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O poder vinculante das súmulas e a impossibilidade da identificação estreita das causas submetidas à Justiça

05/07/2005 às 00:00
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            O tema "súmulas vinculantes" é instigante, posto que envolve em larga escala aspectos jurídicos, mais especificamente constitucionais. Tal força vinculante foi inserida no direito positivo através da recém editada Emenda Constitucional nº45/2004, a qual introduziu o art. 103-A à Constituição Federal de 1988. Desde então, surgem divergências em série acerca das possíveis conseqüências da agregação do poder vinculante às súmulas no sistema jurídico atual.

            Ante tal polêmica, o operador do direito tem o dever de se posicionar a respeito do tema, isto é, os especialistas do Direito têm a obrigação de alertar à sociedade sobre as possíveis conseqüências do advento deste instituto.

            Com o objetivo de evitar incompreensões, mister se faz conceituar as chamadas súmulas, expondo seus fundamentos e características.

            Na verdade, a palavra súmula é originária do latim summula, significando sumário, ou seja, resumo. (1)

            Genericamente, como define De Plácido e Silva, a súmula seria algo que explica determinado teor ou o conteúdo integral de uma coisa de maneira "abreviadíssima", isto é, a súmula de uma sentença ou acórdão, é o resumo da própria sentença ou acórdão. (2)

            Juridicamente, súmulas são enunciados jurisprudenciais que refletem entendimentos já pacificados em determinados tribunais, editados em numeração seqüencial, servindo como instrumento de contribuição para o convencimento do magistrado nas futuras soluções processuais.

            Cumpre conceituar, antecipadamente, o objeto específico do estudo, isto é, expor claramente em que consistem de fato as súmulas vinculantes.

            A súmula com o efeito vinculante é a modalidade sumular que não possui apenas o caráter de orientação, pois obriga os demais órgãos do Judiciário a seguirem determinada interpretação emitida pelo Supremo Tribunal Federal.

            Pode-se dizer objetivamente que as súmulas vinculantes, no ordenamento brasileiro, na verdade, são pronunciamentos jurisdicionais, oriundos de julgados reiterados sobre determinada matéria pelo Supremo Tribunal Federal, que condicionam as decisões dos demais magistrados, bem como os órgãos da administração pública direta e indireta, a seguirem a mesma linha de entendimento.

            Com o advento das súmulas vinculantes, o juiz, ao se deparar com causas referentes a matérias sumuladas, deixará a sua atividade solitária de decidir o direito concretamente, passando a ser um mero aplicador "automático" das súmulas, com risco de desdenhar o direito, isto porque não se pode determinar uma direção interpretativa da lei para que se aplique a todo o leque de possibilidades de casos concretos.

            É clara a impossibilidade da identificação estreita de causas submetidas à Justiça, pois a mesmas serão, no máximo análogas, identificando-se em alguns pontos e divergindo em outros. (3)

            Nesse sentido, o Mestre Raimundo Bezerra Falcão enuncia:

            Efetivamente, a esperança de encontrar fatos iguais é, na quase totalidade das vezes, uma vã esperança quando se cogita de fatos da vida dos homens. Essa exigência de nova e boa interpretação dos fatos de relevância quando atentamos para a verdade de que a primeira solução pode ter sido errada, de sorte que continuar aplicando pode implicar apenas uma continuação do erro antes perpetrado. (4)(Grifo Nosso).

            Trata-se de dever penoso e de caráter duvidoso encontrar única linha de interpretação para inúmeros casos, pois em apenas uma decisão se atravessam argumentos de fato e de direito, questões principais e acessórias, ações e omissões.

            Não raramente, a decisão só pode ser compreendida ante as peculiaridades de cada caso, devido a isto, aplicá-la a outros processos em que surgem novas características pode levar a graves distorções. (5)

            O poder vinculante das súmulas desconsidera a singularidade de cada caso específico, partindo para uma universalização conceitual, impedindo a evolução hermenêutica.

            Contudo, sabe-se que, no momento em que incide no caso concreto, a norma jurídica torna-se compreensível em um novo sentido, passa a fazer parte de um campo específico, que inclui o fato dentro de um contexto. O Direito ganha concreção, realiza-se. (6)

            Observa-se que a súmula nasce através de um precedente judicial decidido após a análise de um caso concreto. Assim, não é coerente que tal decisão se transforme em um padrão, quando se sabe que do mesmo modo que o precedente se vinculou ao seu caso concreto, as futuras decisões judiciais devem se conectar aos respectivos episódios concretos.

            Ressalte-se que nenhuma regra de interpretação deve pretender fazer do sentido algo único e imutável, pois a interpretação deve ser direcionada no rumo dos seus legítimos objetivos, não pretendendo jamais possuir sentidos esgotáveis. (7)

            Nesse prisma, assevera Jorge Luiz Souto Maior:

            Interpretar é extrair o sentido da lei no caso concreto

. Há vários sentidos possíveis dentro do ordenamento – muito embora existam limites a respeitar daí porque se falar em interpretação possível. Assim, se juízes chegam a conclusões distintas, e seus fundamentos são justificáveis, racionais e obedecem aos princípios gerais, é porque o ordenamento comporta que essa variedade de sentidos venha a existir. (8)(grifo nosso).

