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Breve ensaio sobre o comportamento do fisco bandeirante contra o adquirente de mercadorias de contribuinte que perdeu a eficácia de sua inscrição estadual

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14/04/2019 às 15:10
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Trata-se de inúmeros casos em que a fazenda do Estado de São Paulo, após suspender, cassar ou nulificar a inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS, passa a investigar e, especialmente, autuar terceiros contribuintes.

Sumário: 1. Introdução. O comportamento do Fisco Bandeirante contra o adquirente de mercadorias vendidas por contribuinte que perdeu a eficácia de sua inscrição estadual. 2. Brevíssimas considerações sobre a Tributação. Sua importância e limites. 3. Dos gastos dos contribuintes além do tributo em si, imposição de cunho patrimonial. 4. Das práticas comerciais hodiernas. O contexto atual que não pode ser ignorado pela Administração Tributária antes de constituir lançamento. 5. Do princípio da moralidade tributária. 6. Conclusões. 7. Bibliografia.


Introdução. O comportamento do Fisco Bandeirante contra o adquirente de mercadorias vendidas por contribuinte que perdeu a eficácia de sua inscrição estadual.

Como se sabe, na busca da ocorrência do fato tributário capaz de fazer nascer a regra de cobrança, a Administração Tributária, ressalte-se, que deve pautar seu trabalho sempre nos termos da lei (em sentido amplo, vide regras, princípios e enunciados) já que esta que garante a sua legitimidade, instaura procedimento investigatório de fiscalização.

A fiscalização é realizada em face do contribuinte ou mesmo do responsável, considerando as disposições do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966) as quais assinalam que o sujeito passivo da obrigação pecuniária tanto pode ser o contribuinte, quanto o responsável, este quando sua obrigação decorra expressamente de lei[1].

Vale dizer, nos termos da legislação estadual, especialmente do Regulamento do Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – RICMS, aprovado pelo Decreto nº 45.490, de 30 de novembro de 2011, são previstas diversas hipóteses de retirada eficácia da inscrição, conforme dispõe o artigo 20 daquele decreto estadual[2].

Em apertada síntese, verificada a existência de atos ilícitos que tenham repercussão no âmbito tributário, notadamente de práticas sonegatórias que importem em frequente falta de recolhimento do ICMS, o Fisco Estadual retira a eficácia da inscrição estadual do contribuinte faltoso.

Até este momento não nos parece que há algo a reprimir, pelo contrário, merece aplausos a Administração Tributária Estadual, considerando que a retirada de agente tumultuador do domínio econômico é medida que atende a primazia da Justiça Fiscal[3], pois sua manutenção como “player” muito provavelmente causará diversos transtornos para o sistema, prejudicando não só a arrecadação, como o equilibro concorrencial.

Entretanto, superados os trâmites administrativos de retirada da eficácia da inscrição estadual do contribuinte nocivo, a Administração Tributária, utilizando-se de sua base de dados, especialmente de notas fiscais eletrônicas referentes a aquisição de mercadorias comercializadas pelo agente expulso do sistema, inaugura novo procedimento em face do contribuinte que por alguma vez adquiriu mercadorias daquele que teve seu cadastro cancelado perante o Fisco Estadual.

Este procedimento tem início com a confecção de Ordem de Serviço Fiscal expedida contra o adquirente da mercadoria, notificando-o, obrigatoriamente a prestar esclarecimentos sob risco de enquadrá-lo nas penas de embaraço à ação fiscalizadora. Vale mencionar que é praxe das Autoridades Fiscais inclusive fazer constar este enquadramento legal já na notificação fiscal, o que para nós, já parece demonstrar o tom de desproporcional, ou pior, de ameaça no tratamento do tema, ainda que a tributação tenha como pano de fundo o interesse público.

Destarte, nesta linha de investigação do fato tributário, a Administração Tributária Estadual intima o adquirente de mercadoria para que atenda “detalhadamente” e por escrito, apresentando toda documentação que se fizer necessária e suficiente, em atenção aos seguintes quesitos:

“1º) Que fatos e/ou circunstâncias determinaram a escolha pelo notificado a entabular negócio de compra e venda com a empresa vendedora, das mercadorias descritas nos documentos ora anexados;

2º) Que fatos e/ou circunstâncias determinaram a escolha pelo notificado das mercadorias compradas da empresa vendedora;

3º) Na contratação do negócio de compra das mercadorias, quem por parte da empresa notificada entabulou o trâmite com a empresa vendedora. Fornecendo o nome completo, RG, CPF, endereço residencial e a ocupação profissional exercida na empresa notificada;

4º) Na contratação do negócio de compra das mercadorias, quem por parte da empresa vendedora e de que forma entabulou o trâmite com a empresa notificada. Fornecendo o nome completo, RG, CPF, endereço residencial e a ocupação profissional exercida na empresa vendedora;

5º) Se a pessoa informada no quesito (3º) esteve nas instalações da empresa vendedora para verificar a idoneidade das mercadorias ora compradas. Em caso positivo, informar o endereço completo destas instalações, com dia e hora da visita.

