3 A REGRA MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DO IPTU – PARTE 2
3.1 Critério pessoal: O sujeito ativo do IPTU
O artigo 119 do Código Tributário Nacional dispõe que “o sujeito ativo da obrigação é a pessoa jurídica de direito público, titular da competência para exigir o seu cumprimento”. (BRASIL, 1966).
Ao conjugar o dispositivo com o artigo 156 da Constituição Federal, é possível concluir que o Município figura como sujeito ativo do tributo[8], desde que o imóvel cuja propriedade, domínio útil ou posse com “animus domini” esteja localizado em seu território[9].
Conforme o já destacado, a competência para a instituição do tributo deve ser respeitar os limites territoriais do Município. No entanto, há situações em que não há precisão nas demarcações do território municipal, o que pode acarretar conflito de competência. Isso se verifica quando há imprecisão do mapa cartográfico de modo a inviabilizar a correta localização das linhas divisórias dos Municípios contíguos.
Segundo HARADA, não há legislação que resolva a questão. O doutrinador compartilha situação prática por ele vivenciada na Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
Com o intuito de solucionar questão relativa ao duplo lançamento, o doutrinador orientou para que cada Município se atentasse à tributação da parcela do imóvel situado em seu território, adotando o critério de preponderância do ente em cujo território situava-se mais de 50% do imóvel objeto da tributação.
No entanto, o caso era mais complexo porque não havia perfeita delimitação de fronteira entre os Municípios envolvidos, razão pela qual orientou para que fosse realizado acordo entre os entes para nova demarcação de suas linhas divisórias. Não houve avanço na tentativa em razão da discordância por parte da Casa Legislativa de um dos Municípios. (2012, p. 153).
MACHADO ressalta a hipótese em que a tributação é realizada por Município incompetente. Observa que o pagamento ao fisco incompetente não impede a tributação pelo ente competente, tendo o contribuinte de realizar o pagamento e pleitear a restituição pelo pagamento indevido a quem pagou de forma equivocada. Registra, ainda, casos em que se opera a cobrança de forma concomitante, quando, então, caberá ao contribuinte propor ação de consignação em pagamento a fim de elidir a mora. (2017, p. 45).
3.2 Critério pessoal: o sujeito passivo do IPTU
Consoante o disposto no art. 34 do Código Tributário Nacional, “o contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular de seu domínio útil ou o seu possuidor a qualquer título”. (BRASIL, 1966).
Nesse sentido, conforme entendimento sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça (súmula 399), cabe ao Município, por meio de lei própria, estabelecer o sujeito passivo do IPTU, ou seja, escolher o contribuinte.
Segundo LOPES FILHO, não há na legislação nacional uma ordem de preferência para a escolha, cabendo verificar quem dentre as pessoas dispostas no dispositivo legal detém os poderes econômicos e jurídicos típicos de proprietário, elementos que revelam a capacidade contributiva e o critério material da regra matriz.
O doutrinador bem observa que não é adequado tributar o titular do domínio útil ou o possuidor apenas quando houver impossibilidade material ou jurídica de exigir o tributo do proprietário, pois, como dito, é necessário investigar quem, dentre os possíveis contribuintes, goza, de fato, da disponibilidade econômica sobre o imóvel. (LOPES FILHO, p. 46).
Logo, percebe-se que, embora a súmula editada pela Corte Especial confira a livre escolha ao ente tributante, esta está condicionada à investigação daquele que detém o domínio econômico sobre o imóvel, em prestígio ao princípio da capacidade contributiva.
No julgamento do REsp n. 47078/SP[10], relatado pelo Ministro Teori Albino Zavascki, é possível verificar que não há justificativa para que se tribute pura e simplesmente o proprietário do imóvel, sem que, contudo, seja apurado quem de fato detém a disponibilidade econômica da coisa.
A esse propósito, HARADA registra que o “sujeito passivo do IPTU só pode ser aquela pessoa física ou jurídica que detém a disponibilidade econômica do imóvel, seja ela possuidora (posseira), titular de domínio útil ou proprietária”. (2012, p. 118).
LOPES FILHO analisa caso envolvendo compromisso de compra e venda, chamando a atenção do leitor para que a situação em concreto seja vista com atenção, não se resolvendo a questão afeta à tributação de forma idêntica e imutável. É o que se observa no trecho em destaque:
[...] será válida a circunstância de tributação alternativa quando ambos denotem capacidade contributiva. É o que se verifica quando o promitente comprador está na posse do imóvel – ele tem direito real restrito à aquisição (art. 1417, Código Civil) e à sequela (art. 1418, Código Civil) – mas o promitente vendedor, mesmo sem posse direta, persiste como proprietário, tendo, ainda, domínio econômico da coisa, com base em seu direito real, consistente no pagamento do preço avençado, sobretudo quando há parcelamento do valor, ainda que os poderes de dono estejam, em boa medida, com o possuidor. Em situação, pois, em que há uma divisão do domínio estável da coisa, facultando a tributação tanto do proprietário (promitente vendedor) quanto do possuidor (promitente comprador).(2015, p. 54).
