O Tribunal Penal Internacional entrelaçado com os Direitos Humanos

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17/10/2018 às 13:48
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CAPITULO 5 - O TPI e a Constituição da República Brasileira.

Enfatize-se que a Constituição de 1988, marco jurídico da institucionalização dos direitos humanos e da transição democrática no país, ineditamente consagrou o primado do respeito aos direitos humanos como paradigma propugnado para a ordem internacional. Esse princípio invoca a abertura da ordem jurídica brasileira ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, exige nova interpretação de princípios tradicionais, como a soberania nacional e a não intervenção, impondo a flexibilização e relativização desses valores. Se a prevalência dos direitos humanos é princípio a reger o Brasil no cenário internacional, conclui-se que se admite a concepção de que os direitos humanos é tema global para a CF/88. Trata-se um tema de legítima preocupação e interesse da comunidade internacional.

Os princípios contêm primazia às regras e resta inequívoco o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que a proibição à execução da pena de caráter perpétuo é voltada somente à lei interna do país, não competindo ao Brasil impor este entendimento no que toca às outras jurisdições independentes.

O Texto democrático inova em relação às demais constituições quando estabelece um regime jurídico diferenciado aplicável aos tratados internacionais de direitos humanos. Por força do art. 5º, § 2º da CF, todos os tratados internacionais de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O quorum qualificado introduzido pelo § 3º do mesmo artigo (fruto da Emenda Constitucional nº. 45/2004), ao reforçar a natureza constitucional dos tratados de direitos humanos, vem a adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a “constitucionalização formal” dos tratados de direitos humanos no âmbito jurídico interno. Nesta hipótese, os tratados internacionais de direitos humanos formalmente constitucionais são equiparados às emendas à Constituição, isto é, passam a integrar o Texto Constitucional. Conclui-se, que a Constituição de 1988 acolheu um sistema misto, que combina regimes jurídicos diferenciados: um aplicável aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos e outro aplicável aos tratados internacionais tradicionais.

A conclusão da existência desse sistema diferenciado em relação aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos é uma consequência de uma interpretação axiológica e sistemática da própria Constituição, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compensação do fenômeno constitucional. Com esse raciocínio se conjuga o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais, particularmente das normas concernentes a direitos e garantias fundamentais, que hão de alcançar a maior carga de efetividade possível. Já em favor da natureza constitucional dos direitos enunciados nos tratados internacionais, adicione-se também o fato de o processo de globalização ter implicado a abertura da Constituição à normatização internacional. Tal abertura acarreta a incorporação de preceitos ao bloco de constitucionalidade. Em suma, todos esses argumentos se reúnem no sentido de endossar o regime constitucional privilegiado, conferido aos tratados de proteção de direitos humanos.

Quanto ao impacto jurídico do Direito Internacional dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro, acrescentem-se que os direitos internacionais, por força do princípio da norma mais favorável à vítima, que assegura a prevalência da norma que melhor e mais eficazmente proteja os direitos humanos, apenas vêm a aprimorar e fortalecer, jamais a restringir ou deliberar, o grau de proteção dos direitos, consagrados no plano normativo constitucional. A sistemática internacional de proteção vem, ainda, a permitir a tutela, a supervisão e o monitoramento de direitos por organismos internacionais.

Em data de março de 2003, por ordem do ex Presidente Lula, o Ministro Celso Amorim chefiou a delegação brasileira à sessão inaugural do Tribunal Penal Internacional e, logo após, fez a seguinte avaliação:

A entrada em operação do Tribunal Penal Internacional constitui um passo encorajador [...]. Ao comparecer a sua inauguração, em princípios de março, pude não somente cumprimentar a brasileira Sylvia Steiner, eleita Juíza do Tribunal, como expressar o apoio do Governo brasileiro ao aparelhamento do direito internacional para reduzir a margem de impunidade para perpetradores de crimes contra a humanidade. É um instrumento importante, cuja aplicação não deve comportar restrições ou tratamentos excepcionais·.

Passemos, pois, a análise da questão de sua ratificação e o direito interno brasileiro.

Trata-se a ratificação de forma de expressão de consentimento sucessiva à assinatura do tratado, ou seja, denota a manifestação de assentimento da autoridade incumbida para tanto, revelando, pois, externamente a vontade de obrigar-se em seara internacional. Confere assim uma maior segurança no que tange as relações internacionais, propiciando, dessa feita, um maior controle democrático ao Estado visto sob o aspecto interno e externo.

As nuances preliminares a serem destacadas concernem à entrega de nacionais pátrios ao Tribunal Penal Internacional, disposição essa tipificada no art. 89, parágrafo primeiro, do Estatuto de Roma; segundo a qual o Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de um cidadão a qualquer Estado em cujo território a mesma se encontre, e solicitar a cooperação estatal no que toca a detenção e entrega da pessoa em tela, sendo, pois obrigatório aos Estados-partes o dever de prestar satisfação ao Tribunal em face de tais pedidos, em consonância com o Estatuto bem como com o seu direito interno.