6º) Se a pessoa informada no quesito (3º) inquiriu a empresa vendedora sobre a origem das mercadorias, como quem as produziu, se são de marca conhecida do mercado.

7º) Como foi entabulado o negócio de compra das mercadorias da empresa vendedora, tais como: prazos de entrega, formas de pagamento, transporte, dia e hora da entrega, seguro, garantias relativas às mercadorias;

8º) Comprovar disponibilidade de recursos financeiros para efetivação do pagamento da mercadoria;

9º) Se a mercadoria adquirida for insumo para fabricação de outra mercadoria especificar

10º) Juntar documentos probatórios da destinação das mercadorias adquiridas, tais como relatório de produção, se insumo, e, notas de saídas das mercadorias, quer sejam de produção própria ou de simples comercialização.

11º) Quem efetuou o transporte das mercadorias no trajeto das instalações da empresa vendedora para a empresa notificada. Declinar a razão social, IE, CNPJ, endereço comercial, em se tratando de pessoa jurídica e se for pessoa física, o seu nome completo, RG, CPF, endereço residencial; assim como a placa e características do veículo transportador, o valor do “frete” e quem foi o tomador do serviço;

12º) Sendo a empresa notificada o tomador dos serviços, fornecer os documentos relativos ao transporte contratado, tais como: CTRC, os comprovantes de pagamento e os respectivos lançamentos fiscal e contábil;

13º) Quem recebeu as mercadorias compradas da empresa vendedora, apresentando o nome completo, RG, CPF, endereço residencial e a ocupação profissional dentro da empresa notificada;

14º) Em que local, nas instalações da empresa notificada, as mercadorias ficaram acondicionadas;

15º) Quanto tempo as mercadorias compradas da empresa vendedora ficaram nas instalações da empresa notificada;

16º) Qual o destino dado às mercadorias compradas da empresa vendedora. Fornecendo toda a documentação pertinente, tais como: notas fiscais de saída, comprovantes de recebimento dos numerários da venda e os respectivos lançamentos fiscais e contábeis;

17º) Apresentar a documentação relativa ao controle dos Estoques em relação às mercadorias compradas da empresa vendedora até sua saída;

18º) Informar a forma de pagamento das mercadorias adquiridas da empresa vendedora, apresentando todos os lançamentos contábeis, bem como os respectivos documentos que lhe serviram de suporte;”

Ante tais questionamentos, diga-se de passagem, que certamente não são possíveis de responder integralmente, não por vontade do fiscalizado, especialmente pelas regras atuais de comércio, marcadas pelo dinamismo, praticidade e ausência de burocracia, em que a velocidade é regra (aliada a numerosa quantidade de questionamentos), o contribuinte acaba por se ver em um labirinto, pior, sem saída.

Em decorrência do não atendimento integral dos questionamentos acima apontados, a Fazenda do Estado de São Paulo geralmente conclui sua empreitada constituindo auto de infração e imposição de multa contra o adquirente para cobrar deste o ICMS devido pelo vendedor, utilizando como fundamento legal, o artigo 11, Inciso X, do Regulamento do ICMS do Estado de São Paulo (Decreto nº 45.490/2000)[4] que prevê a “solidariedade” do adquirente no cumprimento da obrigação principal.

Ainda que demonstrado que houve o correto pagamento e recebimento da mercadoria, o Fisco Bandeirante tem como praxe constituir lançamento contra o adquirente de boa-fé, que terá que dispenderá esforços para afastar a exação indevidamente imposta contra ele, mesmo que não se aproveite do crédito decorrente da operação. Vale lembrar que o tema já se encontra com diversos casos semelhantes tramitando nas cortes brasileiras, que motivou inclusive súmula sobre o tema pelo Superior Tribunal de Justiça[5], fato que poderia trazer segurança jurídica ao contribuinte responsabilizado, o que, infelizmente, não se verifica na prática.

Dessa forma, o presente artigo pretende demonstrar que não só o Fisco Bandeirante impõe ônus demasiadamente custoso, excessivo e descabido ao adquirente, considerando a realidade do comércio atual, como também, acaba por violar os mandamentos do Princípio da Moralidade Tributária.


Brevíssimas Considerações sobre a Tributação. Sua importância e limites.

Na prática da atual experiência humana, a existência da vida em sociedade continua sendo organizada em forma de Estado, tendo por objetivo teórico ideológico de atender os desejos da coletividade, assegurando, outrossim, a dignidade do indivíduo no exercício das suas potencialidades, na medida de assegurar-lhe e garantir-lhe direitos.