            Nessa linha, qualquer ação que tenha o escopo de impor uma interpretação rígida, absoluta e de caráter genérico da lei, corresponde a comandar uma estagnação que não é natural do Direito.

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            A utilização conjunta de todos os métodos hermenêuticos faz com que de um único texto se extraia uma pluralidade de resultados. Compete ao aplicador do direito "educar" a interpretação para que, diante das alternativas de sentido, tenha-se a opção por aquele mais adequado ao interesse social. (9)

            Atenta-se que os fenômenos podem ser observados em sua singularidade e generalidade. Aquela concentra as suas manifestações no eixo visível ao entendimento, contrapondo-se à generalidade, a qual vulgariza o objeto e torna superficial a discussão fundamental.

            Para que o magistrado execute seu papel de forma adequada, deve analisar cada caso concreto, levando em conta cada situação, pois a generalização não se ajusta à função de julgador.

            Aplicar uma norma significa pensar conjuntamente o caso e a lei, a união da norma não unívoca com a realidade de ordenar, isto é, o aplicador deve pensar conjuntamente para descobrir o significado do dispositivo, posto que o sentido de algo geral de uma norma jurídica, só pode ser fundamentado e determinado na sua concretização. (10)

            Logo, a obrigatoriedade da uniformização do entendimento do Supremo Tribunal Federal obedece a uma lógica de generalização, abstraindo a aplicação da norma após analisar as peculiaridades do caso particular.

            Interessante expor o ensinamento de João Baptista Herkenhoff:

            Caberá ao juiz, como cientista do direito, como sociólogo, no desempenho de um poder político, fazer a justiça do caso individual, vencendo, quer a insensibilidade da lei para acudir a situações particulares imprevistas, quer o seu atraso para adaptar-se à emergência de fatos novos. (11) (Grifo nosso).

            Ora, a própria lei termina sua função na generalidade de comando, haja vista a incapacidade de prever todos os possíveis fatos e situações da vida do homem.

            Com escopo de ilustrar as idéias trazidas, cabe apresentar o que ensina o Prof. João Maurício Adeodato sobre o assunto:

            Se o direito é um fenômeno empírico, então, a norma jurídica não espelha a realidade mas fornece-lhe apenas uma estruturação lógica de que o direito lança mão para fazer valer suas decisões e fornecer presteza e segurança a elas. Isso lhe facilitará a obtenção da legitimidade, aumentando o número de casos em que o direito é espontaneamente cumprido. (12)

            Percebe-se, então, que o Direito, mais do que a lei, é a composição da lei e do fato, por esse motivo, uma vez conhecida a norma, o fato deve ser observado com grande atenção. (13)

            De fato, ante a ausência das súmulas vinculantes, o que se observa é uma significativa quantidade de entendimentos diversificados nos órgãos jurisdicionais sobre matérias consideradas individualmente, o que, não afigura qualquer anormalidade ante a heterogeneidade cultural do Brasil.

            Tão-somente os casos concretos a vista do magistrado é que poderão dar a medida adequada de como a lei deve ser aplicada, sobretudo porque o juiz deve considerar os costumes de cada local.

            O Brasil, apesar de possuir unidade de idioma, tem povos diversificados, várias religiões, raças e culturas. Não há como se aplicar um direito imóvel, também por este motivo o legislador precisa de liberdade para julgar.

            Logo, não é possível estabelecer uma direção isolada para a interpretação da norma, já que está já possui na sua essência generalidade em razão da amplitude de possibilidades factuais da vida humana.

            A inserção das súmulas vinculantes possui um preço muito elevado, não é coerente sacrificar o direito do indivíduo de alcançar concretamente o bem jurídico relacionado ao seu caso específico com o intuito de desafogar o Judiciário, pois não se resolve um problema criando outro de maior gravidade.


Notas

            01

SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. 1ª ed. Rio de Janeiro:Forense, 1987, 3v em 4, p.297.

            02

SILVA, De Plácido, loc. cit.

            03

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 186.

            04

FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p.262.

            05

MALLET, Estevão. Algumas linhas sobre o tema súmulas vinculantes. Consulex, Brasília, DF, ano 1, n.11, p.35, nov. 1997.

            06

SALDANHA, Nelson. Ordem e Hermenêutica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 295.

            07

FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 266.

            08

MAIOR, Jorge Luiz. Súmulas com efeito vinculante. LTR, São Paulo, v.61, n.06, jun, 1997.

            09

FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 99.

            10

QUEIROZ, Cristina. Interpretação Constitucional e Poder Judicial. Lisboa: Editora, 2000, p. 121/122.

            11

HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito. 8º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 108.

            12

ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 26.

            13

CARNELUTTI, Francesco. Arte do Direito. Campinas: Edicamp, 2003, p. 36.
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Sobre a autora
Paloma Wolfenson Jambo

Defensora Pública do Estado de Pernanbuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JAMBO, Paloma Wolfenson. O poder vinculante das súmulas e a impossibilidade da identificação estreita das causas submetidas à Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 730, 5 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6961. Acesso em: 29 mar. 2024.

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