O trecho em destaque fornece exemplo no qual se nota a manifestação simultânea da capacidade contributiva tanto por parte do promitente vendedor quanto do promitente comprador, quando, então, o fisco poderá tributar qualquer um deles indistintamente.
No entanto, há situações em que não se apura a disponibilidade econômica do promitente vendedor, caso em que deverá ser excluído da tributação.
No tópico a seguir, faz-se o registro de outra hipótese envolvendo o compromisso de compra e venda, porém não se trata de tributação simultânea do promitente comprador e do promitente vendedor como contribuintes, mas sim de responsabilidade tributária.
Como já destacado, o artigo 34 do CTN dispõe que o possuidor a qualquer título também pode figurar como contribuinte do imposto. No entanto, é oportuno destacar o entendimento pacificado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que somente a posse com “animus domini” permite a tributação do possuidor.[11]
Sendo assim, por não se vislumbrar a posse com “animus domini” do locatário, não é possível considerá-lo contribuinte, mesmo que haja previsão em contrato. Dois são os motivos: 1) as convenções particulares relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos não podem ser opostas ao fisco (art. 123 do Código Tributário Nacional); e 2) o locatário, embora possuidor direto, não exerce posse com “animus domini”.
Por identidade de motivos, apuram-se algumas decisões excluindo a tributação em face do possuidor de bem público por força de contrato de concessão, permissão ou autorização.[12]
Por fim, é importante trazer situações em que se apuram mais de um proprietário, mais de um detentor do domínio útil ou mais de um possuidor, caso em que todos serão considerados contribuintes por força da solidariedade prevista no artigo 141, I, do Código Tributário Nacional. Isso se justifica porque há interesse comum na situação que constitui o fato gerador da obrigação.
3.3 Responsabilidade tributária
Dispõe o artigo 121, parágrafo único, inciso II, do Código Tributário Nacional, que o sujeito ativo do IPTU poderá lançar o imposto contra o responsável tributário.
Infere-se do artigo 128 do Código Tributário Nacional que a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa decorre de lei, sendo necessário que esta (a pessoa) esteja vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação.
Para melhor compreensão, transcrevemos o dispositivo:
Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação. (BRASIL, 1966).
De forma exemplificativa, citam-se os casos envolvendo compromisso de compra e venda, em que há a figura do promitente vendedor e a do promitente comprador. O tema demanda análise atenta porque o negócio jurídico pode apresentar peculiaridades diversas, tais como ser: 1) em caráter irrevogável e irretratável, mesmo diante do inadimplemento do compromissário comprador, com transmissão imediata da posse ao promitente comprador e averbação no registro de imóveis; 2) revogável e retratável, diante do inadimplemento, sem averbação ou com averbação, dentre outras situações.
Repita-se. O contexto deve ser apreciado com cautela, pois, nem sempre, o lançamento tributário em face de um ou do outro poderá ser considerado legítimo. A análise do domínio econômico da coisa revela-se importante para averiguar se a eleição do sujeito passivo foi feita de forma correta.
Com efeito, o art. 128 impõe requisitos para a atribuição de responsabilidade tributária a terceira pessoa, a saber: 1) existência de lei; e 2) que a pessoa esteja vinculada ao fato gerador da obrigação. Para o requisito de número dois, é necessário, ainda, que a lei defina se a responsabilidade do contribuinte restará excluída ou se permanecerá em caráter supletivo.
O tema costuma ser exemplificado pela doutrina com a citação do recurso especial n. 1.111.202-SP (2009/0009142-6), relatado pelo Ministro Mauro Campbell Marques, pois sujeito ao regime de recursos repetitivos. Abaixo segue a transcrição de sua ementa:
EMENTA. Tributário. Execução fiscal. IPTU. Contrato de promessa de compra e venda de imóvel. Legitimidade passiva do possuidor (promitente comprador) e do proprietário (promitente vendedor). 1. Segundo o art. 34 do CTN, consideram-se contribuintes do IPTU o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil ou o seu possuidor a qualquer título. 2. A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que tanto o promitente comprador (possuidor a qualquer título) do imóvel quanto seu proprietário/promitente vendedor (aquele que tem a propriedade registrada no Registro de Imóveis) são contribuintes responsáveis pelo pagamento do IPTU. Precedentes: REsp n. 979.970- SP, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJ de 18.6.2008;[...]. 3. “Ao legislador municipal cabe eleger o sujeito passivo do tributo, contemplando qualquer das situações previstas no CTN. Definindo a lei como contribuinte o proprietário, o titular do domínio útil, ou o possuidor a qualquer título, pode a autoridade administrativa optar por um ou por outro visando a facilitar o procedimento de arrecadação” (REsp n. 475.078-SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 27.9.2004). 4. Recurso especial provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ n. 8/2008.
