importância dos princípios para todas as ciências do conhecimento humano, considerando guardarem uma série de funções, como não poderia ser diferente no Direito. Reforça este entendimento Renato Lopes Becho (2011, p. 357) ao destacar a função hermenêutica dos princípios constitucionais tributários, ensinando que “por serem normas qualificadas, acabam sendo mecanismos que repelem regras jurídicas que os enfrentem”, inclusive indicando os autores da dogmática jurídica brasileira que se filia a importância e necessidade dos princípios como integrador do sistema jurídico[20]. Assim, também seguimos nesta linha da importância dos princípios na compreensão do direito.
Outro ponto que sobreleva destaque é a questão da aplicabilidade dos princípios ou mesmo sua eficácia normativa ao caso concreto. Para Humberto Ávila ao tratar da eficácia dos princípios, considera que estes, que por serem normas “imediatamente finalísticas” devem estabelecer um objetivo na aplicação das regras, e aprofunda, ao abordar a eficácia externa, afirmando com lastro em Théodore Ivainer[21], que a “normas jurídicas são decisivas para interpretação dos próprios fatos”, na medida de uma análise de exame de pertinência e de valoração. E continua ao conceber que na análise do evento a Administração Tributária, que neste caso é o interprete, precisa vale dos parâmetros axiológicos extraídos dos princípios constitucionais, assim, afirmando que “são os princípios que determinam quais são os fatos pertinentes, mediante uma releitura axiológica do material fático” (2011, p. 99/100)[22].
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal[23] também reconhece a força ou densidade normativa dos princípios constitucionais, aplicando-os como preceitos fundamentais nos casos concretos, merecendo a reprodução de um trecho da ementa do RE 837311 / PI, da Relatoria do Ministro Luiz Fux, que destaca:
“(...) O Estado Democrático de Direito republicano impõe à Administração Pública que exerça sua discricionariedade entrincheirada não, apenas, pela sua avaliação unilateral a respeito da conveniência e oportunidade de um ato, mas, sobretudo, pelos direitos fundamentais e demais normas constitucionais em um ambiente de perene diálogo com a sociedade (...)”.
Superadas a importância e aplicabilidade dos princípios constitucionais, passaremos a tratar da moralidade, que é prevista como um dos princípios da Administração Pública, conforme disposto no artigo 37 da Constituição Federal, e nestes termos, obviamente deve pautar os trabalhos da Administração Tributária[24], como destaca Humberto Ávila (2011, p.94) ao dizer que é um dos seus princípios fundamentais.
Assim, nos parece possível afirmar que a Administração Tributária tem a missão de arrecadar tributos segundo e seguindo a determinação da moralidade, em especial para assegurar que os tributos não sejam deixem de ser recolhidos, ou sejam recolhidos com deficiência (a menor por exemplo), e principalmente, de forma injusta.
Ávila destaca ainda, para melhor conceituar a aplicabilidade do mencionado princípio que “o princípio da moralidade exige a realização ou preservação de um estado de coisas exteriorizado pela lealdade, seriedade, zelo, postura exemplar, boa-fé, sinceridade e motivação”[25], que, na visão do autor, sem estes comportamentos não se atende o que foi determinado pela norma extraída do princípio, deixando assim, de atingir a finalidade que necessariamente deve ser atendida. Em outras palavras, o princípio não é concretizado.
Ainda na investigação da moralidade administrativa, vale novamente citar os ensinamentos trazidos por Ricardo Lobo Torres (2014, p. 19), que lembra as lições de Diogo de Figueira Moreira Neto[26], ao explicar que “ocorre vício da moralidade administrativa quando o agente público praticar ato administrativo (contrato administrativo ou ato administrativo) fundando-se em motivo: a) inexistente; b) insuficiente; c) inadequado; d) incompatível; e e) desproporcional”. Complementamos, não somente todos em conjunto, mas um só já seria suficiente para violação da moralidade.
Lembra o Torres que a postura dos agentes fiscais é imoral quando as condutas de agentes fiscais descompatibilizam com normas. Assim, pode-se concluir pelo trabalho do autor mencionado que a moralidade deve necessariamente dirigir qualquer comportamento da Administração Tributária.
Uma das constatações verificadas por Torres em desrespeito ao princípio da moralidade fiscal, dentre algumas que identifica é a “pressão sobre o contribuinte”. Para o mencionado autor esta pressão é constatada pelas marcas de ameaças e de outros instrumentos de cobrança fiscal, que, mais das vezes recai sobre o mais fraco contribuinte, considerando que os grandes possuem grande aparato de defesa[27].
Dessa forma, não nos parece que a postura fiscal em face do adquirente (de mercadoria que foi vendida por empresa que teve sua inscrição estadual considerada irregular), atende aos preceitos constitucionais da moralidade, pois como se viu, a Administração Tributária ao criar expediente impossível de atender, nos termos dos questionamentos insertos na Ordem de Serviço Fiscal, exerce pressão desproporcional sobre o contribuinte, nos termos do que a doutrina de Torres assinalou.
E pior, ao constituir auto de infração “por solidariedade” ao contribuinte adquirente, constata-se ainda mais a indevida postura fiscal no caso concreto, especialmente ao impor-lhe ônus impróprio, já que terá que dispender esforços no patrocínio de defesa para anular a maculada tributação, postura que não é admitida pelo Direito Tributário, repita-se, que tem a finalidade de proteger o contribuinte.
Vale acrescentar que o adquirente não tem a função de fiscalizar o vendedor, ainda mais na realidade comercial que já destacamos, sendo certo, conforme disposto no artigo 78 do Código Tributário Nacional[28], que o poder de polícia é de competência da Administração Tributária, impossível, portanto, ser transferida ao contribuinte.
Portanto, por todos os ângulos que se analise a questão, a conclusão é única, ou seja, o Fisco Bandeirante no trato do caso de aquisição de mercadoria vendida por contribuinte que perdeu sua eficácia na inscrição estadual, acaba por criar e impor ônus demasiadamente desproporcional ao adquirente, especialmente em análise as práticas comerciais hodiernas, e mais, notadamente por violar os mandamentos do Princípio da Moralidade Tributária, principio este que serve ao contribuinte contra os arbítrios da tributação ilegal.