Há que se atentar que o proibido pela Constituição da República Federativa do Brasil é a extradição de brasileiro nato e não a entrega. Entrega não se confunde com extradição. A entrega de uma pessoa (qualquer que seja a sua origem: nacionalidade e lugar onde resida) ao Tribunal Penal Internacional consiste ao mero repasse do indivíduo a uma jurisdição estrangeira competente para julgá-lo e puni-lo, se necessário for. Em outras palavras: submete-se o acusado ou condenado à própria justiça, ainda que sob os auspícios de uma instância internacional.

Antonio Cassese, com a maestria que lhe é peculiar, expõe acerca da extradição de nacionais, ressaltando que ao longo dos anos não foi admitida pela comunidade internacional, pelo medo de que a entrega não garantisse os direitos do individuo em questão, cessando, contudo, com a criação do Tribunal Penal Internacional:

O caráter ultrapassado dessa tradição jurídica revelou-se por meio das atividades dos Tribunais Penais Internacionais. Muitas vezes, quando o procurador do Tribunal Penal Internacional de Haia pedia ao Estado em questão que lhe entregasse um de seus cidadãos acusado de crimes internacionais, o Estado entrincheirava-se através de sua Constituição que lhe proibia a extradição. Essa recusa é ainda mais absurda porque acabava garantida a impunidade de pessoas acusadas de crimes muito graves. A resposta constante dos juízes internacionais foi dupla. Primeiro, em virtude de um bem consolidado princípio de direito internacional, os Estados não podem invocar sua legislação, nem mesmo constitucional, para se furtarem a uma obrigação internacional. Essa objeção é, obviamente, tradicional. Outra, ao contrário, é inovadora. Consiste em dizer que as regras constitucionais em questão deveriam ser aplicadas no máximo às relações entre Estados soberanos, e não às relações entre um Estado e uma jurisdição penal internacional. As relações entre Estados são baseadas no princípio de igualdade formal; já entre um Estado e uma jurisdição internacional inspiram-se, ao contrario, no princípio hierárquico. Por conseqüência, enquanto entre Estados podemos falar de extradição do acusado, entre um Estado e um Tribunal Penal Internacional seria mais adequado falar em entrega do acusado. Acrescentamos que, em qualquer caso, os direitos do acusado são plenamente respeitados diante das instâncias judiciárias internacionais, e, portanto a proteção do Estado nacional deixa de ter sentido. [53]

Resta consagrado no texto constitucional brasileiro, nas disposições de seu art. 5º, LI e LII, que “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”; e também que: “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”. Tais dispositivos constituem direitos fundamentais dos países, constituem, pois, cláusulas pétreas e não podem ser modificados por legislação infraconstitucional face ao seu elevado grau de estabilidade dentro do sistema.

Já o instituto da extradição, ensina-nos Jacob Dolinger: “é o processo pelo qual um Estado atende ao pedido de outro Estado, remetendo-lhe pessoa processada no país solicitante por crime punido na legislação de ambos os países, não se extraditando, via de regra, nacional do país solicitado”.[54]

Por tais razões é que o Estatuto de Roma, levando em conta disposições semelhantes de vários textos constitucionais modernos faz diferença ontológica entre os termos entrega e extradição. Nas precisas palavras de Chapus de Medeiros: “a diferença fundamental consiste em ser o Tribunal uma instituição criada para processar e julgar os crimes mais atrozes contra a dignidade humana de forma justa, independente e imparcial. Na condição de órgão internacional, que visa realizar o bem estar da comunidade mundial, porque reprime crimes contra o próprio Direito Internacional, a entrega do Tribunal não pode ser comparada à extradição”. [55]

Daí estar correta a assertiva de que o ato de entrega é aquele realizado pelo Estado a um tribunal internacional de jurisdição permanente, diversamente do instituto da extradição, que é feita de um Estado a outro, a pedido deste, em plano de absoluta igualdade em relação a indivíduo nesse último processado ou condenado e lá refugiado. Em outras palavras: a extradição envolve sempre dois Estados soberanos, sendo ato de cooperação entre ambos na repressão internacional de crimes, diversamente do que o Estatuto de Roma chamou de entrega, em que a relação de cooperação se processa entre um Estado e o próprio Tribunal.

Já no que concerne a pena de prisão perpétua, outro instituto de grande celeuma por trazer em seu bojo aparente antinomia entre a Lei Maior do País e o disposto no Estatuto de Roma.

Dispõe o Tratado de Roma em seu art. 77, b:

  • Se o crime for extremamente grave e considerando as circunstancias pessoais do condenado caberá prisão perpétua.
  • Dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 5º, XLVII: “Não haverá penas: de caráter perpétuo”.

