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A lentidão do Judiciário brasileiro

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23/07/2005 às 00:00
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A reforma do Judiciário, assim como as demais reformas, é remendo novo em tecido velho, porque parte do princípio equivocado de que o dilema é apenas conjuntural, quando, na verdade é estrutural.

Sumário: 1. Introdução. 2. O mito da celeridade. 3. O excesso de demandas e atribuições. 4. Procedimentos arcaicos. 5. Sujeitos atuantes na prestação jurisdicional. 6. A atuação do Ministério Público. 7. Conclusão. Notas. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO

As explicações monocausais para certos males são inaceitáveis sob a ótica das ciências sociais, porque uma instituição não é uma ilha isolada do seu contexto, imune às múltiplas influências da cultura, contra as quais não há blindagem eficiente. Uma instituição dessa magnitude é uma amostra fidedigna para o diagnóstico da cultura geral; uma oficina para o entendimento de tantas outras instituições. Neste ensaio vamos articular categorias de fatores diversos, separados em tópicos, mas com interpenetrações recíprocas, pois todos se juntam pelo prisma de uma interpretação do judiciário brasileiro.

O judiciário é um microcosmo da realidade social brasileira. Assentado sobre uma estrutura arcaica, exige muito mais do que simples modificações periféricas. A reforma do judiciário, assim como as demais reformas que tanto se fala no Brasil (política, previdenciária, tributária, administrativa) não é mais do que remendo novo em tecido velho, porque parte do princípio equivocado de que o dilema é apenas conjuntural, quando, na verdade é estrutural. Não é o caso de se pensar que o judiciário era rápido e agora se tornou lento. Ele não foi rápido em momento algum de sua história. Qualquer pensamento reformador tem que partir desse entendimento se quiser, efetivamente, provocar transformações sensíveis aos olhos do povo.

Nos últimos anos muitas críticas têm sido lançadas contra o judiciário, tendo como foco principal a lentidão para findar as demandas. A insatisfação está presente em todos os setores sociais, englobando desde o mais humilde jurisdicionado aos grandes empreendedores, do simples funcionário de execução aos altos escalões do governo. Imprensa, instituições da sociedade civil e até o próprio Poder Judiciário se indignam com a ineficiência desde organismo estatal de fundamental importância. A análise da questão impõe um estudo bem mais aprofundado do que as simples súplicas sobre reformas constitucionais e das leis infraconstitucionais. O assunto vem sendo tratado de maneira superficial, concentrando-se a causa das mazelas, ora nos membros desde poder, ora na legislação, sem atenção aos inúmeros aspectos que interferem decisivamente numa prestação jurisdicional mais rápida. Infelizmente, o bombardeio tem sido dirigido contra este poder da república de forma a desmoralizá-lo, ao invés de fortalecê-lo, para preservar seu lugar de destaque num Estado Democrático. Citam-se exemplos de magistrados relapsos, omissos, parciais, para numa gradação irresponsável, atacar toda a instituição, colocando sob suspeita todos seus membros. Não se ressalta a importância deste poder, com a informação de que todos os cidadãos necessitam de um judiciário independente, de juízes com as mínimas garantias para julgar desvinculado de quaisquer interferências e que tais garantias, embora dirigidas aos ocupantes dos cargos, são patrimônio de um povo que tem direito a juízes imparciais, cujas decisões não estejam vinculadas a uma remoção indesejada, promoção, exoneração ou aumento de salários. Não se nega a existência de membros indignos; profissionais que sob o manto de certas garantias triunfam impunemente com a preguiça, a ausência de compromisso social, a omissão, prepotência e a parcialidade. Entretanto a existência de tais profissionais não pode servir de pretexto para a desmoralização do Poder Judiciário, senão a proscrição dos indignos, com o devido processo legal, justamente porque precisamos deste poder.

Inúmeros fatores contribuem para a lentidão do judiciário. Certamente, nesta análise, será inevitável o esquecimento de algum deles. Procurei selecionar alguns, considerados como os mais relevantes, trazendo a discussão para o âmbito da cultura nacional, dividindo a responsabilidade do nosso dilema com diversos atores e circunstâncias. O método de análise utilizado é o comparativo, buscando relativizar o nosso modo de operar a justiça com o praticado em outros países, sobretudo nos Estados Unidos. Analisam-se, bem assim, diversos institutos jurídicos sob o prisma estrutural, ilustrando o texto com exemplos de casos concretos, para facilitar sua compreensão. As observações feitas neste trabalho procuram transcender a discussão da esfera puramente jurídica para o âmbito sociológico, analisando diversos fatos sociais que influenciam no tempo de conclusão dos conflitos submetidos a julgamento pelo poder judiciário.


