8. Possibilidade de fixação de indenização por dano processual no bojo da própria decisão do processo administrativo ou judicial
O art. 27, caput e parágrafos, estatui que a decisão do processo, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, “poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos”, devendo ser motivada e proferida exclusivamente após manifestação das partes sobre o seu cabimento e valor, cabendo a celebração de “compromisso processual” entre os envolvidos voltado a prevenir ou regular a compensação. (BRASIL, 2018, p. 1)
O dispositivo impacta com maior relevância na esfera administrativa, pois, no âmbito judicial, já havia institutos voltados à composição do dano processual, como a indenização por litigância de má-fé (arts. 79 a 81, art. 142 e art. 536, § 3º, NCPC) e a multa por ato atentatório à dignidade da Justiça (art. 77, §§ 1º e 2º,art. 161, parágrafo único, art. 334, § 8º, art. 772, II, art. 777 e art. 903, § 6º, NCPC), os quais, por expressa disposição legal, deveriam ser liquidados nos mesmos autos da ação principal (art. 777, NCPC). No plano administrativo, contudo, previsão semelhante não existia, de modo que, agora, pode o administrador fixar o montante da indenização, de modo a evitar prejuízos “anormais” ou “injustos” resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos. (BRASIL, 2015, p. 1; BRASIL, 2018, p. 1)
O “compromisso processual” a que se refere o § 2º, à evidência, é prévio à ocorrência do dano, visto que a lei o admite para “prevenir” ou “regular” a reparação pelo dano moral ou material decorrente do processo. (BRASIL, 2018, p. 1) Não se trata, portanto, da simples transação para a composição do dano processual, mas de um negócio processual envolvendo a regulação da conduta das partes no curso do processo, à semelhança do que já ocorre no âmbito judicial pelas regras definidoras dos atos de litigância de má-fé e de atos atentatórios à dignidade da Justiça (note-se que a lei fala em compromisso “processual”, e não em compromisso para a composição do “dano processual”). Trata-se de instituto que visa a desestimular a prática de atos incompatíveis com a boa-fé e o dever de cooperação das partes no curso do processo administrativo, visando à solução da crise de direito material na esfera administrativa de modo efetivo e consentâneo com a verdade dos fatos, em atendimento ao princípio constitucional da eficiência e da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII c/c art. 37. caput, CF/88).
9. Responsabilidade pessoal do agente público por decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro
Em que pese a jurisprudência já admitisse a responsabilização nesses casos, o art. 28 da Lei de Introdução passa a dispor que “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.” (BRASIL, 2018, p. 1) A interpretação sistemática, levando em conta o novo regime de motivação das decisões judiciais e administrativas e o dever de fixação de norma de transição nos casos em que obrigatório, instituído pelos novos dispositivos da LINDB, leva à conclusão de que, por “erro grosseiro”, deve ser compreendida: a) a omissão do agente quanto à consideração das consequências práticas da decisão em caso de julgamento com base em valores abstratos (art. 20, caput), inclusive com demonstração da necessidade e adequação da medida imposta, em face das possíveis alternativas (art. 20, parágrafo único); b) a indicação expressa das consequências jurídicas e administrativas em caso de invalidação do ato público (art. 21, caput); c) a consideração das dificuldades e obstáculos reais do gestor público, no caso de decisões que envolvam normas relativas à administração pública (art. 22); d) a desconsideração da interpretação vigente à época da edição do ato administrativo invalidado, com violação ao princípio tempus regit actum (art. 24); e, por fim, e) a celebração de compromisso administrativo voltado a eliminar irregularidade, incerteza ou situação contenciosa na aplicação de direito público com a concessão de desoneração permanente de dever ou condicionamento reconhecidos por orientação geral (art. 26). Em todo caso, porém, devem ser levadas em consideração as dificuldades e impossibilidades teóricas e práticas ao atendimento dos referidos requisitos pelas autoridades julgadoras nas esferas administrativa e judicial, consoante já referido nos comentários acima efetuados em relação aos novos requisitos impostos pela LINDB com a reforma introduzida pela Lei n.º 13.655/2018.
Por medida de segurança jurídica, e para resguardar a autonomia dos agentes públicos incumbidos de decidir as questões jurídicas no âmbito administrativo e judicial, a responsabilização por “erro grosseiro”, nas hipóteses acima elencadas, somente se pode verificar quando, a despeito de expressamente provocada a se manifestar relativamente à alegada omissão, a autoridade se negar a incluir expressamente o elemento indicado na motivação do julgado, o que, no caso do processo judicial, somente ocorre quando silente a autoridade judicial após a propositura de embargos de declaração e, no âmbito administrativo, quando não suprida pelo administrador a omissão apontada em pedido de reconsideração ou requerimento administrativo inicial ou suplementar, indicando expressamente a omissão que se entenda haver ocorrido, o que pode ser efetuado, inclusive, perante os advogados públicos ou outros agentes incumbidos da edição de pareceres técnicos. Isso porque, ante a complexidade inerente ao ato de julgar e o grande número de processos existentes nos diferentes níveis de julgamento nas esferas administrativa e judicial, é humanamente impossível decidir, sob a contínua pressão por celeridade, sem que, jamais, algum pormenor venha a passar despercebido, sendo que a falibilidade humana, nesse ponto, é o fundamento reconhecido universalmente para a instituição do duplo grau de jurisdição nas diferentes esferas de atuação do Poder Público em todas as nações civilizadas e nos principais organismos internacionais.