Ao comentar a decisão, LOPES FILHO salienta que o entendimento firmado não se aplica a qualquer caso, pois a situação retratada na decisão supra destacada revelou existir lei municipal prevendo a responsabilidade tributária do promitente vendedor pelo fato de não ter sido diligente no cumprimento das obrigações acessórias, mormente quanto ao dever de informar as alterações aos registros competentes. Neste caso, um deles será cobrado na condição de contribuinte e ou como responsável.
O doutrinador ainda observa que, em determinados contextos, é possível que tanto o promitente comprador quando o promitente vendedor revelem capacidade contributiva, caso em que se opera uma divisão do domínio estável da coisa, podendo o fisco tributar tanto um quanto o outro. Isto se verifica, por exemplo, quando o promitente comprador possui o imóvel e o promitente vendedor, mesmo sem a posse, fica mantido como proprietário por conta do seu direito real relativo ao pagamento do preço avençado. (2015, p. 53/54).
Nota-se, portanto, que as situações acima são distintas. Como já visto, a sujeição passiva tributária deve ser analisada em cotejo com a capacidade contributiva. Se, a título de exemplo, o proprietário (promitente vendedor) já não revele mais esta capacidade, a tributação só se relevará correta em face do promitente comprador (possuidor com “animus domini”).
O Superior Tribunal de Justiça proferiu algumas decisões em que se revela possível realizar a distinção nos casos analisados, preservando, por isso, a técnica necessária à identificação do sujeito passivo.
É o que se observa no Resp 1204294, também de relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques. Abaixo seguem alguns trechos da ementa para melhor compreensão da distinção realizada em face do Resp 1111202/SP.
[...] Contornos específicos, que fazem destacar-se um caso particular na massa de demandas repetitivas, reclamam detido pronunciamento jurisdicional, como forma mesmo de aperfeiçoar o regime estabelecido na Lei n. 11.672/2008” 3. Além disso, no que se refere ao acórdão proferido em sede de apelação (fls. 86/94), o Tribunal de origem, entre outros fundamentos, entendeu que, ainda que o promitente comprador não seja proprietário em virtude da ausência de registro da escritura de compra e venda no Cartório de Registro de Imóveis, ele o tornou em razão da usucapião, explicitando que “por força de promessa de compra e venda celebrada em caráter irrevogável e irretratável, com transmissão imediata da posse, lavrada no ano de 1979, devidamente averbada no competente cartório de registro de imóveis”, sendo que, “de tão longínqua a data de formação do contrato, já se exauriu, há muito, o prazo da usucapião”, razão pela qual deve ser afastada a responsabilidade do promitente vendedor....
Resta clara a compreensão dos julgadores porque tiveram a percepção de ter inexistido no caso concreto a repartição do domínio econômico da coisa, pelo fato de, na prática, já haver compra e venda aperfeiçoada.
Avançando mais um pouco no tema, vale destacar que a posse “a qualquer título”, prevista no art. 34 do Código Tributário Nacional, também demanda análise em cotejo com o domínio econômico da coisa. A Corte Especial tem sido categórica no sentido de que a posse para fins de tributação só pode ser a que revele “animus domini”.
A esse propósito:
Ementa: TRIBUTÁRIO. IMÓVEL DE DOMÍNIO DA UNIÃO. CONCESSÃO DE USO. IPTU. NÃO INCIDÊNCIA. CESSIONÁRIO. POSSE SEM ANIMUS DOMINI. PRECEDENTES. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, o bem imóvel de domínio da União, ocupado por cessionária de uso de área, não se sujeita a incidência de IPTU, haja vista que a posse, nessa situação, não é dotada de animus domini. 2. O cessionário do direito de uso não é contribuinte do IPTU, haja vista que é possuidor por relação de direito pessoal, não exercendo animus domini, sendo possuidor do imóvel como simples detentor de coisa alheia. 3. Precedentes: AgRg no Ag 1207082/RJ, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, Primeira Turma, DJe 14/04/2010; AgRg no Ag 1129472/SP, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJe 01/07/2009; AgRg no REsp 947267/RJ, Rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ18/10/2007; REsp 681406/RJ, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, DJ 28/02/2005; AgRg no Ag 1243867/RJ, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 12/03/2010; AgRg no REsp 885.353/RJ, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 06/08/2009; REsp 933.699/RJ, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe 28/03/2008; REsp 325489/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 24/02/2003. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. STJ - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL AgRg no REsp 1034641 RJ 2007/0044985-2 (STJ)
Por identidade de motivos, não se afigura correta a tributação do locatário, ainda que haja previsão contratual, não só em razão da inocorrência de posse com “animus domini”, mas também em razão do prescrito no art. 123 do Código Tributário Nacional.[13]