2. O MITO DA CELERIDADE

O processo judicial consiste na tentativa de traduzir em documentos (autos) um ou mais fatos que ocorreram na vida real, para o julgamento por terceiro (juiz) que não presenciou estes atos. Isto sempre demandará tempo razoável. A preocupação com a morosidade da justiça não é apenas um problema nacional. Vários países têm procurado resolver, ou pelo menos atenuar o problema, reformando leis e procedimentos.

A duração de um processo submetido a julgamento depende de vários fatores, entre eles, o tipo de procedimento utilizado, a complexidade do caso, o tempo gasto na documentação e registro do feito, prazos para prática de atos processuais (resposta, exceções, recursos, etc.), tempo para operacionalização dos atos de comunicação processual (citações, intimações), tempo gasto na coleta de provas e conclusão de perícias, resolução de incidentes (incompetência, suspeição e impedimento de determinado agente para o julgamento), desempenho pessoal de cada profissional na condução do caso e a cultura institucional.

Cumpre, antes de tudo, lançar a questão sobre o que seria um processo rápido: as demandas deveriam ser resolvidas num só dia, numa semana, num mês ou dentro de um ano?

Se considerarmos que a conclusão de um processo deverá ocorrer em dias ou semanas, não existirá lugar no mundo democrático onde o processo judicial seja rápido. Evidentemente, alguns sistemas contribuem para um julgamento mais rápido do que outros, devido às diversidades de leis e procedimentos, mesmo quando se apresentam casos de relativa semelhança. Essas diferenças ficam evidentes, por exemplo, em estudo patrocinado pelo Banco Mundial, e que contou com a participação das associações de escritórios de advocacia Lex Mundi e Lex África, que compara a qualidade dos sistemas legais e judiciais de 109 países, através da análise comparada de dois casos relativamente homogêneos: o despejo de um inquilino e a cobrança de um cheque. Esse estudo mostra, com uma profusão de indicadores, que mesmo causas tão homogêneas como essas podem ter tratamentos muito diferentes nos vários países, seja em termos da sua regulamentação, seja na prática do judiciário, vale dizer, no seu curso pela justiça. Em particular, o tempo requerido em média para uma definição desses casos e as formas em que esses processos correm na justiça, notadamente em termos processuais, pode variar significativamente de um país para outro. [1]

Tem-se notícia de julgamentos ocorridos em minutos, como no Afeganistão. Lá, sob o regime talibã que controlava 2/3 do país (ano de 2001), a sodomia era crime punido com pena de morte. Os julgamentos duravam minutos, sem advogado de defesa e a decisão era inapelável. Os homossexuais eram executados pelo próprio líder talibã Mohammad Omar. Obviamente, não é esta justiça que desejamos.

Em Portugal, os críticos apontam para a existência de rol extenso de processos judiciais pendentes, como resultado da ineficiência do sistema judiciário. Um estudo realizado pelo Observatório Permanente da Justiça em 2003, revelou que a duração média de um processo na primeira instância era de 912 dias, e que 14,7% dos processos judiciais duram mais de 5 anos. [2]

Na Flórida, EUA, os casos que vão a julgamento no primeiro grau de jurisdição raramente atingem um ano. A maioria dos casos é resolvido em meses. Este estado americano foi o primeiro a implementar um programa de Resolução Alternativa de Disputas (ADR) [3], em mediação junto aos tribunais, como forma de acelerar a resolução de conflitos. Esta mediação é obrigatória para determinados casos, de acordo com as normas e estatuto do estado. Encontramos, entretanto, em feitos que envolvem a aplicação da pena de morte, longos períodos de espera no corredor na morte, nos estados que a adotam.

