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A Lei n. 13.655/2018 e as alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

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10. Possibilidade de realização de consulta pública para a edição de atos normativos pela Administração Pública no âmbito dos três Poderes

De acordo com o art. 29, Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.” (BRASIL, 2018, p. 1) Nos termos do § 1º, deve ser publicado ato de convocação que materialize a consulta pública, contendo minuta do ato normativo e fixando prazo para contribuições. O § 2º estabelecia o dever de publicação, preferencialmente por meio eletrônico, das contribuições e de sua análise, mas teve seu texto vetado por inconveniência, na medida em que “poderia tornar extremamente morosa e ineficiente a sistemática por parte dos órgãos ou Poderes, ou mesmo retardar sua implementação, indo de encontro ao interesse público e recomendando, assim, o veto do parágrafo.” (BRASIL, 2018b, p. 1) 


11. Estímulo à edição de súmulas administrativas, regulamentos, respostas a consultas e demais atos tendentes a reforçar a segurança jurídica

Por último, o art. 30, introduzido à LINDB pela Lei n.º 13.655/2018, estatui que “As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”, asseverando que referidos instrumentos deverão ter “caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão.” (BRASIL, 2018, p. 1) Trata-se, como se vê, de recomendação à edição de atos que sedimentem entendimentos sobre matérias de direito público, com o fito de favorecer a aplicação uniforme da lei, prestigiando a segurança jurídica.

No âmbito administrativo, a determinação de imposição do “caráter vinculante” pouco acrescenta, na medida em que o escalonamento hierárquico dos órgãos e agentes administrativos já implica o dever de obediência aos atos normativos provenientes dos níveis superiores da burocracia estatal. Já na esfera judicial, a determinação importa evidente inovação, dado que a vinculação a orientações interpretativas não ocorre, ainda, em caráter geral, relativamente a todo e qualquer precedente, mas apenas àqueles elencados no art. 927, do Novo Código de Processo Civil. O dispositivo, portanto, reforça, no plano judicial, a noção de um sistema de precedentes, na medida em que incentiva a adoção da técnica da vinculação em caráter geral. A tendência, nesse contexto, é a formação, de futuro, de um sistema em que se adote a vinculação precedencial plena, tal como já ocorre na maioria dos países de common law, em que vige a regra do stare decisis, postura que, na prática, já vem sendo adotada pelos operadores jurídicos, para os quais as decisões do STF e do STJ, ainda que em sede de ações originárias ou não dotadas de eficácia formalmente vinculante, representam orientação jurisprudencial importante e precedente judicial a ser seguido pelas instâncias ordinárias da magistratura.


Conclusão

As diversas alterações introduzidas pela Lei n.º 13.655/2018 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, alegadamente voltadas à satisfação do princípio da segurança jurídica, atribuem pesada responsabilidade ao administrador e juiz na solução de questões de direito público, fixando normas rígidas de fundamentação da decisão jurídica e impondo deveres de abordagem de certos conteúdos no dispositivo, tais como “consequências práticas” do ato decisório ou “regime de transição” para minimizar os impactos negativos das novas interpretações. Optou-se, ainda, por prever a responsabilização pessoal de agentes públicos em caso de “erro grosseiro” na edição de decisões ou opiniões técnicas, sem que se tenha, contudo, procedido a um detalhamento razoável e proporcional do que possa integrar o campo de aplicação da referida expressão, a qual, contudo, pela concomitância junto às novas exigências de fundamentação, somente pode ser entendida, na intenção do legislador, como a omissão na abordagem dos novos requisitos exigidos pela LINDB para a fundamentação e o dispositivo das decisões.