Se a parte interessada, a despeito de formalmente cientificada da decisão, não aponta a omissão do julgador quanto a qualquer das novas exigências impostas pela Lei de Introdução, mas, ao revés, prefere provocar a superior instância pela via recursal, eventual reforma ou invalidação do julgado não permite a condenação da autoridade por “erro grosseiro”, sob pena de instituir-se uma responsabilização por aspectos próprios do processo decisório, tanto que instituído regime permanente de revisão da decisão, o que fragilizaria a autonomia funcional do julgador, constituindo meio de intimidação para o livre exercício da jurisdição. Se o sujeito interessado, por sua vez, deixa de recorrer da decisão, produzindo a sua preclusão e inalterabilidade no âmbito administrativo ou judicial, novamente, não há que se falar em “erro grosseiro” da autoridade, que, a despeito da ocorrência de eventual equívoco, agora, não mais tem a faculdade jurídica de alterar o que foi decidido (diferentemente do que ocorre com os atos administrativos em geral, que podem ser modificados a qualquer tempo, em função do princípio da autotutela).
Vale dizer: no âmbito do processo, seja ele administrativo ou judicial, o instituto da preclusão impõe restrições à correção de vícios decisórios, razão pela qual a responsabilidade pela decisão equivocada tem de ser compartilhada entre julgador, sujeitos interessados e todos os demais agentes que participem do processo. Não por outro motivo o sistema encontra-se estruturado em diferentes níveis hierárquicos de julgamento, com previsão geral da possibilidade de revisão do que foi decidido, tanto pela própria instância prolatora da decisão quanto pelas instâncias recursais. A eventual omissão do julgador quanto a requisitos de fundamentação, por vezes complexos e de difícil verificação, tal como instituídos nos novos dispositivos da LINDB, não pode ser validamente utilizada para caracterizar “erro grosseiro” quando as próprias partes interessadas – as quais, melhor do que qualquer outro sujeito, podem visualizar os aspectos relevantes da discussão – se mantiveram silentes quanto a eventuais pontos de interesse. Até mesmo nos casos em que a decisão envolva questão urgente, em que seja inviável a revisão por recurso, é preciso interpretar restritivamente e cum grano salis o conceito de “erro grosseiro” em relação à autoridade julgadora ou encarregada da edição do parecer técnico, que se encontra pressionada pela situação de fato, e, em tudo, fica adstrita à narrativa e aos elementos de prova trazidos pelo autor da demanda, não se podendo cogitar de sua responsabilização quando não expressamente apontada na petição inicial ou no requerimento administrativo a consideração dos aspectos aplicáveis dentre os integrantes das novas disposições da Lei de Introdução.
O referido temperamento à literalidade do texto legal é indispensável ao salutar funcionamento do sistema jurídico, pois, do contrário, os agentes públicos encarregados das decisões nas esferas administrativa ou judicial sofreriam evidente intimidação em caráter geral quanto à edição de julgamentos contrários à Administração Pública. Sempre que a situação exigisse a invalidação de atos públicos submetidos à sua apreciação, restrita estaria a liberdade do agente público encarregado da decisão, ante o temor de ser arbitrariamente responsabilizado por suposto “erro grosseiro” consistente na omissão ou equívoco quanto à aplicação dos extensivos requisitos legais para a fundamentação da medida imposta, instilando-se no julgador a propensão a decidir sempre em favor da validade do ato público, o que não se pode admitir no Estado Democrático de Direito. Se, por um lado, é necessário estimular a segurança jurídica e a adequada motivação das decisões judiciais, por outro, não se pode privar os juízes, administradores e advogados públicos da necessária autonomia no exercício de sua atividade profissional, indispensável para o adequado funcionamento do sistema jurídico e para a defesa dos valores constitucionais, inclusive democráticos, em face do possível arbítrio dos detentores do poder político estatal ou da ocorrência de fraudes de qualquer sorte na condução das questões de Estado.
A responsabilidade pela segurança jurídica não pode ser relegada integralmente ao aplicador e intérprete da norma, pois, como já referido, decorre de um problema filosófico-jurídico associado à incompletude do ordenamento. É, portanto, algo muito mais amplo e que extrapola, em muito, a mera deficiência na fundamentação da decisão. A segurança jurídica, tal como a justiça, é um valor jurídico e um ideal a ser perseguido por todos os que operam o Direito e o processo, desde o encarregado da postulação inicial até a autoridade incumbida da decisão em última instância. Não se pode exigir dos julgadores mais do que têm condição de ofertar, devendo-se desconfiar de previsões legislativas que, a pretexto de propiciar segurança jurídica, restringem a autonomia e a liberdade de agentes públicos encarregados de decisões com potencial de invalidar atos ilegais ou inconstitucionais do Poder Público.