No Brasil, entretanto, a situação é caótica. O último Exame Fórum, organizado pela revista Exame em agosto de 2004, concluiu que o Judiciário é um dos principais entraves ao crescimento do país. O Fórum teve a presença do economista Simeon Djankov do Banco Mundial, que apresentou dados levantados pela sua equipe. O estudo apresentado considerou que a Justiça brasileira é uma das mais lentas do mundo. Uma simples disputa comercial leva, em média, 566 dias para ser resolvida. Na América Latina, só Bolívia, Guatemala e Uruguai têm uma Justiça mais lenta. Ainda segundo o estudo, na Holanda a mesma disputa é resolvida em apenas 48 dias. [4]

Outro aspecto que merece reflexão é a postura assumida por cada crítico da morosidade da justiça. Teoricamente, todos reclamam por uma justiça mais rápida. Na prática, entretanto, quando um caso é submetido a julgamento, a rapidez não é unanimidade. Assim, nestes anos de militância judiciária, pude perceber que a grande maioria dos réus em processos criminais que respondem em liberdade, seja por relaxamento de prisão, por pagamento de fiança, liberdade provisória, ou pelo direito de apelar em liberdade, jamais reclamam da morosidade da justiça. No cível, pelo menos a princípio, metade quer rapidez, outra metade lentidão, sobretudo quando se trata de litígios que envolvem questões patrimoniais em que as provas lhes são desfavoráveis. No Brasil é comum o devedor aconselhar o credor procurar a justiça para obtenção do seu crédito, confiante no desestímulo causado pelo custo inicial da demanda e na morosidade. Muitos outros exemplos poderiam ser dados para demonstrar que nem sempre o discurso corresponde ao verdadeiro desejo.


3. O EXCESSO DE DEMANDAS E ATRIBUIÇÕES

O Poder Judiciário é órgão de exceção. Só deve ser utilizado quando falharem todas as outras instâncias de solução de conflitos, justamente porque são muitas as formalidades necessárias para o julgamento.

Tem-se pela Justiça, tomado o termo como órgão responsável pelos julgamentos, uma relação de amor e ódio. As decisões judiciais não podem agradar a todos ao mesmo tempo, tendo em vista a posição dos adversários e seus simpatizantes em relação à questão posta em juízo. Veja-se, por exemplo, o recente julgamento de cantor Michael Jackson acusado de pedofilia, onde as manifestações populares se dividiam entre sua inocência ou culpa. Tais contradições se refletem na dramaturgia brasileira, para enfatizar, na grande maioria das vezes, os erros. São explorados casos como a prisão de inocentes e liberação de culpados. Toma-se a exceção como regra, sobrepujando a realidade dos inúmeros julgamentos que ocorrem todos os dias com avassalador índice de acertos. Repercute a dubiedade nos legisladores (deputados) que contraditoriamente não se cansam de criticar o judiciário, e ao mesmo tempo, com sua produção legislativa, sobrecarregam-no com inúmeras atribuições, deixando claro que, em última análise, só confiam nos juízes.

O excesso de demandas é caracterizado por infinitas ações que obrigatoriamente são apreciadas pelo judiciário brasileiro. O excesso de atribuições alcança a figura do juiz, quando, por exemplo, é chamado para celebrar casamentos, ordenar citações e intimações, exarar diversos despachos no mesmo processo, assinar inúmeros papéis nos procedimentos eleitoras, emitir ofícios, ordenar atos concernentes às provas, etc. Alcançam, também, o juízo com atos de documentação e execução de diversas tarefas que poderiam ser providenciadas pelas partes, como a citação, intimação de testemunhas, cumprimento de cartas precatórias, etc. Neste sentido, a sobrecarga atinge os servidores do judiciário, responsáveis pela materialização das ordens.

Incoerentemente, o legislador importa institutos pela metade, sobrecarregando o judiciário.

Como exemplo, cita-se a lei que criou os Juizados Especiais, Lei 9.099/95, que mitigou o princípio da obrigatoriedade da ação penal, onde a timidez de suas disposições é irritante. Nos EUA, praticamente abandonando o princípio da obrigatoriedade, calcula-se que mais de 80% dos crimes apresentados à promotoria não chegam a julgamento, em virtude da adoção de negociação realizada pelos promotores com os acusados, sem que haja participação do judiciário. O Juiz Federal dos EUA Rubén Castillo afirma que mais de 90% dos crimes nunca chegam ao judiciário, pois a defesa acorda com o MP. [5] Sob a denominação de plea bargaining, permite-se que o imputado declare-se culpado, aceitando as imputações, na fase pré-judicial, acabando por ter pena pactuada. A negociação é plena, abrangendo não só a pequena e média criminalidade, mas qualquer tipo de crime. Além deste procedimento, lá existe, também, o plea guilty, no qual o réu se declara culpado em juízo, em troca de redução da pena, encerrando o julgamento, sem produção de prova, ou qualquer outro ato processual, senão a sentença.