A organização de um Estado, especialmente um Estado Democrático de Direito é complexa, necessita de uma estrutura de exercício e gestão de sua soberania, como a defesa de suas fronteiras e relação com outros Estado, organização e gestão dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e serviços que possam garantir as mencionadas potencialidades (saúde, educação, segurança, previdência e muito mais).

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Neste sentido, seria possível sustentar que na ausência de um Estado constituído, sem instituições regulares em funcionamento, seria abstruso de imaginar o completo exercício da “liberdade”, notadamente da propriedade, salvo aquelas mais básicas, como alimentos, agasalhos, pequenos instrumentos, as quais eventualmente possam ser apreendidas com as mãos.

Obviamente para se organizar dessa forma de Estado Democrático de Direito, há um custo que os indivíduos devem suportar, custo este que é preenchido a partir da tributação, que nada mais é do que uma transferência compulsória de uma parcela da propriedade de alguém para o Estado. 

Outro ponto que merece destaque é que o ônus que os cidadãos precisam arcar ante existência dos tributos deve possuir alguns limites, sob pena destas exações diretas e indiretas atingirem os valores necessários à satisfação vital do consumo, à manutenção do capital ou sobre uma parcela destinada a formação de novos capitais.

Vale relembrar também que “o poder de tributar envolve o poder de destruir”, conforme famosa frase do Juiz John Marshall, da Suprema Corte dos Estados Unidos, nos idos de 1819, na ocasião do julgamento do caso McCulloch v. Maryland, na qual destaca quão maléfica pode ser a tributação e seus reflexos.

Desta forma, reforce-se, o exercício da tributação deve ser orientado e ordenado, sob pena das exações invadirem os valores necessários à satisfação vital da máxima potencialidade que foi a origem e condição na formação do Estado.

Ou seja, se desrespeitados os limites estabelecidos pelo regramento jurídico de uma nação, estar-se-á maculada condições econômicas, jurídicas ou sociais, e em uma última análise, empobrecendo o Estado, que, sem a arrecadação de tributos, na qual regularmente abastece o Tesouro Público, o Estado não consegue atuar, provocando um maléfico ciclo vicioso.

A proteção do contribuinte e os limites da fiscalização tributária é questão que mereceu trabalhos em diversas nações[6]. Vale mencionar aqui o trabalho de Noberto Bobbio que alerta:

“Não se trata de saber quais e quantos esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados”[7].

No caso brasileiro, como se sabe, a organização jurídica fundamental é representada pela Constituição Federal de 1988, que cuidou de estipular os comandos que devem ser obedecidos na criação, instituição e arrecadação de tributos, nos termos das disposições do Sistema Tributário Nacional. Não podemos olvidar, outrossim, que além dos ordenamentos acima mencionadas, a nossa Carta Política, por ser dogmática e analítica, trouxe também outros princípios que a própria Administração Pública, especialmente a Administração Tributária, deve necessariamente se curvar.

Nas palavras de Klaus Tipke e Joachim Lang[8] é a Constituição Federal que define os fundamentos da ordem jurídica tributária. Outrossim, complementam, já em didática jurídica, que dentre os conteúdos didáticos do Direito Tributário, há delimitações, sendo que as “normas intervenientes na relação jurídico-tributária” compreendem divisões, as quais se encontram o Direito Processual Tributário  que por sua vez inclui-se “o processo de fixação e cobrança dos tributos assim como a tutela jurídica no Direito Tributário”. Nunca é demais lembrar que estas divisões são utilizadas pela didática jurídica apenas para compreensão do Direito[9] conforme balizam os ensinamentos de Renato Lopes Becho (2011, p.26).

Somados aos breves apontamos acima destacados, insta mencionar que nos alinhamos ao pensamento de Becho (2011, p. 44), que, diferente de parte da doutrina[10], compreende a finalidade do Direito Tributário não como a arrecadação, e sim como proteção do cidadão contra a tributação amorfa, inclusive em atenção as conquistas históricas na limitação ao poder de tributar[11].

Dessa forma, considerando que limites devem balizar a autuação estatal na cobrança de tributo, como também a Administração Tributária dever obedecer aos mandamentos principiológicos constitucionais[12], para atingimento da justiça fiscal, passemos a analisar o caso mencionado que vem sendo prática reiterada do Fisco Bandeirante, especialmente para averiguarmos se é tal exercício de investigação tributária respeita os desígnios do arquétipo constitucional. Senão vejamos.

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Sobre o autor
Luiz Felipe de Toledo Pieroni

Mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário - PUC-SP. Especialista em Direito Tributário – IBET. Especialista em Direito Internacional Tributário – IBDT. Advogado em São Paulo e sócio da BSPLAW advogados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIERONI, Luiz Felipe Toledo. Breve ensaio sobre o comportamento do fisco bandeirante contra o adquirente de mercadorias de contribuinte que perdeu a eficácia de sua inscrição estadual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5765, 14 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69565. Acesso em: 21 nov. 2024.

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