A estratégia adotada, contudo, não se revela adequada. As normas buscam transferir integralmente ao aplicador e intérprete o ônus pela insegurança jurídica, que, em verdade, decorre de um problema filosófico-jurídico associado à incompletude do ordenamento. A segurança jurídica, tal como a justiça, é um valor e um ideal a ser alcançado pelos sistemas jurídicos, e sua busca esbarra em problemas muito mais amplos, que extrapolam, em muito, a simples questão da fundamentação das decisões judiciais ou administrativas. O próprio legislador, ao instituir certos deveres de fundamentação e de conteúdo, ao tentar regulamentar a interpretação de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, viu-se na necessidade de utilizar conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, relegando, novamente, ao intérprete, o poder de definir, no caso concreto, o significado da regra que se destinava a reger o processo de interpretação. Isso se dá porque a previsão rígida e engessada de situações já se revelou, desde o século XIX, medida fadada ao fracasso, ante a impossibilidade de o legislador antever toda e qualquer situação passível de regulação pelo direito, o que conduziu, sobretudo após a 2ª Guerra, à passagem dos métodos hermenêuticos clássicos para a interpretação pós-positivista, que reconhece haver poder criativo centrado nas mãos do intérprete. Se, por um lado, é preciso instituir elementos aptos a conter a discricionariedade e a permitir o máximo de previsibilidade na aplicação do direito, não se pode esquecer o fato de que interpretar, por um imperativo lógico e filosófico, é um poder, tanto que, em última instância, chega a constituir um braço autônomo da atuação do Estado.

A responsabilização pessoal de agentes públicos encarregados da prolação de decisões ou pareceres técnicos nos âmbitos administrativo e judicial por supostos erros na aplicação da lei somente pode validamente ocorrer quando, efetivamente, possam ser considerados “grosseiros”, assim entendidos quando, a despeito de expressamente provocada, a autoridade se mantiver omissa quanto à indicação dos pontos de interesse. Do contrário, estar-se-ia a responsabilizar administradores e juízes por aspectos inerentes ao processo decisório, o que é inadmissível, e a restringir a liberdade no exercício da jurisdição, instilando nas autoridades a tendência por decidir sempre em favor da Administração Pública, ante o temor inerente à responsabilização por questões decorrentes de suas decisões, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito.

Responsabilizar pessoalmente juízes e administradores pela opinião ou pela interpretação no exercício da jurisdição é medida que beira a censura, devendo-se desconfiar de propostas que, a pretexto de garantir a segurança jurídica, restringem a liberdade de agentes públicos encarregados da invalidação de atos do Poder Executivo, que, de um modo geral, podem revelar-se contrários à lei, à Constituição ou a valores caros ao sistema jurídico, inclusive protetivos de interesses minorias circunstanciais, ou, ainda, ser fruto de fraudes ou outras violações graves à ordem jurídica. O sistema recursal existe, precisamente, para que a jurisdição possa ser exercida com o máximo de liberdade possível, não se podendo restringi-la pela imposição ao julgador do temor pela pesada responsabilidade civil nos casos em que sua perspectiva, na defesa das liberdades e dos valores constitucionais, inclusive democráticos, sejam eventualmente consideradas “erro grosseiro” pelas instâncias superiores, mormente quando existe, para as partes, o direito de rever a decisão mediante o recurso pertinente, ou ainda, de provocar a autoridade para que supra eventual omissão que repute existente.

A segurança jurídica é um valor a ser perseguido por todos os que integram o processo, não podendo ser transferido o ônus pela incompletude do ordenamento, exclusivamente, às autoridades encarregadas da prolação da decisão. Não há como exigir dos juízes, administradores, advogados públicos e demais autoridades incumbidas da edição de opiniões técnico-jurídicas que solucionem, no Brasil, um problema que é universal, compartilhado que é por todas as nações civilizadas estruturadas como Estado de Direito.  É irrazoável e arbitrário, por exemplo, exigir que tais autoridades prevejam todas as consequências práticas eventualmente decorrentes de suas decisões, ou que antevejam todas as possíveis alternativas à invalidação de um ato administrativo, como propugnado, de forma pueril e idealizada, por alguns dos novos dispositivos da Lei de Introdução. O texto precisará ser interpretado à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, havendo que se esperar o que a jurisprudência há de dizer a respeito do assunto, sendo certo, contudo, que a interpretação literal da maioria dos dispositivos há de ser reputada inconstitucional, sobretudo, por violar a necessária liberdade do processo interpretativo, indispensável à concretização da justiça.

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Referências

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MARLMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2018.

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Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva. A Lei n. 13.655/2018 e as alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5599, 30 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69967. Acesso em: 26 abr. 2024.

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