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Sem discutir o mérito dessas medidas, o certo é que nos Estado Unidos este procedimento desafoga sobremaneira o judiciário. Imaginemos se os juízes criminais brasileiros tivessem sob seus auspícios, apenas 20% da carga de trabalho de que atualmente dispõem. E isto é só o primeiro aspecto a ser analisado.

Demandas inúteis a cargo do judiciário também ocorrem na área cível. Muitos processos que tramitam na justiça poderiam ser resolvidos por outras instâncias administrativas (agências do poder executivo). Basta citar a grande quantidade de alvarás requeridos diariamente para levantamento de quantias depositadas em agências bancárias (saldos de poupança, salários, FGTS, PIS, etc.) da conta do falecido. Não há litígio algum a ser resolvido, no entanto, movimenta-se a máquina judiciária para viabilizar o saque. Um lavrador aposentado morre, deixando um saldo de R$ 300,00 no banco, valor correspondente ao último mês de benefício previdenciário. A viúva terá que contratar um advogado ou procurar um defensor público para requerer ao juiz a autorização de saque. Este, por sua vez, ainda terá que ouvir o promotor antes de decidir. Este processo pode levar meses, sobretudo se no município não houver juiz titular. Isto é racional? Não custaria ter um órgão assistencial do município ou do estado que resolvesse a questão em poucas horas. Até mesmo uma simples resolução do Banco Central determinando às agências bancárias o cadastramento de beneficiários da conta, no caso de morte do titular, evitaria grande parte dessas ações. O máximo que o legislador brasileiro fez foi editar a Lei n. 6.858/80, criando um procedimento desumano e de alto custo para quem acaba de perder um ente querido.

O mesmo se diga sobre os inúmeros outros processos de jurisdição voluntária (onde não há litígio), como as diversas interdições de pessoas portadoras de enfermidades mentais. No Brasil, o deficiente mental tem direito a uma renda mensal, nos termos do artigo 20 da Lei n. 8742/93. Necessitando de um curador para ter acesso ao benefício disponível nas redes bancárias, infinitas ações de interdição são ajuizadas só para este fim. Isto não poderia ser resolvido pelos órgãos da Administração, já que não há litígio? Em todos os casos que atuei como promotor, jamais vi uma decisão contrária ao laudo médico que atestou a incapacidade do interditando para reger os atos da vida civil. Em outras palavras, o juiz se guia praticamente pela conclusão de um agente administrativo. Então, qual a razão de se sobrecarregar o judiciário com estas ações? Por que a própria agência governamental não conclui o procedimento? O judiciário só deveria ser chamado a decidir quando houvesse litígio, ou seja, quando se quisesse interditar alguém e este alguém não aceitasse.

Nosso sistema de identificação pessoal é duplo: certidão de nascimento e registro de identidade. A primeira a cargo do judiciário, a segunda a cargo dos executivos estaduais. Não há sentido desta dualidade. Todos os atos referentes a registros públicos deveriam estar a cargo das agências do poder executivo, não do judiciário. Qual a razão do judiciário tomar conhecimento de uma criança que acabou de nascer e de pessoas que desejem casar, reconhecer firmas ou negociaram com imóveis? Ademais, a formação de juízes e promotores é superdimensionada para apreciar pedidos decorrentes retificações e justificações de registros. Simples pleitos para correção de erros materiais são submetidos a julgamento, exigindo a intervenção de advogados ou defensores públicos, juízes e promotores. Tudo isto poderia ser resolvido numa repartição administrativa, com custo mais baixo e em bem menor tempo. Ademais, o dia-a-dia destes serviços cartorários se presta ao executivo, quando informa à Receita Federal as transações imobiliárias, para fins de imposto de renda, ou para fins de recolhimento do imposto de transmissão, quando disponibiliza o registro originário para os departamentos de identificação, quando informa os óbitos ao INSS, para o corte de benefícios, etc. Nos EUA, todo o sistema de registro, seja de pessoas, seja de bens é tarefa do executivo. E em conseqüência, todas as retificações são processadas nos órgãos do governo, evitando-se a mobilização da máquina judiciária.