Vale ressaltar que a respectiva previsão constitucional pátria nem mesmo pode ser alterada por emenda constitucional, tendo em vista tratar-se de cláusula pétrea, direito e garantia fundamental do indivíduo. E já que o Estatuto de Roma não admite ratificação, assinatura e adesão com reservas pelos países o problema parece insolúvel. Mas afirmamos: tal conflito é meramente aparente e não real.

A origem da regra esculpida pelo Tribunal Penal Internacional descende aos Tribunais de Nuremberg e Tóquio, onde se estabeleceu a pena de morte, tendo continuidade aos Tribunais ad hoc para a antiga Iugoslávia e Ruanda, que previam não a pena de morte, mas a pena de prisão perpétua, em uma clara gradação da pena de morte dos Tribunais de Nuremberg e Tóquio. Com um rigor ainda menor (gradação), chega-se ao Tribunal Penal Internacional onde a pena de prisão perpétua ficou restrita a crimes de extrema gravidade, e ainda assim com a possibilidade de revisão decorrida 25 ( vinte e cinco) anos, nos termos do art. 110 do Tratado de Roma.          

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Vamos finalizar a análise do tema com o estudo do rol do artigo 4º da CR que preceitua que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

  • Autodeterminação dos povos;
  • Não intervenção; É o respeito à soberania dos povos.
  • Igualdade entre os estados; Essa igualdade entre os estados é exatamente o supedâneo de validade da imunidade de jurisdição. O que dá legitimidade a imunidade de jurisdição é essa igualdade entre os estados. O estado acreditante, aquele que envia a representação diplomática não se submete ao poder de império jurisdicional perante o estado acreditado.
  • Defesa da paz; forças brasileiras estão no Haiti promovendo a da paz.
  • Solução pacífica dos conflitos; o Brasil um país pacifista.
  • Repúdio ao terrorismo e ao racismo;
  • Cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
  • Concessão de asilo político.

A respeito do asilo político ou refúgio há que se ressaltar que o asilo e o refúgio têm caráter humanitário, só que há distinções técnicas entre um e entre outro. A concessão do status de refugiado é ato declaratório. O refúgio tem caráter declaratório. A condição de refugiado precede o seu reconhecimento. Ou seja, se enquadra em algum ponto da definição básica e internacionalmente consagrada de refugiado. Tanto as convenções internacionais quanto a Lei 9.474/97 consideram refugiados todos aqueles que tenham fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Há um elemento subjetivo que é o temor e um objetivo que é a perseguição. Já a outorga da condição de asilado é ato constitutivo. O asilo tem natureza de ato constitutivo. Sua concessão é uma decisão política. É um ato de soberania. O ato que concede o asilo prescinde e independe de motivação e exposição de critérios.  O estado asilante não se compromete com princípios fundamentais do refúgio, por exemplo, o da não devolução. Por conseguinte o grau de proteção no asilo é mais brando.

A Constituição Federal de 1988, nos termos do artigo 1.º, inciso III, impõe o valor da dignidade humana. “A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional”.

            O artigo 5.º da Constituição Federal de 1988 afirma que os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Incluiu, pois, entre os direitos protegidos pela Constituição Federal, os direitos determinados nos tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatário.

Ao considerarem-se, portanto, os tratados internacionais, ratificados pelo Estado brasileiro, podem listar inúmeros direitos neles enunciados, que passam a fazer parte do Direito brasileiro. Esses direitos são declinados não de maneira taxativa, mas de forma exemplificativa. Logo, o Direito Internacional dos Direitos Humanos torna abrangente o universo dos direitos constitucionais assegurados.

Conclui-se, pois, que os tratados internacionais de direitos humanos garantem sua imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo preceitos que sejam menos favoráveis à proteção dos direitos humanos. Em todas essas hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados de direitos humanos apenas vêm a aprimorar e fortalecer, nunca restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo constitucional.

Isto posto, a nosso sentir, tendo em vista a argumentação por nós aqui esposada consideramos como altamente superáveis os entraves constitucionais brasileiros para a validez do Estatuto de Roma, dentre os quais foram pontuados a ausência de coisa julgada, a prisão perpétua, a extradição de nacionais e estrangeiros, a imprescritibilidade de crimes e a ausência de imunidade de determinados agentes públicos. Ratificando o Tratado de Roma, o Brasil cumpre a sua vocação de Estado Democrático de Direito que preserva, acima de tudo, a dignidade dos que estão englobados em suas fronteiras, numa sociedade livre, justa e solidaria, que visa promover o bem de todos, regendo-se em suas relações internais pela obediência aos princípios que dão primazia aos Direitos Humanos e defesa da paz para um maior progresso da humanidade.

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Sobre o autor
Paula Naves Brigagao

Advogada.Mestre em Direito das Relações Internacionais.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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