Nessa ordem de ideias, adequado o veto efetuado ao § 2º, do art. 26, que instituída a possibilidade de se requerer autorização judicial, em procedimento de jurisdição voluntária, para a celebração de compromisso com o fim de “excluir a responsabilidade pessoal do agente público por vício do compromisso, salvo por enriquecimento ilícito ou crime.” (BRASIL, 2018, p. 1) A uma, porque não se deve interpretar amplamente a responsabilidade do agente público na celebração do compromisso, devendo-se proceder ao temperamento acima delineado, à luz das dificuldades inerentes ao processo interpretativo e, a duas, porque, tal como assinalado nas razões do veto, haveria, no caso, uma esdrúxula interferência do Poder Judiciário na edição de um ato administrativo, comprometendo a forma de controle dos atos do Executivo pelo Judiciário instituída pela Constituição segundo a conformação atribuída pelo texto constitucional ao princípio da separação de Poderes. (BRASIL, 2018b, p. 1)
O texto aprovado pelo Legislativo continha 3 (três) parágrafos adicionais ao caput do art. 28, os quais, contudo, foram vetados. O § 1º dispunha que não se consideraria erro grosseiro “a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais.” (BRASIL, 2018, p. 1) O veto assinalou que “A busca pela pacificação de entendimentos é essencial para a segurança jurídica. O dispositivo proposto admite a desconsideração de responsabilidade do agente público por decisão ou opinião baseada em interpretação jurisprudencial ou doutrinária não pacificada ou mesmo minoritária. Deste modo, a propositura atribui discricionariedade ao administrado em agir com base em sua própria convicção, o que se traduz em insegurança jurídica.” Entendemos que o veto, no caso, não produzirá o efeito almejado, pois o conceito de “erro grosseiro”, tal como defendido acima, não pode ser trabalhado na perspectiva da jurisprudência dominante, que, por vezes, não é objeto de fácil constatação. Ademais, é preciso resguardar a autonomia interpretativa do agente, a quem incumbe, inclusive, interpretar o significado da própria jurisprudência. Atribuir responsabilidade pessoal pela interpretação é temerário e restringe a liberdade do agente público incumbido do dever de decidir, revelando-se postura arbitrária em favor da manutenção dos atos do Poder Executivo. Ao menos no que tange às decisões do Judiciário, tal interpretação seria flagrantemente inconstitucional, pelo que deve ser rechaçada.
Dispunha o § 2º que “O agente público que tiver de se defender, em qualquer esfera, por ato ou conduta praticada no exercício regular de suas competências e em observância ao interesse geral terá direito ao apoio da entidade, inclusive nas despesas com a defesa,” estabelecendo o § 3º que, “Transitada em julgado decisão que reconheça a ocorrência de dolo ou erro grosseiro, o agente público ressarcirá ao erário as despesas assumidas pela entidade em razão do apoio de que trata o § 2º deste artigo.” (BRASIL, 2018, p. 1) A Presidência da República vetou os dispositivos ao argumento de que criavam direito subjetivo ao apoio da entidade na defesa do agente público sem estabelecer “exclusividade do órgão de advocacia pública na prestação”, podendo impor a cada entidade “dispêndio financeiro indevido, sem delimitar hipóteses de ocorrência de tais apoios nem especificar o órgão responsável por esse amparo, o que poderia gerar significativos ônus sobretudo para os entes subnacionais.” (BRASIL, 2018b, p. 1)
Nota-se, pois, que o veto não se fundou na inadequação ou impossibilidade de atuação do órgão de advocacia pública na defesa do agente, mas, tão somente, na problemática financeira que poderia decorrer da escolha, pelo agente, de um ente privado para a sua defesa. O veto reforça a ideia de que a responsabilidade do agente deve ser interpretada restritivamente, não se podendo cogitar da inauguração de uma era de “caça às bruxas” com a finalidade exclusiva de sancionar agentes cujo intento exclusivo é atuar com regularidade na aplicação do direito. O crime, a fraude, o dolo ou o erro efetivamente grosseiro devem, de fato, ser objeto de responsabilização, mas o lapso, o equívoco ou o deslize justificado pelas circunstâncias, notadamente nos casos em que a parte não aponte ao julgador a sua ocorrência, não podem ser validamente imputados ao agente incumbido da decisão, com a pesada sanção pelo ressarcimento de quantias, por vezes vultosas, decorrentes dos julgamentos envolvendo a complexa aplicação do direito público, sob pena de instaurar-se grave cenário de instabilidade e temor que impeça o livre exercício da jurisdição.