Inúmeros processos que tramitam na justiça brasileira poderiam ser resolvidos em menor tempo, com custo mais baixo, sem causar hipertrofia de atribuições judiciárias. Adoção de menores abandonados, pedidos de guarda e tutela, divórcios consensuais, arrolamentos, inventários, execução de testamentos, alvarás, etc., desde que não existissem disputas entre os interessados, poderiam ser resolvidos em instâncias administrativas. Estas ações caracterizam o cotidiano do judiciário nas pequenas cidades. São de pouca complexidade e não envolvem conflitos sociais dignos de apreciação pelo Poder Judiciário. Não significa, entretanto, que sejam menos trabalhosas no seu aspecto operacional. Dependem de registro, autuação (ordenar os documentos em forma de autos), mandados, publicação de atos etc.

O excesso de demandas deste tipo alimenta um círculo vicioso agravando a lentidão da justiça. Os autos se acumulam nos cartórios. Naturalmente, ocupam tempo precioso dos juízes que, por sua pouca complexidade, convidam os magistrados a priorizá-los, em detrimento dos casos litigiosos. Isto ocorre com maior freqüência nas pequenas cidades, onde um juiz responde por todos os feitos. Desta forma, o nível de litigiosidade social cresce, à medida que os jurisdicionados percebem que certas infrações duram anos para serem resolvidas, resultando em mais demandas judiciais. Freqüentemente, o acúmulo de processos é apontado como o responsável pelo atraso na prestação jurisdicional. Muitos feitos que dependem exclusivamente de despachos de expediente, como citação ou publicação de atos processuais, se misturam a tantos outros existentes no cartório, de forma que medidas de simples impulso processual, sem conteúdo decisório, podem levar meses para serem efetivadas. Assim, não se pode determinar com precisão qual o grau de desempenho de cada sujeito atuante. Se o acúmulo se agravou em razão da ineficiência ou se a falta de eficiência é conseqüência do acúmulo de serviço, ou as duas coisas agindo reciprocamente. O efeito multiplicador da situação repercute na atividade cartorária, na medida em que cada novo impulso processual oriundo do juiz acarreta novos mandados de citação ou intimação, ofícios, cartas, publicações, etc., donde se conclui que o aumento do número de juízes não desafoga o judiciário, se não houver um aumento proporcional do número de servidores.

Do mesmo modo, na esfera criminal, a impunidade decorrente da lentidão judicial, faz com que os infratores não se sintam intimidados com a represália judicial. Mais crimes, mais inquéritos, mais papéis, mais autos. Destarte, a impunidade também contribui para o aumento de demandas.

Além de tantas atribuições ordinárias de jurisdição, os juízes brasileiros ainda celebram casamentos e administram todo o procedimento eleitoral.

Com um número muito grande de atribuições e processos sob sua responsabilidade, a leitura apressada de cada caderno processual é inevitável. Em decorrência disto, muitas falhas processuais existentes não são corrigidas no tempo devido, causando tumulto no processo e reversões para chamá-los à ordem. Muitos não comportam correções e serão extintos sem julgamento. São petições iniciais sem causa de pedir ou com pedidos defeituosos, petições juntadas em momento processual inoportuno tumultuando a macha processual, ausência de documento procuratório ou documento que deveria ter sido juntado com a inicial, procedimentos inadequados ao tipo de tutela pretendida, entre outras falhas, que, muitas vezes, só serão percebidas no momento de prolatar a sentença.

O excesso de demandas provém, também, de leis absolutamente incompatíveis com o atual estágio alcançado pela sociedade moderna, a exemplo da duplicidade de institutos para o término da sociedade conjugal, separação e divórcio. Se o casal não quiser esperar por dois anos para requerer o divórcio direto, terá, obrigatoriamente, que levar dois processos à justiça: uma ação de separação e outra de conversão desta em divórcio, exigindo dupla intervenção do judiciário. Mais demandas para deliberar, na prática, sobre o mesmo objeto. Não se pode olvidar que tais institutos nasceram numa fase de transição (1977), com a Lei 6515, época em que foi introduzido o divórcio no Brasil. A realidade atual, entretanto, revela que o número de reconciliações de casais após a separação é ínfimo. Como a lei não deve ser baseada nas exceções, emerge a inutilidade da existência dos dois institutos.

Não custa compreender que o alto grau de litigiosidade da sociedade brasileira revela uma produção legislativa de difícil adaptação social ou exeqüibilidade, decorrente de uma cultura que sedimentou certos valores em relação à lei de maneira equivocada, como veremos a seguir (item 4). No âmbito do direito público assistimos, muitas vezes, tradicionais descumprimentos da legislação tributária, engendrando um número exorbitante de execuções fiscais. Seja porque formamos uma nação de sonegadores, seja porque a legislação é embaraçosa, extorsiva, burocrática ou compensatória em vista da difícil tributação do mercado informal (não enfrentarei aqui esta questão), o fato é que tais questões infestam o judiciário, como nenhum outro país no mundo.

Nos EUA, as execuções fiscais não são efetuadas pelas cortes. São realizadas administrativamente, tendo em vista a celeridade. Os jornais diuturnamente estampam editais que oferecem bons negócios, havendo muito interesse na realização dessas hastas públicas. No Brasil é do judiciário a competência para o procedimento.

O Estado produz leis que seus órgãos administrativos não respeitam, resultando num número elevado de ações contra os entes federativos. Nos EUA existem significativas limitações para apreciação das corte de justiça, quando as demandas são ajuizadas contra a administração. No plano federal, as agências públicas legislam, executam e julgam. São várias delas, algumas subordinadas ao executivo, outras independentes, com atribuições específicas em diversas áreas administrativas, como as de assistência (social welfare agencies), tributação (Internal Revenue Service), seguridade social (Social Security Administration), agências reguladoras da vida pública em termos de transportes, alimentos e remédios (regulatory agencies), entre outras. O judicial review e as limitações impostas pelo Congresso controlam esta atividade. Não há direito absoluto para propositura de ação contra a administração, por causa dos remanescentes normativos e jurisprudenciais da doutrina da soberania estatal. As ações permitidas, só podem ser intentadas, depois de esgotadas as instâncias administrativas. Se o pedido de intervenção judicial é deduzido enquanto o processo administrativo se encontra em andamento regular, haverá negativa para apreciação do feito. Deste modo, no direito americano, à semelhança do direito praticado na Inglaterra, subtrai-se das instâncias judiciais ordinárias grande número de reclamações.

A bem da verdade, o pragmatismo da vida americana em matéria de Direito Administrativo, denota sérias implicações de ordem constitucional e cultural, inaplicáveis ao Brasil. Entretanto, vale a referência para elucidar o baixo número de demandas naquele país, neste campo.

No Brasil, a investida dos particulares contra a administração é plena. Porém, a demora na conclusão dos feitos (inclusive, por causa do reexame necessário) e o regime de precatórios, se por um lado desencoraja o ajuizamento de muitas ações, por outro lado remanescem demandas irresolutas em tempo razoável, justamente porque os jurisdicionados não dispõem de outros meios para efetuar suas reclamações mais significativas.

A hipertrofia de demandas no Brasil não atormenta somente os juízes de primeiro grau. Alcança igualmente os tribunais intermediários e os superiores, inclusive nossa corte maior, o STF. Para exemplificar, o juiz Marco Aurélio, ministro do STF, traça um paralelo entre o que acontece no Brasil e nos Estados Unidos. "Enquanto o STF analisa mais de 100 mil processos por ano, a Suprema Corte norte-americana julga aproximadamente 100" - dos cerca de 7 mil pedidos anuais. [6]

Há que ser observado que sua competência originária é bastante restrita. Dispõe a Constituição Americana:

"Ao Supremo Tribunal [Suprema Corte] competirá julgar originariamente as causas respeitantes a embaixadores, enviados diplomáticos e cônsules e aquelas em que seja parte qualquer estado. Em todas as outras causas ela terá competência por via de recurso tanto em matéria de direito como de facto, salvas as excepções e observada a regulamentação que o Congresso estabelecer." [7]

As competências originárias da Suprema Corte, ao longo do tempo e especialmente no século XX, não têm se revelado de muita significação prática. Portanto, é exatamente a competência recursal a mais significativa, já que trata basicamente do exercício do controle da constitucionalidade (judicial review) e da proteção dos direitos fundamentais (civil rights). Em grau de recurso, revê decisões dos tribunais de segunda instância, federais e estaduais. Em relação a estes últimos, porém, a competência se limita a temas de constituição ou lei federal. Tal Corte aprecia também disputas entre cidadãos de diferentes estados, entre estados e entre cidadão e estado distinto do seu domicílio. Nos demais casos, a jurisdição da Suprema Corte é discricionária. Os juízes decidem apenas os casos que escolhem e que acreditam importantes para explicação da Constituição.

Relevando-se discricionaridade existente no sistema americano, um aspecto importante do elevado número de demandas submetidas ao STF é a constitucionalização de várias matérias. A impressão extraída é que os nossos constituintes quiseram esgotar todo o ordenamento num só texto. Basta ler a Constituição Federal para perceber que muitas de suas disposições, bem que poderiam ser disciplinadas desde simples regulamentos administrativos até leis federais. Num paralelo com a constituição americana, basta dizer que lá, o único tribunal previsto é a Suprema Corte, consoante disposição do artigo 3, seção I:

"O Poder Judicial dos Estados Unidos incumbirá a um supremo tribunal e a diversos tribunais inferiores a instituir oportunamente pelo Congresso. Os juízes, quer do Supremo quer dos tribunais inferiores, conservar-se-ão nos seus cargos de acordo com o seu mérito (during good behaviour) e perceberão regularmente um subsídio pelos seus serviços, o qual não poderá ser diminuído enquanto se mantiverem em exercício." [8]

A nossa constituição, previu todos os tribunais, além de disciplinar matérias de ordem administrativa, não compatíveis com a finalidade de uma constituição. Descendo a pormenores em diversas áreas, no âmbito do sistema tributário, da ordem econômica e financeira e da ordem social, acabou por elevar ao patamar constitucional, diversas questões cujas disposições uma vez violadas terminarão decididas pelo STF. Ao invés de desconstitucionalização, toda vez que se quer fazer retoques mínimos em certos setores, acrescentam-se mais dispositivos constitucionais através de emendas. A lei constitucional é reputada como fundamental, mas, no Brasil, ela muda quase na mesma velocidade que as normas ordinárias. Ora! Os fundamentos de uma nação não podem mudar a toda hora. Os livros de direito se tornam obsoletos constantemente, dificultando o aprendizado dos institutos jurídicos pelos acadêmicos, bem como encarecendo a formação de sua biblioteca.

A Constituição brasileira, em várias passagens, assemelha-se a um programa de governo; uma proposta de sociedade ideal.

Esta crítica que faço foi igualmente observada por Keith S. Rosenn, Diretor do Programa do Foreign Graduate Law, da Faculdade de Direito da Universidade de Miami, em sua recente passagem pelo Brasil, comentando, entre outros assuntos sobre o nosso mandado de injunção: [9]

Não se deveria regular o investimento estrangeiro na Constituição, ou a Lei da Cultura, não deveria haver um código de Direito do trabalho dentro da Constituição ou um código de tributação. Essas coisas deveriam ser reguladas por lei ordinária. Mas se colocarmos tudo isso na Constituição e quisermos que esta funcione, entendo porque foi criado o mandado de injunção, e não existe possibilidade nenhuma deste funcionar sem violar, drasticamente, os princípios da separação dos Poderes. E se o Poder Judiciário entrar diretamente nessa área e começar a legislar, o País correria grandes riscos de perder a independência (...). Não há como o Poder Judiciário mandar o Congresso legislar. E esse Congresso daqui faz tudo, menos legislar. Quem faz a legislação no Brasil é o Poder Executivo. O Congresso faz barulho, o Congresso faz fofoca, o Congresso faz escândalo, mas não faz lei. E, além disso, tem uma Constituição altamente programática, que não funciona bem em Portugal e não vai funcionar bem aqui no Brasil. Quando se dá direito à saúde, como o Poder Judiciário pode mandar que o direito seja protegido?

O acúmulo de processos no Supremo Tribunal Federal, causa lentidão no julgamento de causas e interfere na conclusão de julgamentos de outros tribunais, que intuitivamente aguardam o posicionamento daquela corte, para poder dar continuidade aos processos. Pedidos de vistas dos ministros do STF atrasam decisões importantes como o poder investigatório do Ministério Público e o foro privilegiado para julgamento de certas autoridades que já não exercem as funções.

A vulgarização do texto constitucional, não afeta apenas o STF. Novas orientações do governo de pequena envergadura exigem emendas constitucionais, que por sua vez, dependem de um processo legislativo mais delicado, sujeito a uma série de limitações formais, materiais e circunstanciais.

O excesso de demandas do judiciário brasileiro pode ser considerado, sem hesitação, uma das mais importantes causas da morosidade judiciária. Embora tenhamos um número de juízes por habitantes, razoável pelos padrões da ONU, nossa justiça é considerada uma das mais lentas do mundo. Como veremos a seguir, análise mais interessante é o numero de processos por juiz, onde o Brasil apresenta-se muito acima da média aceitável.

Não basta, entretanto, a análise destes dados para se compreender a crise da justiça brasileira, se não levarmos em conta a contextualização de outros fatores tratados neste trabalho. A justiça poderá ser lenta, ainda que tenhamos juízes e funcionários excedentes, permanecendo inalterada a estrutura sobre a qual se edifica os institutos operacionais.

A título de informação, encontra-se um quadro comparativo abaixo entre diversos países sobre a relação de habitantes por juiz de carreira:

PAÍSES

HABITANTES/JUIZ (JUDICIAL)

PORTUGAL

6.600

EUA

8.178

HOLANDA

10.666

ITÁLIA

11.600

BRASIL

12.967

ESPANHA

13.333

INGLATERRA

27.777

JAPÃO

45.561

Fonte: https://www.artnet.com.br/~lgm/comparajust.doc

Como podemos notar, engana-se quem encontra a solução da lentidão do judiciário, tomando por base apenas o número de juízes. Portugal, embora figure com a melhor média de habitantes por juiz, é apontado como um dos países de justiça mais lenta, entre os europeus. Para nosso desespero é a principal inspiração de nossos legisladores. [10]

Por outro lado, se tomarmos o número de ações por juiz, a situação brasileira é caótica. Os dados divulgados pelos Indicadores Estatísticos do Judiciário Brasileiro no Supremo Tribunal Federal e divulgado pelo presidente da corte, Nelson Jobim, revela que a média brasileira no 1º grau é 3,4 mil ações por cada julgador na Justiça Estadual, 6,5 mil na Justiça Federal. A Justiça do trabalho foi a que apresentou o melhor indicador, com 1.898,30 ações por juiz. Vejamos o quadro abaixo, onde se demonstra a quantidade de feitos por juiz no Brasil, excetuando-se os juizados especiais: [11]

NÚMERO DE AÇÕES POR JUIZ

ÂMBITO

1º GRAU

2º GRAU

JUSTIÇA ESTADUAL

3.400,79

1.306,87

JUSTIÇA FEDERAL

6.505

10.070

JUSTIÇA DO TRABALHO

1.898,30

1.299,83

Fonte: www.stf.gov.br

Em complemento aos dados acima, convém ressaltar certas distorções: a justiça dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará têm números muito superiores à média nacional, com mais de 7.000 processos por juiz. O STF tem uma média de 23.996 processos por juiz.

Em Portugal, a média não é tão absurda em comparação com os demais países, evidenciando, portanto, outros problemas estruturais. Em entrevista à revista Focus, o Secretário de Estado-Adjunto Mota Campos, falando sobre a situação da justiça portuguesa afirmou que "A média da pendência por juiz é de 960 processos (considerando uma pendência total de 1 250 000 processos), o que não está muito acima da média européia, que é de 700 processos por juiz". [12]

Quando estive nos EUA, em 1995, obtive informações de que a média era inferior a 400 processos por juiz (federal) no estado da Flórida.

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Sobre o autor
Valtércio Pedrosa

Promotor de Justiça

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDROSA, Valtércio. A lentidão do Judiciário brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 752, 23 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7039. Acesso em: 21 nov. 2024.

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